SAMBA GUARDADO
Guilherme de Brito (2001)
Crítica
Cotação:
Com o lançamento de Samba Guardado, o que se faz é reparar uma enorme injustiça histórica. Guilherme de Brito há muito merecia um disco de carreira, que desse conta de todo seu talento de poeta, compositor e cantor (excluindo aí suas outras facetas artísticas, como a de pintor e escultor) sem precisar recorrer aos clássicos imortais que assinou com Nelson Cavaquinho, como A Flor e o Espinho, Pranto de um Poeta, Folhas Secas, O Bem e o Mal, Quando Eu Me Chamar Saudade e tantos outros. A mítica do boêmio Nelson, ao longo dos anos, acabou quase ofuscando o também boêmio porém sóbrio e elegante Guilherme na parceria. Não foram raras as ocasiões em que se ouviram intérpretes cantando os célebres versos "tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor" e em seguida exaltando "o grande poeta que foi Nelson Cavaquinho".
Injustiças à parte, surgem em Samba Guardado, de dentro da famosa "pasta cinza" - onde guarda as músicas - sete parcerias com Nelson que nunca haviam sido gravadas (ou haviam, mas permaneciam desconhecidas do público. Algumas foram recentemente lançadas no volume dedicado a Nelson da série A Música Brasileira Deste Século Por Seus Autores e Intérpretes). Uma delas, Consciência, abre o disco, mostrando de cara a enxuta voz de Guilherme, lapidada pela vivência seresteira e pela experiência de cantor de rádio nos anos 50 (ele tem até hoje Orlando Silva como maior referência de cantor). É um samba em tom maior, alegre até, apesar de versos como "hoje a derrota te persegue/ a consciência manda eu te socorrer". Choro do Adeus, gravado em 75 pela rainha do gênero, Ademilde Fonseca, é um típico choro-canção, cheio de auto-referências instrumentais (a letra fala de vários instrumentos, que solam frases nos momentos exatos). Já a linda Cinza tem todos os ingredientes característicos dos sambas mais famosos da dupla: frases musicais genialmente simples, tristes e dolentes, preenchidas por versos que estilhaçam a alma: "eras o meu mundo/ eras o meu bem/ mas agora tudo é cinza/ não tenho amor, não tenho ninguém". Tudo isso embalado pela levada cadenciada do instrumental e pela presença do coro. Caso parecido é Erva Daninha, samba que traz uma rara solução poético-musical, privilegiando na rima a penúltima palavra do verso, e não a última, no refrão "eu sou erva daninha/ porque tu és a minha raiz". Cássia Eller acrescenta - e muito - dividindo os vocais com Guilherme. O contraste total entre a voz rascante da cantora e a impostação formal do compositor (flagrante na engraçada foto dos dois, no encarte) funciona magicamente bem. As pérolas seguem, com O Bem Querer, Me Esquece ("não pense que o seu sorriso/ vai me trazer a paz/ com a maldade que você me fez/ meu coração não lhe aceita mais") e o surpreendente samba amaxixado (!) Pomba da Paz.
As músicas assinadas apenas por Guilherme não ficam devendo absolutamente nada. Abismo e Maria mostram um compositor maduro, seguro de seu estilo. Aliás, pouca gente sabe, mas Guilherme, admirador confesso de Castro Alves, é parceiro de Carlos Drummond de Andrade. Há alguns anos, aceitou o convite feito por uma produtora holandesa e musicou O Que Se Passa na Cama, um dos "poemas eróticos" do poeta mineiro, publicados postumamente. Maria é um samba-canção das antigas, com a luxuosa participação de Luiz Melodia, se arriscando em notas muito mais altas do que seu registro usual. Bem-sucedido, Melodia entra no clima vozeirão e se mostra intérprete versátil. Outra ótima surpresa é Jogo Desonesto, parceira de Guilherme e Nelson Sargento, que faz uma discretíssima participação no finalzinho, cantando apenas a frase "Não há...". Há ainda dois partidos-altos em parceria com o filho Juarez de Brito. É neles que Guilherme se solta mais, tanto na engraçada letra de A Vegetariana quanto na cadenciada A Canoa Virou, que encerra o CD.
