Samba-Enredo

"No começo não havia samba enredo, o mais cantado na quadra era o que valia para o desfile", informa um mestre da matéria, o portelense Jair de Araujo Costa, o Jair do Cavaquinho. Em 1962, por sinal, ele projetou-se através de um samba de quadra em sua escola, Meu Barracão de Zinco, gravado com sucesso por Jamelão. A pré-história do gênero, no Rio de Janeiro, foi marcada por sambas de Cartola e Carlos Cachaça na Estação Primeira de Mangueira como Pudesse meu Ideal, de 1932 ou Homenagem (só de Cachaça) do ano seguinte, um dos primeiros a incluir personagens da história do Brasil. Cartola e Cachaça emplacariam ainda um segundo lugar para a verde-e-rosa no desfile de 1936 com O Destino Não Quis. Modificado (inclusive no título), reforçado por uma segunda parte composta por José Gonçalves, o Zé Com Fome, este samba seria gravado com sucesso por Aracy de Almeida como Não Quero Mais em 1936 (sem o nome de Cartola com o nome verdadeiro de Carlos Cachaça grafado errado) e finalmente se transformaria num clássico da retomada do samba nos 70 com o título de Não Quero Mais Amar a Ninguém nas vozes de Paulinho da Viola e do próprio Cartola.

É que nesses primórdios, o samba que as escolas levavam para a avenida tinha apenas a primeira parte, a outra ficava livre para ser versada, improvisada na hora. Esta gravação de Aracy antecede a que é oficialmente considerada, inclusive pela Enciclopédia da Música Brasileira (Art Editora) a primeira gravação comercial de um samba enredo, a de Natureza Bela!... (de autoria de dois compositores profissionais Henrique Mesquita e Felisberto Martins) por Gilberto Alves em 1942, seis anos depois da composição ter sido utilizada como enredo pela escola Unidos da Tijuca.

Em 1934, com Meu Grande Amor, estreava na escola Prazer da Serrinha outra dupla que seria responsável pelo formato básico do samba-enredo (antes da aceleração dos desfiles), o filho de pastor protestante Silas de Oliveira (Assunção) (1916-1972) e o ex-jornaleiro Décio Antonio Carlos, que se tornaria conhecido por Mano Décio da Viola (1909-1984). Juntos, inicialmente na Serrinha e depois no resultante Império Serrano, eles compuseram alguns dos maiores clássicos do ramo como Conferência de São Francisco(1945), Exaltação a Duque de Caxias (1955), Medalhas e Brasões (1960) e Heróis da Liberdade (com Manoel Ferreira) (1969), enredo que incomodou os censores da ditadura recrudescida, e Apoteose ao Samba (1974). Com outros parceiros, Mano Décio ainda assinaria mais clássicos como Tiradentes(com Penteado e Estanislau Silva), de 1949, Batalha Naval do Riachuelo (com Penteado e Molequinho), de 1951 e Silas de Oliveira outros tantos, como Os Cinco Bailes da Corte ou Os Cinco Bailes Tradicionais da História do Rio (com Bacalhau e a estreante D. Ivone Lara), em 1966, São Paulo Chapadão de glória(com Joaci Santana), de 1967, além dos solos Aquarela Brasileira (1964) e Pernambuco, Leão do Norte (1968).

Desde que em 1939, em pleno Estado Novo do ditador Getulio Vargas, a escola Vizinha Faladeira foi desclassificada por causa do enredo Branca de Neve e os Sete Anões, os temas e personagens da história do país (sempre em clima de exaltação patriótica) obrigaram artífices como Silas & Décio a desdobrarem-se para evitar a pieguice, e sem sair do ufanismo encaixar letras quilométricas em melodias assobiáveis.

Protesto
No final dos 60, novas dissidências apareceriam com o desembarque do partideiro Martinho José Ferreira, o Martinho da Vila Isabel através de um samba enredo compactado, Carnaval de Ilusões (com Gemeu), de 1967 que não foi bem aceito pelo júri, incluindo o compositor Chico Buarque. Martinho protestaria em Caramba ("Malha malha, malhador/ que não aceita a evolução/ (...) caramba, nem o Chico entendeu o enredo do meu samba"). E seguiria mexendo no formato em Quatro Séculos de Modas e Costumes (1968) e Iaiá do Cais Dourado (1969). Em 1971, novo sobressalto, o capixaba Zuzuca (Adil de Paula) estiliza o ritmo fluminense caxambú no desfile do Salgueiro em Festa para um Rei Negro (que ficaria conhecida pelo refrão "pega no ganzê") e ganha as paradas de sucesso, ultrapassando o âmbito carnavalesco.

