"Sou mulher de um homem só"
Fiel a pouquíssimos parceiros, Guinga conta que a primeira parceria com Aldir Blanc não deu certo e fala sobre as principais influências de sua formação musical
Nana Vaz de Castro
29/03/2001
CliqueMusic — Quando você compõe você escreve ou grava as suas músicas?
Guinga — Nem uma coisa nem outra, eu memorizo. Nem sei escrever música, só leio um pouco.
CliqueMusic — E a sua memória é excelente para outras coisas também?
Guinga — É, para números, endereços, telefones, muitas coisas. Há uns dois anos reconheci um cara, que apareceu no meu consultório, e que tinha estudado comigo no curso de admissão ao ginásio, quando nós tínhamos dez anos! A minha memória é assim, de elefante, e a das minhas filhas também.
CliqueMusic — Suas filhas não seguiram a carreira musical (uma estuda Desenho Industrial, a outra, Direito), elas curtem que tipo de música?
Guinga — Uma delas não tem sensibilidade musical nenhuma, só gosta de música ruim. Às vezes ouve uma música boa e até gosta. Do disco novo, ela só gosta de um samba meu com o Nei Lopes. Eu fiz uma música em homenagem a ela, com o nome dela, Melodia Branca (o nome dela é Branca), e ela disse pra mim, toda chorosa, "poxa, papai, eu queria que você tivesse feito a minha homenagem com aquele samba..."! Uma sinceridade... (risos). Mas a minha filha mais velha, a que estuda Direito, tem uma sensibilidade musical monstruosa, só gosta de obra-prima, só gosta do que é o requinte da música boa, tem uma sensibilidade apuradíssima, ela percebe a beleza de duas notas. Tanto que ela e a mãe são os meus parâmetros, quando eu componho vou logo mostrar para elas. Minha mulher também tem uma sensibilidade musical muito grande. Mas a Branca de vez em quando pára para ouvir alguma música que eu estou ouvindo e gosta. Ela adora algumas coisas de Villa-Lobos, de tanto ouvir, tanto ouvir, aquilo acabando ficando na cabeça, vai educando.
CliqueMusic — A mesma coisa que acontece com música ruim, de tanto ouvir acaba deseducando.
Guinga — É por aí. Eu aposto no exercício da música boa. Acredito que quando ela amadurecer mais só vai ouvir música boa, de tanto conviver. Porque tem muita coisa que eu gosto que me foi colocada pelos meus pais. Música lírica italiana, por exemplo, que é uma coisa que quase ninguém tem muito saco de ouvir, eu amo. Aprendi a gostar porque meu pai me botava pra ouvir. Sou capaz de ouvir uma ópera inteira, mesmo sem gostar de determinadas coisas da ópera, mas entendo e gosto de muita coisa que o pessoal em geral acha sacal, porque exercitei. Meu pai me botava pra ouvir música erudita.
CliqueMusic — O que de música erudita ele gostava de ouvir?
Guinga — O tradicional, Bach, Beethoven, Chopin, que ele adorava. E também compositores limítrofes, que faziam belas coisas orquestrais, bonitas, simples e contemplativas. Meu pai gostava disso, e gostava de Chopin, Bach, Villa-Lobos, de alguns franceses, Gabriel Fauré, russos, Tchaikovsky, italianos, Puccini, Verdi.
CliqueMusic — Suas harmonias são consideradas impressionistas, na onda de Debussy, Ravel, Fauré, os franceses do início do século XX. Essa música te influenciou?
Guinga — Eu gosto muito dessa música, e é impossível não ser influenciado pelo que se gosta. É lógico que tem que procurar o seu caminho, mas por exemplo, Impressões Seresteiras, de Villa-Lobos, tem uma influência enorme do impressionismo. O próprio nome, Impressões. É o impressionismo brasileiro.
CliqueMusic — Mas apesar de toda essa influência erudita, impressionista, a sua vivência musical começou com o samba, não?