Samba Guardado nasce clássico, não só pela qualidade das composições mas também pelo cuidado da produção, autêntica e caprichada, sob a batuta do diretor musical Paulão 7 Cordas. Além da capa, o encarte também é bonito, com as letras das músicas, e uma rara foto de Guilherme sorrindo na contracapa. Até Dona Nena, sua mulher há 56 anos, disse que o flagrante é tão raro que a foto deveria estar na capa. Recentemente, Guilherme também foi homenageado com um museu, na cidade de Conservatória (RJ), a capital brasileira da seresta. E há um documentário em andamento, realizado pela UFF (Universidade Federal Fluminense), contando a sua vida. Afinal, ele mesmo já havia avisado, em Quando Eu Me Chamar Saudade: "Por isso é que eu penso assim/ se alguém quiser fazer por mim/ que faça agora".(Nana Vaz de Castro)
Injustiças à parte, surgem em Samba Guardado, de dentro da famosa "pasta cinza" - onde guarda as músicas - sete parcerias com Nelson que nunca haviam sido gravadas (ou haviam, mas permaneciam desconhecidas do público. Algumas foram recentemente lançadas no volume dedicado a Nelson da série A Música Brasileira Deste Século Por Seus Autores e Intérpretes). Uma delas, Consciência, abre o disco, mostrando de cara a enxuta voz de Guilherme, lapidada pela vivência seresteira e pela experiência de cantor de rádio nos anos 50 (ele tem até hoje Orlando Silva como maior referência de cantor). É um samba em tom maior, alegre até, apesar de versos como "hoje a derrota te persegue/ a consciência manda eu te socorrer". Choro do Adeus, gravado em 75 pela rainha do gênero, Ademilde Fonseca, é um típico choro-canção, cheio de auto-referências instrumentais (a letra fala de vários instrumentos, que solam frases nos momentos exatos). Já a linda Cinza tem todos os ingredientes característicos dos sambas mais famosos da dupla: frases musicais genialmente simples, tristes e dolentes, preenchidas por versos que estilhaçam a alma: "eras o meu mundo/ eras o meu bem/ mas agora tudo é cinza/ não tenho amor, não tenho ninguém". Tudo isso embalado pela levada cadenciada do instrumental e pela presença do coro. Caso parecido é Erva Daninha, samba que traz uma rara solução poético-musical, privilegiando na rima a penúltima palavra do verso, e não a última, no refrão "eu sou erva daninha/ porque tu és a minha raiz". Cássia Eller acrescenta - e muito - dividindo os vocais com Guilherme. O contraste total entre a voz rascante da cantora e a impostação formal do compositor (flagrante na engraçada foto dos dois, no encarte) funciona magicamente bem. As pérolas seguem, com O Bem Querer, Me Esquece ("não pense que o seu sorriso/ vai me trazer a paz/ com a maldade que você me fez/ meu coração não lhe aceita mais") e o surpreendente samba amaxixado (!) Pomba da Paz.
As músicas assinadas apenas por Guilherme não ficam devendo absolutamente nada. Abismo e Maria mostram um compositor maduro, seguro de seu estilo. Aliás, pouca gente sabe, mas Guilherme, admirador confesso de Castro Alves, é parceiro de Carlos Drummond de Andrade. Há alguns anos, aceitou o convite feito por uma produtora holandesa e musicou O Que Se Passa na Cama, um dos "poemas eróticos" do poeta mineiro, publicados postumamente. Maria é um samba-canção das antigas, com a luxuosa participação de Luiz Melodia, se arriscando em notas muito mais altas do que seu registro usual. Bem-sucedido, Melodia entra no clima vozeirão e se mostra intérprete versátil. Outra ótima surpresa é Jogo Desonesto, parceira de Guilherme e Nelson Sargento, que faz uma discretíssima participação no finalzinho, cantando apenas a frase "Não há...". Há ainda dois partidos-altos em parceria com o filho Juarez de Brito. É neles que Guilherme se solta mais, tanto na engraçada letra de A Vegetariana quanto na cadenciada A Canoa Virou, que encerra o CD.
Samba Guardado nasce clássico, não só pela qualidade das composições mas também pelo cuidado da produção, autêntica e caprichada, sob a batuta do diretor musical Paulão 7 Cordas. Além da capa, o encarte também é bonito, com as letras das músicas, e uma rara foto de Guilherme sorrindo na contracapa. Até Dona Nena, sua mulher há 56 anos, disse que o flagrante é tão raro que a foto deveria estar na capa. Recentemente, Guilherme também foi homenageado com um museu, na cidade de Conservatória (RJ), a capital brasileira da seresta. E há um documentário em andamento, realizado pela UFF (Universidade Federal Fluminense), contando a sua vida. Afinal, ele mesmo já havia avisado, em Quando Eu Me Chamar Saudade: "Por isso é que eu penso assim/ se alguém quiser fazer por mim/ que faça agora".(Nana Vaz de Castro)
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