20 anos sem Cartola

Em 30 de novembro de 1980, o samba perdia seu mais Divino mestre, que, como o samba brasileiro, conheceu períodos de ostracismo e glória

Nana Vaz de Castro
30/11/2000
A música brasileira sentiu o peito vazio há exatos 20 anos, quando perdeu Cartola, sambista, poeta e fundador da Mangueira. Dizer que não há sucessores seria no mínimo uma injustiça com tanta gente que batalha no front do samba há tanto tempo, a começar por aquele apontado como sucessor pelo próprio Cartola, Paulinho da Viola. Um, fundador da Mangueira, o outro, foco irradiador da formação da Velha Guarda da Portela, os dois se afinam principalmente pela sofisticação tanto na música como na poesia. Paulinho inclusive recebeu seu primeiro cachê das mãos de Cartola, por uma apresentação no bar Zicartola, onde aliás fez shows regularmente entre 1963 e 65, abandonando definitivamente a carreira de bancário.

O Zicartola foi uma das muitas etapas da vida do sambista nascido Angenor (com "n" mesmo) de Oliveira em 11 de outubro de 1908 no bairro carioca das Laranjeiras. Aos 11 anos de idade mudou-se com a família para a Mangueira. O apelido Cartola, ao que parece, veio de quando começou a trabalhar na construção civil. Depois de levar muito cimento na cabeça no primeiro dia de trabalho, apareceu no dia seguinte com um chapéu coco para se proteger, que acabou virando "cartola", talvez por confusão dos colegas.

Elton Medeiros, parceiro de Cartola em clássicos como O Sol Nascerá e Peito Vazio, diverte-se lembrando do efeito que lhe produziu o nome da primeira que ouviu, aos quatro anos de idade. "Meus pais eram muito amigos do Heitor dos Prazeres, ele ia muito lá em casa. Um dia ele passou por lá e saiu rápido, e ouvi meus pais dizendo que era porque ia se encontrar com Cartola. Fiquei horrorizado e fui falar com minha irmã mais velha: ‘Seu Heitor foi se encontrar com uma cartola!!!’. Aí ela me explicou ‘Não, ele foi se encontrar com um compositor chamado Cartola’, e eu imediatamente respondi ‘Mas que pai é esse que dá a um filho um nome de Cartola?!’".

Quase 30 anos depois, os dois finalmente se conheceram, quando participaram da primeira formação do grupo A Voz do Morro, que só apareceu numa edição do programa Noite de Gala, apresentado por Flávio Cavalcanti na TV Rio, com grande repercussão. Depois o grupo se reformulou, Cartola saiu, e a formação seguinte de A Voz do Morro, que incluía ainda, além de Elton, Zé Kéti, Paulinho da Viola, Anescar do Salgueiro, Jair do Cavaquinho e Nelson Sargento, gravou três discos na década de 60. Da parceria com o sambista 22 anos mais velho, Elton lembra: "Compor com Cartola era receber uma aula a cada música".

De compositor premiado a lavador de carros
Metáfora do samba brasileiro, Cartola também teve seus altos e baixos, épocas de prestígio e desprestígio. Descoberto pelos cantores do rádio da década de 30 como uma das revelações do chamado samba de morro carioca (juntamente com Ismael Silva, Heitor dos Prazeres, Bide e Marçal), carregando ainda o título mítico de fundador da Estação Primeira de Mangueira, teve suas músicas gravadas (e compradas) por nomes como Francisco Alves, Mário Reis, Silvio Caldas, Aracy de Almeida, Jamelão e Carmen Miranda.

Os anos 30 foram uma época de alta para Cartola. Chegou a ser escolhido o melhor compositor das principais escolas de samba do Rio de Janeiro pelo Departamento de Turismo da cidade, ganhando uma medalha de ouro. Apresentava-se em diversas cidades ao lado de Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres, com quem formava o Grupo Carioca, participou em 1940 da gravação do disco Native Brazilian Music, convidado por Villa-Lobos e dirigido pelo maestro Leopold Stokowski. Pouco depois começou uma fase de decadência. O sambista ficou doente, teve meningite, quase morreu em 1946. Nos anos seguintes seus sambas passaram a ser preteridos para os desfiles da Mangueira, o que causou profundo desgosto e levou a um afastamento inimaginável entre Cartola e a Mangueira.

Em seguida vem o período mais misterioso, do "desaparecimento" de Cartola. Pouco tempo depois da morte de Deolinda – mulher mais velha com quem vivia desde os 17 anos –, saiu da Mangueira e foi viver com uma mulher chamada Donária, sobre quem as informações são escassas. Segundo a biografia Cartola – Os Tempos Idos, de Marília Barboza da Silva e Arthur de Oliveira Filho, Cartola conta assim o que aconteceu: "Andei doente, depois perdi minha mulher e acabei me metendo num negócio aí que nem vale a pena comentar. Acabei jogando fora uns seis ou sete anos (...) Larguei tudo por aquela mulher (Donária). Larguei até a música, deixei até de tocar violão".