Guinga — Minha vivência musical, na prática, foi em casa, com a seresta brasileira. Minha mãe sempre cantou muita seresta e os meus tios, irmãos dela, tocavam. Logo depois foi a bossa nova. Eu fui morar em Jacarepaguá e lá tinha um vizinho, Paulinho Cavalcanti, que me iniciou na bossa nova. Ele tocava e cantava tudo do João Gilberto, igualzinho a ele. O Paulinho me jogou a bossa nova na mão, eu ficava vendo ele tocando o dia inteiro na rua, chegava em casa, ouvia seresta. Aí nesse período até neguei um pouco a seresta, porque a bossa nova é uma negação da seresta, esteticamente. Mas eu dei sorte, porque tive tudo isso na minha alma. E também o jazz, porque na minha família nós tínhamos um tio que cantava seresta, cantava porque foi criado na seresta, mas o que ele ouvia era o jazz. Ele morreu e deixou um apartamento fechado em Niterói lotado de discos de jazz. Foi um dos maiores colecionadores de jazz do Brasil.
CliqueMusic — E com quem ficou a coleção?
Guinga — Com a viúva e as duas filhas, que gostam muito de jazz. Uma delas, principalmente, que inclusive imita a Billie Holiday igualzinho, como eu nunca vi ninguém imitar. Mas você vê como é essa coisa da herança. Eu nunca fui fanático pela Billie Holiday. A cantora de quem eu era fanático da música americana era a Ella Fitzgerald. Mas a minha filha mais velha é louca pela Billie Holiday desde menina, pedia para eu comprar os discos desde cedo. Então o que aconteceu? De tanto amanhecer o dia com a minha filha ouvindo Billie Holiday na vitrola, eu peguei uma paixão por ela. Na realidade, eu transportei a paixão que eu tenho pela minha filha para a Billie Holiday, que ela tanto gosta. De tanto ouvir, eu fiz uma música, como se fosse a Billie Holiday cantando. Está gravada no novo disco.
CliqueMusic — E como se chama?
Guinga — Yes, Zé Manés . Eu entreguei para a Ana de Holanda, vai estar no disco dela. Mas tem a alma da Billie Holiday. Eu fiz a música intuindo, como se fosse a Billie Holiday cantando. De tanto ouvir, entrou no meu sangue. Minha filha ouve e também acha. E no meu disco quem canta é o Chico [Buarque].
CliqueMusic — E parcerias com o Chico? Depois de Você, Você (gravada no disco As Cidades) teve alguma outra?
Guinga — É melhor você ligar pra ele e perguntar (risos).
CliqueMusic — Você, Você levou 8 anos para ele botar letra, não é?
Guinga — É. Se ele continuar nesse ritmo de 8 em 8 anos para fazer música pra mim, do jeito que já estamos numa idade avançada... Só na outra encarnação. Mas eu adoraria que ele fizesse. Eu acho que ele adoraria também, sei que ele gosta das minhas músicas. Tem melodias que eu entreguei a ele e sei que ele adoraria ter letrado, mas ele é um compositor que se basta.
CliqueMusic — Você já compõe pensando em uma parceiro específico?
Guinga — Meu parceiro é o Aldir Blanc. Esse é que é o meu parceiro. Então inevitavelmente quando estou compondo eu acho que vou entregar ao Aldir para letrar. Mas já fiz algumas músicas pensando na letra do Chico, isso antes de ser parceiro do Aldir.
CliqueMusic — Ao longo dos seus discos o que se nota é um aumento na diversidade de parceiros. No primeiro (Simples e Absurdo, 91 ), todas as 11 faixas eram parcerias Guinga-Aldir. No segundo (Delírio Carioca, 93 ), duas são parcerias com Paulo César Pinheiro e 13 com Aldir. Em Cheio de Dedos (96) começam as faixas instrumentais (11) contra três letradas pelo Aldir. E no Suíte Leopoldina (99) já tem parcerias com Nei Lopes, Mauro Aguiar, Celso Viáfora e Mariana Blanc, além de três com o Aldir. E no Cine Baronesa já tem outros...
