A apaixonante Legião Urbana

Dos arquivos sai Como É Que Se Diz Eu Te Amo, álbum duplo que registra os grandes shows que a banda fez no Rio, em outubro de 1994

Silvio Essinger
22/03/2001
A capa imita o ingresso do Metropolitan (hoje ATL Hall), gigantesca casa de espetáculos no subsolo de um shopping na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Foi lá que a Legião Urbana fez, nos dias 8 e 9 de outubro de 1994, para um público que ultrapassava 10 mil cabeças por noite, aqueles que seriam reconhecidos como alguns dos melhores shows de sua carreira – shows que foram registrados e agora podem ser relembrados/conferidos no álbum duplo Como É Que Se Diz Eu Te Amo amostras de 30s (EMI). Mais do que dois grandes momentos da Legião em sua maturidade, eles foram acontecimentos simbólicos: três meses depois, a banda faria a sua última apresentação, e em exatos dois anos (no dia 11 de outubro de 1996), o líder Renato Russo sucumbiria à Aids, com a qual convivia desde o começo dos anos 90.

O ingresso da capa do disco parece mais uma daquelas relíquias que só os fãs guardam – nada a se estranhar, pois, de fato, era para eles que Renato vivia. "A gente tá aqui no palco, mas a verdadeira Legião Urbana são vocês", disse ele, num dos vários momentos em que se comunicou com o público (e poucos eram melhores que ele nisso), com seu típico ar meio professoral, meio de irmão mais velho. "Se não for masturbação, usem camisinha", chegou a recomendar, num intervalo entre músicas.

Mas engana-se quem pensa que é só aos fãs que vai interessar esse Como É Que Se Diz Eu Te Amo. A banda estava em grande forma – tanto os membros originais Dado Villa-Lobos (guitarra) e Marcelo Bonfá (bateria) quanto os novatos Gian Fabra (baixo), Fred Nascimento (guitarra e violão) e Carlos Trilha (teclados, que acabaria trabalhando com Renato em seus discos solo). Além do mais, a Legião tinha acabado de lançar um de seus melhores álbuns, O Descobrimento do Brasil amostras de 30s, de 93, cujo repertório recheou o show.

Tour de force
Esse duplo ao vivo é, de cara, o mais feliz dos lançamentos póstumos da Legião, que incluem Uma Outra Estação amostras de 30s (de 97, com as sobras de estúdio do último álbum, A Tempestade amostras de 30s, que deveria ter sido duplo), a coletânea Mais do Mesmo amostras de 30s (98) e o Acústico MTV amostras de 30s (99, com show gravado em 1992). Em entrevista concedida na época ao repórter, na tranqüilidade do Banana Café, em Ipanema, Renato (que completaria 41 anos de idade no próximo dia 27) contava que a Legião faria um tour de force no Metropolitan, tocando para lá de 30 canções: "O show vai ter um roteiro mais bem amarrado, com ligações entre as músicas, numa espécie de panorama de nossos discos." Algumas delas entrariam num set acústico. "Quase tudo da Legião dá para pegar no violão e tocar", gabava-se.

Logo no primeiro disco, dá para sentir o equilíbrio do espetáculo. Dois hitsSerá e Eu Sei, impecavelmente tocados – abrem o caminho para uma do Descobrimento, La Nuova Giuventù. Mais dois sucessos – Ainda É Cedo (com inserções de Gimme Shelter, dos Rolling Stones) e Daniel Na Cova dos Leões (em que as guitarras de Dado e Fred batem um pega e dá para sentir a eletricidade estática no ar) –, e vêm mais três do disco novo: Vinte e Nove, Um Dia Perfeito e Os Anjos.

No set acústico, que veio em seguida, só pedradas: Monte Castelo, Quando o Sol Bater na Janela do Seu Quarto, Geração Coca Cola, O Teatro dos Vampiros (amarga reflexão sobre o pesadelo do governo Collor de Mello) e Meninos e Meninas. Em certo momento, Renato Russo aproveitou para lembrar que a banda completava dez anos – e o público, em inusitada reação, cantou Parabéns a Você.

Divulgação
Legião no Metropolitan, em outubro de 1994
Chegamos então ao disco dois, em que se concentram os hinos da Legião Urbana, aquelas músicas que acabaram valendo a Renato Russo a pecha de messiânico: Pais e Filhos (do sintomático verso "É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã"), Faroeste Caboclo, Tempo Perdido e Índios (uma das que o vocalista interrompeu no show para bater papo com o público). Ao mesmo tempo, entraram mais algumas do Descobrimento do Brasil, como Giz, a faixa-título (que fez belo par com Eduardo e Mônica, já que ambas louvam a singeleza da vida) e a catártica Perfeição, em que Renato citou Lithium, do Nirvana, cujo líder, Kurt Cobain, havia se matado meses antes, em abril, devastado pelas drogas. Uma situação que o líder da Legião, dependente químico então em recuperação, conhecia muito bem. "Eu estava quase indo no caminho dele, mas encontrei pessoas que me ajudaram", disse Renato ao repórter. "O disco [Descobrimento] é sobre isso."

É desse disco, por sinal, a faixa de onde foi tirada o título do disco, Vamos Fazer um Filme. "Como é que se diz ‘Eu te amo’ hoje em dia?", perguntava o tio Renato à garotada da platéia. Um momento de ternura antes do ataque sonoro de Que País é Esse, música que o vocalista sabia muito bem transformar num filme de terror – aqui, com terríveis citações do Pintinho Amarelinho para falar de violência contra crianças, provavelmente referindo-se aos assassinatos cometidos por gangues de jovens em Brasília. Anos mais tarde, em seu Acústico MTV amostras de 30s, os Paralamas do Sucesso (banda a que o vocalista agradeceu no show por ter apadrinhado a Legião) reforçaria o poder de fogo da canção.

Dedicado a Lucy Needham Vianna (que faleceu no mesmo acidente de ultraleve que deixou seu marido, Herbert Vianna, o líder dos Paralamas, em coma), Como É Que Se Diz Eu Te Amo tem sinceros momentos de arrepio que renovam a certeza de que Renato Russo é um mito, daqueles raros na história do rock mundial. Um mito de verdade, daqueles que ninguém jamais vai conseguir fabricar.