A volta aconteceu em 1956, num episódio já célebre, em que o jornalista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, o viu de madrugada trabalhando como lavador de carros em uma garagem em Ipanema, um dos bicos que conseguiu arranjar depois que largou Donária para ir viver novamente na Mangueira com Eusébia Silva de Oliveira, a Zica, sua companheira até o fim. Sérgio Porto tratou de levá-lo de volta a emissoras de rádio e gravadoras, mobilizando formadores de opinião de diversas áreas, o que culminou com a inauguração do Zicartola, em 63, que trouxe definitivamente Cartola de volta à mídia.

O Zicartola, no centro do Rio de Janeiro, era um point onde se encontravam a ala mais à esquerda da bossa nova, capitaneada por Carlinhos Lyra e Nara Leão, e os sambistas de morro. Zica cuidava da cozinha, Cartola da parte artística. Foi um sucesso durante sua breve existência, e foi também nessa época que Cartola fez uma plástica no nariz (que, por causa de uma doença chamada rosácea, tinha o tecido hipertrofiado e parecia uma couve-flor) e casou-se com Zica, em 64. Na ocasião, providenciando a papelada para o casório, teve a grande revelação de que não se chamava Agenor, e sim Angenor.

A consagração
Mas o período de maior glória para Cartola veio na década seguinte, quando pela primeira vez entrou em estúdio para gravar seus próprios discos. Desde o início dos anos 60 estava se apresentando com regularidade em shows, mas depois da gravação do primeiro disco, denominado apenas Cartola ouvir 30s, em 74, pelo selo Marcus Pereira, sua fama foi ao auge. O disco, que privilegiava algumas de suas parcerias mais recentes como Disfarça e Chora (com Dalmo Castello) e Festa da Vinda (com Nuno Veloso) foi um sucesso arrebatador de público e crítica (ganhou quase todos os prêmios do ano) e o fez viajar o Brasil inteiro.

O segundo disco ouvir 30s, pelo mesmo selo, foi tão fácil quanto o primeiro havia sido difícil. Gravado em 76, trouxe algumas das composições mais antigas, como Não Posso Viver sem Ela e Sala de Recepção. O violonista e compositor Guinga, que, por fazer parte do grupo de João Nogueira, já havia tocado algumas vezes com Cartola, participou da gravação: "Cartola gostou de mim tocando violão, fizemos alguns números juntos, mas eu não o via havia quase um ano quando ele me ligou chamando para gravar com ele. Tive o privilégio de tocar ao lado de Dino, Meira, Canhoto, Altamiro, e coloquei o violão em O Mundo É um Moinho. Agradeço ao Cartola por ter me colocado na história da música brasileira. Ele é seguramente um dos maiores gênios da música brasileira".

O disco de 76 traz ainda As Rosas Não Falam, um dos maiores sucessos de Cartola e prova cabal de seu talento como poeta – autoditata, diga-se de passagem. Influenciado por autores como Olavo Bilac, Guerra Junqueira e Castro Alves, o bardo da Mangueira cunhou pérolas que hoje são usadas em aulas de literatura, como Autonomia, incluída no terceiro disco individual, Verde Que Te Quero Rosa, de 77, pela RCA-Victor.

Ainda em vida, Cartola recebeu diversas homenagens, como a do público do Teatro da Reitoria de Porto Alegre que, durante um show no dia do aniversário do compositor, fez uma surpresa e atirou pétalas de rosa exatamente no momento em que a letra dizia "Queixo-me à rosas, mas que bobagem, as rosas não falam". Também uma praça com o nome As Rosas Não Falam foi construída em Jacarepaguá, onde construiu também a casa em que viveu seus últimos dias – em cujo jardim foram plantadas as tais famosas roseiras.

Discos-tributos também foram muitos, a reler a inesgotável obra do poeta e sambista que ficou conhecido como Divino. Agora, aos 20 anos de sua obra, uma exposição foi montada de 20 a 25 de novembro no Museu da Imagem e do Som (RJ), com o título Quem Te Viu Sorrindo, uma menção ao samba Quem Me Vê Sorrindo, parceria com Carlos Cachaça. Os títulos de Cartola são, por si só, tão poéticos, que o mangueirense Nelson Sargento prestou-lhe uma das mais inspiradas homenagens pouco depois de sua morte, com o samba Homenagem ao Mestre Cartola, citando 15 composições. Cabe a Sargento também a frase que resume a trajetória do sambista: "Cartola não existiu. Foi um sonho que a gente teve."