O MAIOR PATRIMÔNIO DA MÚSICA SERTANEJA

Florêncio / Raul Torres (1971)

1971
Copacabana
Crítica

Cotação:

Descontado o exagero do título, eis um bom disco para quem quer conhecer o sertanejo na origem caipira, antes do banho de loja country/Jovem Guarda que cevaria boa parte do breganejo atual. Parceiro de João Pacífico (1909-1998) em clássicos do ramo como Chico Mulato, No Mourão da Porteira, Pingo d’Água e Cabocla Teresa, o paulista de Botucatu Raul Montes Torres (1906-1970) tanto gravou solo quanto formou diversas duplas em sua longa carreira. Ele alternou a música com profissões como carroceiro, lenheiro de trem e cocheiro do antigo Jardim da Luz, na capital paulista, carta de habilitação nº 5.732, tirada em 1922, como informa o historiador Abel Cardoso Junior no elucidativo texto de contracapa de uma reedição da obra de Torres do selo Revivendo, em 1990. O encarte deste O Maior Patrimônio... não traz nem a data do lançamento original, situando o disco em 1971, um ano após a morte de RT, edição do selo AMC, iniciais de Adiel Macedo de Carvalho, que então comandava a gravadora Copacabana/Beverly de onde procedem os fonogramas.

Influenciado inicialmente pelo sucesso dos nordestinos Turunas da Mauricéia, Augusto Calheiros e a dupla Jararaca e Ratinho, Raul Torres começou compondo emboladas e formou um grupo intitulado Gente do Norte para gravar com o pseudônimo de Bico Doce na célebre "série caipira" do pioneiro Cornélio Pires. Entre as duplas que integrou, além da com João Pacífico, com quem gravou na própria EMI outros clássicos, Festa da Bicharada e Seu João Nogueira (com participação de Aurora Miranda) em 1935/6, as mais bem-sucedidas foram com o sobrinho Serrinha (Antenor Serra) e com João Batista Pinto, o Florêncio, nascido em Barretos. O duo teve duas fases, a mais duradoura a partir de 1942, incluindo a gravação três anos depois de A Moda da Mula Preta, sucesso nacional pelo nordestino (numa inversão de influências) Luiz Gonzaga, em 1948.

A seleção deste disco arrebanha tanto uma politicamente incorreta (mas bem engraçada) moda de viola A Mulher e o Trem ("mulher de seus 30 anos/ que já teve desenganos/ ficou noiva e não casou/ é trem que saiu lotado/ na reta deu resultado/ e na subida parou/ esse é trem que teve força/ agora falta vapor"), da dupla Torres & Pacífico, registrada inicialmente em 1940, quanto o samba sertanejo Trepei na Roseira (sem duplo sentido) do mesmo Torres com um conterrâneo de Botucatu de uma efêmera dupla, Joaquim Vermelho. Dele ainda em outra dupla (com Azulão) é a embolada de sucesso Jacaré no Caminho, recriada aqui. O ecletismo de Torres permite incursões sulistas (Trovas Gaúchas) mais embolada (Balaceiro da Osina, sic) e até um samba com as vozes em terças, acordeon e violão de sete cordas (Vila Nova).

Mas não faltam típicos cateretê (Rosa Branca), rasqueado (Não Me Diga Não) além da característica moda de viola, em recorrentes acordes básicos do instrumento que nomeia o estilo e alicerçam versos narrativos como os de Mula Báia, Casamento da Onça e Marica Crioulinha. Esta última (de Florêncio) traça um retrato do racismo enrustido do país da miscigenação: "Meu pai, eu quero casar com a Marica Crioulinha/ é verdade que ela é preta/ mas é muito bonitinha". O personagem da música enfrenta a oposição dos parentes e contra ataca: "a cor não vale nada/ e a sorte é Deus quem dá". E termina casado ("hoje eu deito na beirada/ e a Marica tá no canto") com a simplicidade (e franqueza) que a música do sertão perdeu em sua imigração forçada (tangida pelas crises econômicas) para as selvas urbanas.

(Tárik de Souza)
Faixas
Ouvir todas em sequência
1 Jacaré no caminho Ouvir
(Raul Torres, Atílio Grani)
2 Trovas gaúchas Ouvir
(Raul Torres)
3 Vila Nova Ouvir
(Raul Torres)
4 Trepei na roseira Ouvir
(Raul Torres, Joaquim Vermelho)
5 Não me diga não Ouvir
(Raul Torres, Juan Domingues Marciel)
6 Mariazinha criminosa Ouvir
(Raul Torres)
7 Balanceiro da Osina Ouvir
(Raul Torres)
8 Rosa branca Ouvir
(José Amancio)
9 A mulher e o trem Ouvir
(João Pacífico, Raul Torres)
10 Mulher baia Ouvir
(Raul Torres)
11 Casamento da onça Ouvir
(Raul Torres)
12 Marica criolinha Ouvir
(Florêncio)
 
O MAIOR PATRIMÔNIO DA MÚSICA SERTANEJA