Guinga — Além do Aldir, tem Nei Lopes e Sérgio Natureza. Mas meu parceiro é o Aldir Blanc. Hoje em dia eu tenho muita vontade de fazer uma obra com o Nei Lopes também, porque ele é um gênio. E o Serginho Natureza é um grande artista. Mas eu não gosto de fazer música com muitos compositores, não. Eu gosto de falar a frase "Sou mulher de um homem só". No fundo, o que eu quero é continuar minha obra com o Aldir, e é claro que vamos continuar, somos amigos e parceiros, e ir construindo uma obra com o Nei, que é um cara que eu amo também, e o Sérgio, sempre que ele quiser letrar e eu tiver possibilidade, ele vai letrar uma música minha.
CliqueMusic — Como funciona sua parceria com o Aldir?
Guinga — Como com todos os outros, eu gravo e eles levam a fita.
CliqueMusic — E já aconteceu de ele não gostar de alguma música ou você não gostar de uma letra dele?
Guinga — Já aconteceu. A gente tem essa liberdade, mas normalmente ele gosta do que eu faço e eu gosto do que ele faz. O Aldir é um gênio, um monstro como letrista. O que é mais comum é ele me surpreender com uma obra-prima.
CliqueMusic — As música do Paulinho Pinheiro que tem no Delírio Carioca, Saci e Passarinhadeira , são as mais líricas e lentas do disco. É proposital?
Guinga — Não, não tem isso, porque eu e Paulinho rompemos a parceria. Eu fui ser parceiro do Aldir porque não compunha mais com o Paulinho, a gente deixou de ser amigo e parceiro, foi uma ruptura. Mas claro, o Paulinho é um gênio.
CliqueMusic — Como começou a sua parceria com o Aldir?
Guinga — Por intermédio do Raphael Rabello, que estava compondo com o Aldir. Eu disse que gostaria de fazer alguma coisa com ele (Aldir), porque eu estava rompido com o Paulo e sem parceria na época. Aí o Raphael falou com o Aldir, que disse que também adoraria letrar coisas minhas. Então marcamos um encontro e eu fui à casa do Aldir.
CliqueMusic — Qual foi a primeira música que vocês fizeram juntos?
Guinga — A primeira não ficou boa (risos). Eu achei que a música não estava campeã, o Aldir só letrou a metade porque sentiu que eu não estava gostando da música, não deu certo. Aí a segunda música que nós fizemos, que na verdade foi a primeira, foi uma música chamada Esconjuros, que o Sergio Mendes gravou e a Mônica Salmaso também, para o próximo disco dela. É uma letra linda.
CliqueMusic — Você lembra de todas as letras que fazem para as suas músicas?
Guinga — Hoje em dia estou esquecido porque canto pouco as músicas, meus shows têm pouca coisa cantada, então tem algumas que eu esqueço a letra, mas se der uma passadinha eu lembro. Eu decoro sem saber que estou decorando. As músicas do novo disco já estão praticamente decoradas e eu nunca parei para aprender. Só de conviver com elas no estúdio, decoro, é normal. Uma letra que eu nunca parei para decorar foi Catavento e Girassol , que é uma letra longa, mas nunca esqueci, nunca ocorreu uma falha num show. Eu tenho boa memória, mas sou preguiçoso, tenho preguiça de cantar. Cantar pra mim é um esforço. Às vezes faço um show mais instrumental justamente por achar que eu sou um mau cantor.
CliqueMusic — Você já trabalhou a voz, fez aula de canto ou algo do tipo?
Guinga — Não. Jamais estudaria canto. Eu tenho uma relação ruim com a coisa formal da música. Não gosto de ver partitura, o visual da partitura me incomoda, é uma coisa engraçada. Eu detesto partitura. Mas acho que tem gente que é assim.
CliqueMusic — O ensino formal da música te incomoda?
Guinga — Incomoda, eu reajo, mas eu estudei violão cinco anos com o Jodacil Damasceno.
CliqueMusic — Quais os violonistas que você gosta de ouvir hoje em dia?
