<i>Obrigado, Cartola!</i>: musical honra o sambista carioca

Peça em cartaz no Rio de Janeiro conta, em tom alegórico, a vida e obra do compositor de As Rosas Não Falam

Marco Antonio Barbosa
09/01/2004
Obrigado, Cartola! é o título de um samba inédito, novíssimo, feito por Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho em homenagem a Angenor de Oliveira - o eterno mangueirense Cartola, monstro sagrado do samba carioca e da história da música popular brasileira. Não é apenas a letra da canção, que reza "o mundo gira e se rende emocionado/e ao Poeta vem dizer ‘muito obrigado’ ", que vem honrar o autor de As Rosas Não Falam. De autoria de Sandra Louzada e com direção de Vicente Maiolino, chega aos palcos um musical - com o mesmo título da música de Paulinho e Hermínio, a qual aliás está na trilha sonora - que reconta a vida de Cartola, tortuosa mas cheia de glória artística. Em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro (RJ) a partir desta sexta (dia 9), Obrigado, Cartola!, a peça, traça um painel muito próprio da história do sambista número um da Estação Primeira de Mangueira.

Assim como no musical Somos Irmãs, também de Sandra, que contava a vida das irmãs cantoras Dirce e Linda Batista, Obrigado, Cartola! se passa em dois planos distintos. Os sucessos de Cartola, como Quem Me Vê Sorrindo, Tive Sim, Cordas de Aço e O Mundo É um Moinho, estão em cena. Mas a trama gira em torno do compositor Bento (vivido pelo ator Flávio Bauraqui), que está criando um samba para a Mangueira contando a vida de Cartola. Para escrever sobre o mestre, o compositor informa-se sobre e envolve-se na trajetória dele; realidade e fantasia passam a fazer parte de seu cotidiano, via as músicas e lembranças de Cartola. Na "realidade", Bento tenta compor o samba; na "alegoria", a vida do mitológico sambista, também interpretado por Bauraqui, é contada como se o público assistisse ao desfile da Mangueira na avenida. "Precisava da figura de um homem comum para mostrar do que o brasileiro é capaz com sua força. Na verdade, o grande homenageado é o brasileiro, através de Cartola", exemplifica a autora.

Descortinam-se então personagens importantes na trajetória de Cartola. A mais marcante é Dona Zica (Mariah da Penha), segunda mulher do compositor e sua companheira mais constante, por décadas a fio. Mas também há espaço para gigantes do samba que conviveram mais - como Carlos Cachaça, principal parceiro de Cartola, vivido aqui por Marco Rodrigues - ou menos - a exemplo de Noel Rosa (Eber Inácio) - com o sambista. Gente que tornou os sambas de Cartola famosos, ajudando-o a sair do ostracismo a que foi relegado nos anos 50 e 60, também marca presença. Nara Leão (interpretada por Laura Castro), Zé Keti (Deuclides Gouveia), Elizeth Cardoso (Samanta Schmutz) e outros passam pela peça, que percorre o tempo entre 1928 (ano de fundação da Mangueira) a 1980 (ano da morte de Cartola).

Sob direção de Vicente Maiolino, Obrigado, Cartola! metaforiza a vida do sambista num desfile carnavalesco. Para tanto, contou com figurinos de Milton Cunha (carnavalesco da escola de samba carioca São Clemente) e cenografia de Ney Madeira - que recria a um só tempo o barraco onde Cartola morou, no Morro da Mangueira, o bar onde o personagem Bento compõe o enredo em homenagem ao mestre, e o espaço imaginário (no centro do palco) onde os fatos importantes da vida de Cartola vão se desenrolando. Com 22 canções escolhidas pela autora, o musical acaba reconstituindo a nata da produção do compositor. Não faltam os clássicos como Ensaboa, Autonomia, Corra e Olhe o Céu e Acontece. Pérolas menos famosas, como o primeiro samba feito para a Mangueira (Chega de Demanda, de 1928), também aparecem. A parte musical, feita ao vivo, fica a cargo de um grupo composto por Fabiano Salek (percussão), Lucas Porto (violão), Marcelo Bernardes (sax / flauta), Oscar Bolão (bateria), Rui Alvim (clarinete) e Nilze Carvalho (cavaquinho, violão e voz). O próprio Flávio Bauraqui, veterano em musicais, se encarrega de "incorporar" a voz de Cartola nas interpretações dos sambas.

Admiradora de Cartola por influência do pai, fã do sambista, Sandra Louzada mergulhou em 2002 no universo do mangueirense para emergir com o texto da peça. Tudo começou com a proposta de um trio de jovens e inexperientes produtoras teatrais, Julia Rabello, Laura Castro e Marta Nobrega, que procuraram a autora encomendando um texto biográfico sobre Cartola. "Cheguei a duvidar da capacidade delas, mas as três arregaçaram as mangas e buscaram os patrocínios", fala Sandra sobre as produtoras, que cuidaram do orçamento de R$ 520 mil. A autora também frisa o apoio que teve da família de Cartola, incluindo de Dona Zica (que morreu em 2002). "Mesmo doente, no hospital, Dona Zica me falava que queria estar bonita para assistir à estréia da peça", fala. A temporada de Obrigado, Cartola! no CCBB-RJ vai até 28 de março (de quinta a domingo).