2000 – o ano em que o rap invadiu o sistema

Quem apostava que o rap brasileiro não duraria mais do que a febre causada pelos Racionais MCs em 1998 perdeu: o movimento cresceu e virou indústria

Silvia D
21/12/2000
O ano 2000 foi especialmente marcante para o ritmo & poesia nacionais. À medida que a tecnologia se torna mais simples e acessível e um microcomputador pode gerenciar gravações, o mercado musical reflete a crescente facilidade de se produzir um disco. Daí se desenvolveu, na cidade de São Paulo, uma verdadeira indústria formada por grupos de rap, produtores de discos independentes, estilistas, revistas e programas de rádio e TV, todos dedicados exclusivamente ao rap. Uma enxurrada de discos rompeu sedimentadas barreiras de distribuição em lojas e alcançou expressivos níveis de venda. A música pop incorporou definitivamente o gênero, catapultando grupos como O Rappa e Charlie Brown Jr.

A história do rap na indústria fonográfica do Brasil começa em 1988, com o lançamento do disco Hip Hop Cultura de Rua. Naquela época, grupos como Código 13 e Thaíde & DJ Hum ajudaram a estabelecer uma estética verde-amarela para o estilo que era considerado de interesse restrito a comunidades negras e de baixa renda. Passados 12 anos, o rap brasileiro se desenvolveu de tal forma que tornou inevitável a invasão aos meios de comunicação. Dois mil foi o ano em que, através da indústria do entretenimento, a periferia invadiu o sistema.

Desde que o grupo Racionais MCs chegou ao milhão de cópias vendidas do álbum Sobrevivendo no Infernoamostras de 30s(1998, Zâmbia Records) – que não apenas derrubou a famigerada barreira (contra música independente) das rádios FM, mas o fez com canções de oito minutos de duração – centenas de discos de rap foram lançados no país e, com isso, o movimento ocupou nichos do mercado. Como esse processo não se deu da noite pro dia, muitos nomes que sacudiram a cena hip hop em 2000 o fizeram com discos lançados no ano anterior.

Na moral
O caso mais evidente é o do rapper Xis, com seu CD Seja Como Foramostras de 30s(4p/Trama). O alto nível técnico e qualitativo da produção (feita pelo próprio, com o DJ KL Jay, dos Racionais) constrói pontes entre rap, R&B e funk, e alterna linguagem engajada com poesia. Impulsionado pelo imprevisível sucesso da canção Us Mano As Mina – mais de oito mil downloads pela Internet –, o disco de Xis bateu a marca das 50 mil cópias vendidas. São Matheus Pra Vida (Kaskata’s/RDS), do grupo De Menos Crime, foi outro disco que teve seu momento atrasado. Com seus contagiantes baixos e guitarras de rock somando-se ao batidão potente e às letras afiadas, as músicas Fogo na Bomba, A Bola do Mundo e Periferia Invadindo o Sistema levaram o disco a vender 100 mil cópias. O DMC faz parte da posse DRR, juntamente com os grupos U.Negro, Consciência Humana, Homens Crânios e RZO, que se organizaram em uma "frente de combate" para ajudar-se mutuamente nas gravações. Rap das Quebradas, CD mais recente do grupo, ainda não teve tempo de ser devidamente apreciado pelo público em geral, mas possui sonoridade única e tem tudo para se destacar... no ano que vem.

Além desses, outros discos de 99 estourados em 2000 com produções de alto calibre foram: Traficando Informação (Natasha), de MV Bill; O Pesadelo Continua, dos Detentos do Rap – primeira banda a gravar um disco no Carandiru – (Fieldzz); As Aparências Enganam (Virgin), do Jigaboo, que teve a música Vai Pirar em alta rotação nas FMs, e Brazil 1 –Fazendo Justiça Com As Próprias Mãos (Zâmbia), com letras do ex-traficante Escadinha musicadas pela nata do rap nacional: Xis, Bill, 509-E, Consciência Humana, Visão de Rua, etc.

Um exemplo de como a estética do estilo penetrou no dia-a-dia das cidades foi a escolha do carioca MV Bill para estrelar uma campanha publicitária de TV da companhia telefônica do Rio de Janeiro, executando um rap escrito especialmente pra desestimular o vandalismo contra orelhões. Por falar em rap na telinha, o videoclipe de Isso Aqui É uma Guerra, música contida no disco Versos Sangrentos, do grupo paulistano Facção Central, teve sua veiculação proibida por conter cenas de violência explícita (o seqüestro de uma família de classe média que acaba com o assassinato de um dos reféns), mas a esperada discussão sobre censura não aconteceu.