Guinga — Bom, tem os antigos, que a gente ama, mas dos novos, o que eu mais gosto de ouvir é o [quarteto de violões] Maogani. Pra mim é a melhor coisa de violão no Brasil, os melhores arranjos. Eu acho o Paulo Aragão [do Maogani] o maior arranjador de violão em atividade hoje.
CliqueMusic — É mesmo?
Guinga — É. Acho ele um gênio. Para mim, ele vai fazer uma carreira para ser o maior arranjador de violão do Brasil de todos os tempos. Pra falar a verdade, eu já acho ele o melhor. As introduções dele são as mais bonitas que eu já ouvi. O [Paulo] Bellinati também é outro grande arranjador de violão, de muito bom gosto, Célia Vaz também, escreve muito bonito. Arranjos virtuosos eu gosto muito dos do Marco Pereira. Mas o Paulo [Aragão] pra mim é muito impressionante. Ele ouve tudo. Os arranjos que ele fez para o meu novo disco, tem que ouvir. E o Marcus Tardelli, que também é do Maogani, é a maior vocação do violão que tem por aí. Ele é impressionante, é um dos violonistas mais perfeitos no momento, na música popular.
CliqueMusic — Você acha a nova geração de violonistas muito diferente da sua?
Guinga — Os violonistas que estão surgindo agora são muito virtuosos. Na minha época não tinha tantos, tinha um Baden e tal, era raro. Mas agora você viaja pelo Brasil e vê cada garoto de 19, 20 anos quebrando tudo! Fazendo coisas que pra mim são impossíveis.
CliqueMusic — Quem, por exemplo?
Guinga — Ah, vários. O Rogerinho e o Daniel, de Brasília, são dois assim. O Diego, também de Brasília é outro. O Caio [Márcio], filho do Paulo Sérgio Santos, Yamandu [Costa], Marcus Tardelli... Verdadeiros Pacos de Lucia estão nascendo no Brasil.
CliqueMusic — A que você atribui todo esse virtuosismo?
Guinga — À época que a gente vive, que é tão explosiva.
CliqueMusic — Qual o violão que você usa?
Guinga — Um Giannini, que eles me deram de presente. Quando a fábrica [Giannini] fez cem anos, contrataram um luthier e mandaram fazer dez violões especiais, aí me deram um. Mas acusticamente ele não é tão bom quanto plugado. E o meu sonho é ter um bom case (risos).
CliqueMusic — O que você ouve em casa?
Guinga — Eu não escuto CDs, não uso o aparelho de som, só escuto rádio. Não tenho a menor paciência de botar um CD e ficar ali ouvindo. Só quando eu sou obrigado, quando tenho que tirar uma harmonia ou algo assim. Se não, só ouço rádio, porque eu gosto da surpresa, de não saber o que vou ouvir. Mas só escuto a Rádio MEC, de música clássica. Eu adorava o programa Radar, que passava de madrugada, mas agora não tem mais, acabou a programação da madrugada da Rádio MEC, tiraram do ar. Gosto do rádio porque me surpreende, então quando a Rádio MEC me surpreendeu saindo do ar, fiquei muito chateado, era a única coisa que prestava no rádio do Rio de Janeiro.
CliqueMusic — Mas nenhum disco? Nunca? Nem os que você mais gosta?
Guinga — Eu ouço às vezes. Acho que o Tom Jobim era assim também. Toda vez que o Tom falava sobre música ele citava as mesmas músicas e os mesmos compositores. Eu ouço as mesmas coisas. Tem dez discos que eu tenho separados em casa e eu ouço sempre. Eu até tento mudar, mas não consigo.
CliqueMusic — Quais são esses discos?
Guinga — Clifford Brown [trompetista americano, 1930-56], um disco dele com cordas; Sexteto Radamés Gnattali, aquele disco que tem Meu Amigo Tom Jobim; Focus, do Stan Getz, que foi um disco que me impulsionou para a música quando eu tinha dez anos de idade; Aldeia, da Banda Mantiqueira; Samambaia, do Hélio Delmiro e César Camargo Mariano; Michel Legrand com Miles Davis, um disco que eles tocam Django [Reinhardt]; o disco do Ciro Pereira, que é um grande arranjador; e algumas coisas de serestas também, e clássicos, Villa-Lobos, Prokofiev, Lutoslawski, esses eu escuto na rádio MEC e gosto muito.
