20 anos sem Almirante, a maior patente do rádio

Pioneiro pesquisador de MPB, o cantor e radialista construiu ao longo da vida um precioso acervo sobre nossa música e enquanto viveu teve o propósito de educar e divulgar o melhor da obra de nossos grandes intérpretes, músicos e compositores

Rodrigo Faour
21/12/2000
Há 20 anos a música brasileira perdia uma de suas figuras mais importantes: Almirante (1908-1980). Cantor, compositor, escritor, radialista e pioneiro pesquisador de MPB, Henrique Foreis Domingues ganhou o apelido de Almirante depois de servir na Marinha, entre 1926 e 27, época em que começou a se envolver com música integrando no final da década o grupo Flor do Tempo, no qual cantava e tocava pandeiro, em Vila Isabel (RJ). Em 29, formaria o lendário Bando de Tangarás, ao lado de Noel Rosa, Braguinha e outros, que gravaria alguns clássicos eternos da MPB, como Mulher Exigente (depois regravada magistralmente por sua grande amiga Carmen Miranda) e Na Pavuna – ambas de sua autoria, sendo a segunda em parceria com Homero Dornelas, o Candoca da Anunciação.

A partir de 1931, Almirante seguiu carreira solo, lançando marchinhas de carnaval antológicas, como Yes, Nós Temos Bananas e Touradas em Madri, sambas como Faustina e Vou Casar no Uruguai, entre outras, além de atuar em filmes como Alô, Alô, Brasil. Nos anos 40, largou a carreira de cantor pela de radialista, criando programas mais elaborados do que os que havia na época. Paralelamente, tratou de criar um acervo inenarrável sobre a música brasileira, incluindo a edição de livros, entre os quais, No Tempo de Noel Rosa, de sua autoria, sendo assim um dos primeiros a ressaltar a enorme importância do compositor carioca – do qual foi um dos principais intérpretes – na MPB.

"Almirante foi o maior radialista de todos os tempos, o sujeito que praticamente inaugurou a pesquisa de MPB no país. Foi um grande cantor e, acima de tudo, um militante da música popular", resume o jornalista Sérgio Cabral, que lançou há dez anos a biografia No Tempo de Almirante – Uma História do Rádio e da MPB. Ele diz que conheceu seu biografado pessoalmente, em 1960. "Nesse ano, fiz uma entrevista de página inteira com ele para o Jornal do Brasil. Ele foi um cara que me ajudou muito quando comecei a escrever sobre música popular. O sonho dele era fazer um dicionário da música popular, com milhões de verbetes. Aí, coitado, não pôde fazer. Mesmo assim, se preparou para isso, criando um arquivo fabuloso. Decidi escrever um livro sobre sua vida porque pensei: ora, um cara que se preparou para falar da vida dos outros merecia que se fizesse um livro sobre ele", explica Cabral, que ficou espantado com a extrema organização de seu arquivo.

Sucesso em três vias de atuação
Outro escritor e historiador de MPB, Jairo Severiano, atesta que Almirante é desses casos raros em que um sujeito se dedica a três funções diferentes e tem sucesso em todas. "As três tinham a ver com música, mas exigiam qualidades diferentes para exercê-las. A primeira era a função artística – ele era cantor, não tinha uma voz romântica, e sim forte, bastante entoada, com facilidade de pronunciar palavras em alta velocidade. Por isso gravou emboladas, sambas cômicos, numa linha de músicas pitorescas. A segunda função era a de radialista. Foi o pioneiro do programa montado, produzido. Antes dele, os programas eram na base do 'Vamos ouvir' e 'Acabamos de ouvir'. Ele pegava um tema e o desenvolvia, com depoimentos de pessoas e um narrador. Ele educava e ao mesmo tempo divertia os ouvintes", conta Jairo, afirmando que em 1939 ele já era um dos maiores salários do rádio e, ao ser contratado pela Rádio Nacional, exigiu que um de seus programas fosse do jeito que ele queria, criando o Curiosidades Musicais.

A terceira função, segundo Jairo, a qual Almirante se dedicou é justamente a de pesquisador, criando um importantíssimo acervo musical. "É muito difícil um artista abraçar esse tipo de atividade. Se tornou praticamente o primeiro pesquisador de música popular. Antes dele, só o Mário de Andrade. Ele envereda até mesmo pelo folclore brasileiro. Conseguiu armazenar um arquivo particular até hoje imbatível de partituras, com cerca de 35 mil", conta.

Rigoroso e companheiro
Ricardo Cravo Albin, produtor musical e fundador do Museu da Imagem e do Som (RJ), conviveu de perto com Almirante. Ele recorda em janeiro de 1965, quando o governador do Rio Carlos Lacerda comprou o acervo de Almirante por 30 mil cruzeiros especialmente para o museu, o pesquisador acabou sendo também incorporado ao MIS como funcionário. "Ele foi funcionário até morrer. Nessa época o MIS mal tinha verbas. Tirei muitas vezes dinheiro do meu próprio bolso para pagar o salário mensal do Almirante – com muito orgulho, porque era uma pessoa fundamental ao museu. Era muito companheiro e uma pessoa muito rigorosa. Mesmo depois de sofrer um derrame [em janeiro de 1958], reaprendeu a falar graças à força interior extraordinária que possuía. Falava com aquela voz de trovão característica. Ele era rigoroso a tal ponto que se envolveu em várias polêmicas.

"Vi o Almirante espumando de raiva no programa de Flávio Cavalcante, na TV Tupi. Tudo começou porque o Almirante atacava o Donga, afirmando que o samba Pelo Telefone não era apenas de Donga, e sim uma criação coletiva dos sambistas que freqüentavam a casa da Tia Ciata. E o Flávio, ao contrário, defendia o compositor e passou uma descompostura ao Almirante no ar. Ficou roxo de raiva. Tive que procurar o Flávio com urgência para que fizesse uma entrevista com Almirante. Disse a ele que por um triz Almirante não teve outro problema cerebral", recorda Albin. O produtor sublinha ainda a importância de Almirante no resgate da memória musical do país e na estilização do samba gravado. "Ele recuperou a velha guarda da MPB, de nomes como Pixinguinha, Noel Rosa e outros em programas de rádio memoráveis. Além disso, foi sua gravação de Na Pavuna – com o Bando de Tangarás – levou aos estúdios pela primeira vez instrumentos de percussão, utilizados pelas escolas de samba", depõe.