Com a ajuda de programas em rádios comunitárias, algum espaço na TV e revistas especializadas (Rap Brasil, Hip Hop em Movimento, Rap Rima), novas pérolas vieram à luz esse ano: Como É Triste de Olharamostras de 30s, do grupo pernambucano Faces do Subúrbio; Assim Caminha a Humanidadeamostras de 30s, da dupla mais longeva e respeitada do meio, Thaíde & DJ Hum; o híbrido de rap/rock/samba A Invasão do Sagaz Homem Fumaçaamostras de 30s, do Planet Hemp; e Provérbios 13amostras de 30s, do 509-E, segundo grupo de rap a surgir dentro do complexo penitenciário do Carandiru. Além desses, SNJ (Atração), do grupo homônimo, Mallokeragem Zona Leste, do Doctor's MCs (que com esse disco se tornou a primeira banda de rap da periferia a penetrar numa grande gravadora), CPI da Favela, do brasiliense GOG; e mais os discos de Da Guedes, Câmbio Negro, Piá, Apocalipse 16, Ndee Naldinho e Criminal D também fizeram barulho, embora sejam apenas alguns entre muitas dezenas de lançamentos.

A bola rola
As promessas para 2001 são variadas. De Recife vem o grupo Sistema X, cujo malemolente disco De Rapente chegou com guitarra/baixo/bateria bem cadenciados e surpreendeu. Do Rio de Janeiro, o Veredito do Gueto autoproduziu as cinco faixas de Muito Prazer, com samples cuidadosamente escolhidos. De Fortaleza, os Conscientes do Sistema detonaram O Ceará e seus Problemas com fúria financiada pela Lei de Incentivo à Cultura. E mais um da Zona Leste paulistana, o PosseMenteZulu, vem com um som funkeado no CD Revolusom Parte 1, indicando novos caminhos para embalar o engajamento político e social do rap. A menção especial vai para a gravadora Trama, que, ao lado de selos como 4p, Zâmbia, Zimbabwe, Atração, Kaskata's, Raízes e outros, investiu sem medo e ajudou a aumentar a visibilidade de vários artistas/grupos por todo o país.

Houve também cerimônias exclusivas para o gênero, como o Prêmio Hutus, o Hip Hop Experience e o Troféu Hip Hop 2000, ajudando a cultura de rua a penetrar em meios mais conservadores. Por exemplo, a festa do Prêmio Hutus apareceu no Fantástico. Xis cantou Us Mano... num show de Maurício Manieri e a versão acabou indo parar no disco ao vivo do cantor pop. Depois, gravou Pá Doido Pirá, junto ao rapper carioca Marechal, para o recém-nascido disco de mesmo nome do DJ Jamaika. Os DJs King, Raffa (ambos de SP), Negralha, Juan (ambos do Rio) e KSB (Recife) se destacaram na atividade que ganhou ou incrementou seus próprios festivais e competições, como o Hip Hop DJ 2000.

Falando em festivais, estes também têm sido essenciais à consolidação do rap brasileiro, dando-se ao luxo de ser mega, até: em 13 de janeiro, no Anhembi, acontece o Millenium Rap (ler matéria), com a participação dos influentes grupos americanos Bone Thugs & Harmony e Lost Boyz, além de alguns dos melhores representantes nacionais. Para começar 2001 com a corda toda.

Faixas do ano (uma pra cada mês):
01 – A Bola Do Mundo – De Menos Crime
02 – Paranóia Delirante – Xis
03 – Casa Cheia (Samba Rock Mix) – Detentos do Rap
04 – Vai Pirar – Jigaboo
05 – Soldado do Morro – MV Bill
06 – A Fuga – Xis
07 – Alma Sebosa – Faces do Subúrbio
08 – Desafio no Rap Embolada – Thaíde & DJ Hum
09 – Só os Fortes – 509-E
10 – Caça Pop – Anfetaminas
11 – Sou Negrão – Possementezulu
12 – Muito Prazer – Veredito do Gueto

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