Guinga — Nem uma coisa nem outra, eu memorizo. Nem sei escrever música, só leio um pouco.
CliqueMusic — E a sua memória é excelente para outras coisas também?
Guinga — É, para números, endereços, telefones, muitas coisas. Há uns dois anos reconheci um cara, que apareceu no meu consultório, e que tinha estudado comigo no curso de admissão ao ginásio, quando nós tínhamos dez anos! A minha memória é assim, de elefante, e a das minhas filhas também.
CliqueMusic — Suas filhas não seguiram a carreira musical (uma estuda Desenho Industrial, a outra, Direito), elas curtem que tipo de música?
Guinga — Uma delas não tem sensibilidade musical nenhuma, só gosta de música ruim. Às vezes ouve uma música boa e até gosta. Do disco novo, ela só gosta de um samba meu com o Nei Lopes. Eu fiz uma música em homenagem a ela, com o nome dela, Melodia Branca (o nome dela é Branca), e ela disse pra mim, toda chorosa, "poxa, papai, eu queria que você tivesse feito a minha homenagem com aquele samba..."! Uma sinceridade... (risos). Mas a minha filha mais velha, a que estuda Direito, tem uma sensibilidade musical monstruosa, só gosta de obra-prima, só gosta do que é o requinte da música boa, tem uma sensibilidade apuradíssima, ela percebe a beleza de duas notas. Tanto que ela e a mãe são os meus parâmetros, quando eu componho vou logo mostrar para elas. Minha mulher também tem uma sensibilidade musical muito grande. Mas a Branca de vez em quando pára para ouvir alguma música que eu estou ouvindo e gosta. Ela adora algumas coisas de Villa-Lobos, de tanto ouvir, tanto ouvir, aquilo acabando ficando na cabeça, vai educando.
CliqueMusic — A mesma coisa que acontece com música ruim, de tanto ouvir acaba deseducando.
Guinga — É por aí. Eu aposto no exercício da música boa. Acredito que quando ela amadurecer mais só vai ouvir música boa, de tanto conviver. Porque tem muita coisa que eu gosto que me foi colocada pelos meus pais. Música lírica italiana, por exemplo, que é uma coisa que quase ninguém tem muito saco de ouvir, eu amo. Aprendi a gostar porque meu pai me botava pra ouvir. Sou capaz de ouvir uma ópera inteira, mesmo sem gostar de determinadas coisas da ópera, mas entendo e gosto de muita coisa que o pessoal em geral acha sacal, porque exercitei. Meu pai me botava pra ouvir música erudita.
CliqueMusic — O que de música erudita ele gostava de ouvir?
Guinga — O tradicional, Bach, Beethoven, Chopin, que ele adorava. E também compositores limítrofes, que faziam belas coisas orquestrais, bonitas, simples e contemplativas. Meu pai gostava disso, e gostava de Chopin, Bach, Villa-Lobos, de alguns franceses, Gabriel Fauré, russos, Tchaikovsky, italianos, Puccini, Verdi.
CliqueMusic — Suas harmonias são consideradas impressionistas, na onda de Debussy, Ravel, Fauré, os franceses do início do século XX. Essa música te influenciou?
Guinga — Eu gosto muito dessa música, e é impossível não ser influenciado pelo que se gosta. É lógico que tem que procurar o seu caminho, mas por exemplo, Impressões Seresteiras, de Villa-Lobos, tem uma influência enorme do impressionismo. O próprio nome, Impressões. É o impressionismo brasileiro.
CliqueMusic — Mas apesar de toda essa influência erudita, impressionista, a sua vivência musical começou com o samba, não?