Artistas de fora das escolas como João Bosco e Aldir Blanc (Mestre-Sala dos Mares), Chico Buarque e Francis Hime (Vai Passar) ampliaram as possibilidades do gênero, que ganha letras mais politizadas e da exaltação parte para a crítica de costumes. Filho de uma familia "metida a nobre, que achava samba coisa de crioulo", o Procurador Federal e advogado Gustavo Adolfo de Carvalho Baêta Neves, morto em 1987 aos 52 anos, encarnou outro caso à parte de fascínio pelo samba enredo. Com o pseudônimo de Didi (e em muitos casos cedendo a autoria para outros compositores) ele escreveu nada menos de 22 sambas-enredo, entre eles as obras primas O Amanhã e É Hoje, ambos para a União da Ilha. Foi homenageado pela escola em 1991 através de De Bar em Bar, Didi um Poeta (Franco).

Da década de 80 em diante, com a invasão das escolas pelas classes média e alta e a transformação do desfile em show bizz cada vez mais opulento, também o samba enredo mudou. Sua velocidade foi sendo aumentada para permitir que o gigantismo das escolas não atrapalhasse a rígida cronometragem da comissão julgadora. As enormes vendagens dos discos com os sambas-enredos vencedores de cada escola motivaram disputas acirradas entre compositores, com torcidas subsidiadas e rateio do bolo por um número cada vez maior de parceiros. Depois de dominar o período carnavalesco tirando espaço das marchinhas e dos próprios sambas de carnaval, o samba enredo sofre, a partir de meados dos 90, um processo de exaustão da fórmula com discos em queda de vendagem e o alcance de suas músicas cada vez mais restrito aos dias de folia.

Músicas
Não Quero Mais (Cartola/ Carlos Cachaça/ Zé da Zilda) – Aracy de Almeida
Vale do São Francisco (Cartola/ Carlos Cachaça) – Cartola
Homenagem (Carlos Cachaça) – Carlos Cachaça
Natureza Bela!...(Henrique Mesquita/ Felisberto Martins) – Gilberto Alves
Tiradentes (Mano Décio/ Penteado/ Estanislau Silva) – Elis Regina
Apoteose ao Samba (Silas de Oliveira/ Mano Décio) – Paulinho da Viola
Cântico à Natureza (Jamelão/ Nelson Sargento/ A Lourenço) – Jamelão
Heróis da Liberdade (Silas de Oliveira/ Mano Décio) – João Nogueira
O Mundo Encantado de Monteiro Lobato (Darcy da Mangueira/ Batista/ Luiz) – Elza Soares
Iaiá do Cais Dourado (Martinho da Vila/ Rodolfo) – Martinho da Vila
Festa para um Rei Negro (Zuzuca) – Jair Rodrigues
Bahia de Todos os Deuses (Bala/Manoel) – Elza Soares
Os Cinco Bailes na História do Rio (Silas de Oliveira/ Bacalhau/ D. Ivone Lara) – D. Ivone Lara
Xica da Silva (Anescar/Noel Rosa de Oliveira) – Noel Rosa de Oliveira
Ilu Ayê (Cabana/ Norival Reis) – Clara Nunes
Foi um Rio Que Passou em Minha Vida (Paulinho da Viola) – Paulinho da Viola
Macunaíma (Heróis da Nossa Gente) (David Correa/ Norival Reis) – Marçal
Lendas e Mistérios da Amazônia (Catoni/ Jabolô/ Waltenir) – Chico Buarque
O Amanhã (João Sérgio) – Simone
Bum Bum Paticumbum Prugurundum (Beto sem Braço/ Aluisio Machado) – Império Serrano
É Hoje (Didi/ Mestrinho) – Caetano Veloso
Sonhar Com Rei Dá Leão (Neguinho da Beija Flor) – Neguinho da Beija Flor
No Reino da Mãe do Ouro (Tolito/ Rubens da Mangueira) – Jamelão
Mestre-Sala dos Mares (João Bosco/ Aldir Blanc) – João Bosco
Vai Passar (Chico Buarque/ Francis Hime) – Chico Buarque
Kizomba, Festa da Raça (Luis Carlos da Vila/ Rodolpho/ Jonas) - G.R.E.S Unidos da Vila Isabel
Lenda das Sereias, Rainha do Mar (Vicente Mattos/ Dinoel/ Arlindo Veloso) – Marisa Monte

Tárik de Souza