Guinga — Minha vivência musical, na prática, foi em casa, com a seresta brasileira. Minha mãe sempre cantou muita seresta e os meus tios, irmãos dela, tocavam. Logo depois foi a bossa nova. Eu fui morar em Jacarepaguá e lá tinha um vizinho, Paulinho Cavalcanti, que me iniciou na bossa nova. Ele tocava e cantava tudo do João Gilberto, igualzinho a ele. O Paulinho me jogou a bossa nova na mão, eu ficava vendo ele tocando o dia inteiro na rua, chegava em casa, ouvia seresta. Aí nesse período até neguei um pouco a seresta, porque a bossa nova é uma negação da seresta, esteticamente. Mas eu dei sorte, porque tive tudo isso na minha alma. E também o jazz, porque na minha família nós tínhamos um tio que cantava seresta, cantava porque foi criado na seresta, mas o que ele ouvia era o jazz. Ele morreu e deixou um apartamento fechado em Niterói lotado de discos de jazz. Foi um dos maiores colecionadores de jazz do Brasil.
CliqueMusic — E com quem ficou a coleção?
Guinga — Com a viúva e as duas filhas, que gostam muito de jazz. Uma delas, principalmente, que inclusive imita a Billie Holiday igualzinho, como eu nunca vi ninguém imitar. Mas você vê como é essa coisa da herança. Eu nunca fui fanático pela Billie Holiday. A cantora de quem eu era fanático da música americana era a Ella Fitzgerald. Mas a minha filha mais velha é louca pela Billie Holiday desde menina, pedia para eu comprar os discos desde cedo. Então o que aconteceu? De tanto amanhecer o dia com a minha filha ouvindo Billie Holiday na vitrola, eu peguei uma paixão por ela. Na realidade, eu transportei a paixão que eu tenho pela minha filha para a Billie Holiday, que ela tanto gosta. De tanto ouvir, eu fiz uma música, como se fosse a Billie Holiday cantando. Está gravada no novo disco.
CliqueMusic — E como se chama?
Guinga — Yes, Zé Manés . Eu entreguei para a Ana de Holanda, vai estar no disco dela. Mas tem a alma da Billie Holiday. Eu fiz a música intuindo, como se fosse a Billie Holiday cantando. De tanto ouvir, entrou no meu sangue. Minha filha ouve e também acha. E no meu disco quem canta é o Chico [Buarque].
Guinga mostra suas novas composições
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Guinga — É melhor você ligar pra ele e perguntar (risos).
CliqueMusic — Você, Você levou 8 anos para ele botar letra, não é?
Guinga — É. Se ele continuar nesse ritmo de 8 em 8 anos para fazer música pra mim, do jeito que já estamos numa idade avançada... Só na outra encarnação. Mas eu adoraria que ele fizesse. Eu acho que ele adoraria também, sei que ele gosta das minhas músicas. Tem melodias que eu entreguei a ele e sei que ele adoraria ter letrado, mas ele é um compositor que se basta.
CliqueMusic — Você já compõe pensando em uma parceiro específico?
Guinga — Meu parceiro é o Aldir Blanc. Esse é que é o meu parceiro. Então inevitavelmente quando estou compondo eu acho que vou entregar ao Aldir para letrar. Mas já fiz algumas músicas pensando na letra do Chico, isso antes de ser parceiro do Aldir.
CliqueMusic — Ao longo dos seus discos o que se nota é um aumento na diversidade de parceiros. No primeiro (Simples e Absurdo, 91 ), todas as 11 faixas eram parcerias Guinga-Aldir. No segundo (Delírio Carioca, 93 ), duas são parcerias com Paulo César Pinheiro e 13 com Aldir. Em Cheio de Dedos (96) começam as faixas instrumentais (11) contra três letradas pelo Aldir. E no Suíte Leopoldina (99) já tem parcerias com Nei Lopes, Mauro Aguiar, Celso Viáfora e Mariana Blanc, além de três com o Aldir. E no Cine Baronesa já tem outros...
Guinga — Além do Aldir, tem Nei Lopes e Sérgio Natureza. Mas meu parceiro é o Aldir Blanc. Hoje em dia eu tenho muita vontade de fazer uma obra com o Nei Lopes também, porque ele é um gênio. E o Serginho Natureza é um grande artista. Mas eu não gosto de fazer música com muitos compositores, não. Eu gosto de falar a frase "Sou mulher de um homem só". No fundo, o que eu quero é continuar minha obra com o Aldir, e é claro que vamos continuar, somos amigos e parceiros, e ir construindo uma obra com o Nei, que é um cara que eu amo também, e o Sérgio, sempre que ele quiser letrar e eu tiver possibilidade, ele vai letrar uma música minha.
CliqueMusic — Como funciona sua parceria com o Aldir?
Guinga — Como com todos os outros, eu gravo e eles levam a fita.
CliqueMusic — E já aconteceu de ele não gostar de alguma música ou você não gostar de uma letra dele?
Guinga — Já aconteceu. A gente tem essa liberdade, mas normalmente ele gosta do que eu faço e eu gosto do que ele faz. O Aldir é um gênio, um monstro como letrista. O que é mais comum é ele me surpreender com uma obra-prima.
CliqueMusic — As música do Paulinho Pinheiro que tem no Delírio Carioca, Saci e Passarinhadeira , são as mais líricas e lentas do disco. É proposital?
Guinga — Não, não tem isso, porque eu e Paulinho rompemos a parceria. Eu fui ser parceiro do Aldir porque não compunha mais com o Paulinho, a gente deixou de ser amigo e parceiro, foi uma ruptura. Mas claro, o Paulinho é um gênio.
CliqueMusic — Como começou a sua parceria com o Aldir?
Guinga — Por intermédio do Raphael Rabello, que estava compondo com o Aldir. Eu disse que gostaria de fazer alguma coisa com ele (Aldir), porque eu estava rompido com o Paulo e sem parceria na época. Aí o Raphael falou com o Aldir, que disse que também adoraria letrar coisas minhas. Então marcamos um encontro e eu fui à casa do Aldir.
CliqueMusic — Qual foi a primeira música que vocês fizeram juntos?
Guinga — A primeira não ficou boa (risos). Eu achei que a música não estava campeã, o Aldir só letrou a metade porque sentiu que eu não estava gostando da música, não deu certo. Aí a segunda música que nós fizemos, que na verdade foi a primeira, foi uma música chamada Esconjuros, que o Sergio Mendes gravou e a Mônica Salmaso também, para o próximo disco dela. É uma letra linda.
CliqueMusic — Você lembra de todas as letras que fazem para as suas músicas?
Guinga — Hoje em dia estou esquecido porque canto pouco as músicas, meus shows têm pouca coisa cantada, então tem algumas que eu esqueço a letra, mas se der uma passadinha eu lembro. Eu decoro sem saber que estou decorando. As músicas do novo disco já estão praticamente decoradas e eu nunca parei para aprender. Só de conviver com elas no estúdio, decoro, é normal. Uma letra que eu nunca parei para decorar foi Catavento e Girassol , que é uma letra longa, mas nunca esqueci, nunca ocorreu uma falha num show. Eu tenho boa memória, mas sou preguiçoso, tenho preguiça de cantar. Cantar pra mim é um esforço. Às vezes faço um show mais instrumental justamente por achar que eu sou um mau cantor.
CliqueMusic — Você já trabalhou a voz, fez aula de canto ou algo do tipo?
Guinga — Não. Jamais estudaria canto. Eu tenho uma relação ruim com a coisa formal da música. Não gosto de ver partitura, o visual da partitura me incomoda, é uma coisa engraçada. Eu detesto partitura. Mas acho que tem gente que é assim.
CliqueMusic — O ensino formal da música te incomoda?
Guinga — Incomoda, eu reajo, mas eu estudei violão cinco anos com o Jodacil Damasceno.
CliqueMusic — Quais os violonistas que você gosta de ouvir hoje em dia?
Guinga — Bom, tem os antigos, que a gente ama, mas dos novos, o que eu mais gosto de ouvir é o [quarteto de violões] Maogani. Pra mim é a melhor coisa de violão no Brasil, os melhores arranjos. Eu acho o Paulo Aragão [do Maogani] o maior arranjador de violão em atividade hoje.
CliqueMusic — É mesmo?
Guinga — É. Acho ele um gênio. Para mim, ele vai fazer uma carreira para ser o maior arranjador de violão do Brasil de todos os tempos. Pra falar a verdade, eu já acho ele o melhor. As introduções dele são as mais bonitas que eu já ouvi. O [Paulo] Bellinati também é outro grande arranjador de violão, de muito bom gosto, Célia Vaz também, escreve muito bonito. Arranjos virtuosos eu gosto muito dos do Marco Pereira. Mas o Paulo [Aragão] pra mim é muito impressionante. Ele ouve tudo. Os arranjos que ele fez para o meu novo disco, tem que ouvir. E o Marcus Tardelli, que também é do Maogani, é a maior vocação do violão que tem por aí. Ele é impressionante, é um dos violonistas mais perfeitos no momento, na música popular.
CliqueMusic — Você acha a nova geração de violonistas muito diferente da sua?
Guinga — Os violonistas que estão surgindo agora são muito virtuosos. Na minha época não tinha tantos, tinha um Baden e tal, era raro. Mas agora você viaja pelo Brasil e vê cada garoto de 19, 20 anos quebrando tudo! Fazendo coisas que pra mim são impossíveis.
CliqueMusic — Quem, por exemplo?
Guinga — Ah, vários. O Rogerinho e o Daniel, de Brasília, são dois assim. O Diego, também de Brasília é outro. O Caio [Márcio], filho do Paulo Sérgio Santos, Yamandu [Costa], Marcus Tardelli... Verdadeiros Pacos de Lucia estão nascendo no Brasil.
CliqueMusic — A que você atribui todo esse virtuosismo?
Guinga — À época que a gente vive, que é tão explosiva.
CliqueMusic — Qual o violão que você usa?
Guinga — Um Giannini, que eles me deram de presente. Quando a fábrica [Giannini] fez cem anos, contrataram um luthier e mandaram fazer dez violões especiais, aí me deram um. Mas acusticamente ele não é tão bom quanto plugado. E o meu sonho é ter um bom case (risos).
CliqueMusic — O que você ouve em casa?
Guinga — Eu não escuto CDs, não uso o aparelho de som, só escuto rádio. Não tenho a menor paciência de botar um CD e ficar ali ouvindo. Só quando eu sou obrigado, quando tenho que tirar uma harmonia ou algo assim. Se não, só ouço rádio, porque eu gosto da surpresa, de não saber o que vou ouvir. Mas só escuto a Rádio MEC, de música clássica. Eu adorava o programa Radar, que passava de madrugada, mas agora não tem mais, acabou a programação da madrugada da Rádio MEC, tiraram do ar. Gosto do rádio porque me surpreende, então quando a Rádio MEC me surpreendeu saindo do ar, fiquei muito chateado, era a única coisa que prestava no rádio do Rio de Janeiro.
CliqueMusic — Mas nenhum disco? Nunca? Nem os que você mais gosta?
Guinga — Eu ouço às vezes. Acho que o Tom Jobim era assim também. Toda vez que o Tom falava sobre música ele citava as mesmas músicas e os mesmos compositores. Eu ouço as mesmas coisas. Tem dez discos que eu tenho separados em casa e eu ouço sempre. Eu até tento mudar, mas não consigo.
CliqueMusic — Quais são esses discos?
Guinga — Clifford Brown [trompetista americano, 1930-56], um disco dele com cordas; Sexteto Radamés Gnattali, aquele disco que tem Meu Amigo Tom Jobim; Focus, do Stan Getz, que foi um disco que me impulsionou para a música quando eu tinha dez anos de idade; Aldeia, da Banda Mantiqueira; Samambaia, do Hélio Delmiro e César Camargo Mariano; Michel Legrand com Miles Davis, um disco que eles tocam Django [Reinhardt]; o disco do Ciro Pereira, que é um grande arranjador; e algumas coisas de serestas também, e clássicos, Villa-Lobos, Prokofiev, Lutoslawski, esses eu escuto na rádio MEC e gosto muito.