A era dourada da MPB passada a limpo

Livro de Zuza Homem de Mello conta o que foram e o que significaram os festivais para nossa música popular

Filipe Quintans
19/06/2003
Qualquer que seja o conteúdo (bom ou ruim) da música feita no Brasil hoje (ou seja lá o que você leitor ache bom ou ruim em matéria de MPB), não foi por falta de background cultural. Marcas indissociáveis da formação de público, cujo gosto fora desenvolvido e apurado para a música feita no país, os festivais da canção, tradicionais competições entre compositores das mais variadas vertentes, formaram a maior parte, o "grosso" do conjunto de compositores e intérpretes que ainda ouvimos, não importam se ainda estão aqui ou não.

Sempre lembrados com saudosismo e com aquele suspiro de "Bons eram os festivais...", os maiores concursos tendo como matéria de competição a música popular brasileira são lidos, relidos e estudados pelas mãos e memória do pesquisador Zuza Homem de Melo, decano da pesquisa musical e melhor indicado para a tarefa. Em A Era dos Festivais: Uma Parábola, integrante da ainda mais valiosa coleção Todos Os Cantos (Editora 34), Zuza trata da ligação evidente entre a realização dos mais de dez festivais da canção e o momento político em que os mesmos tomaram corpo, relata com uma fidelidade quase que obsessiva, nomes, datas, locais (em especial a decoração dos mesmos), detalhes musicais (em algumas partes para não íntimos à teoria musical, o livro parece egípcio) e principalmente compositores e suas obras. "Esse livro serve para os jovens, para os contemporâneos dos festivais e para quem estuda a história social e cultural deste país", explica Zuza, em entrevista por telefone num sábado à tarde.

A tri-indicação da obra tem seus porquês: para os jovens, o livro serve como uma espécie de mapa genético da música popular brasileira. Por ele, é possível saber como surgiram nomes como Milton Nascimento, Dori Caymmi, Edu Lobo, Geraldo Vandré... se formos listar, uma matéria será pouco. Para os contemporâneos aos festivais, em sua maioria saudosos pela efervescência que criavam os festivais e suas acirradas disputas, uma espécie de relatório, de livro de memórias. Para pesquisadores, a coisa fica ainda mais interessante.

No meio do fogo cruzado político em que o Brasil viveu entre a renúncia de Jânio e o fim do regime militar, os jovens iam aos estúdios de TV (naqueles tempos, em teatros) para ver um conflito muito mais interessante do que o travado em Brasília e nos quartéis. O conflito entre Chico Buarque e Gilberto Gil no Festival da Record em 1966. Chico entrava de sola com A Banda. Gil chutava de Ensaio Geral. Deu Chico. "Os festivais foram grandes válvulas de escape da juventude que os frequentava", analisa o autor, um absoluto descrente no jovem 'consumidor' de música no Brasil. "é de se lamentar a forma como as gravadoras conduzem as coisas hoje em dia. Os jovens se acostumaram a ouvir tolices e acharem aquilo palatável e bom. Estão todos errados", alfineta ele.

Surge a questão: foi realmente indispensável a realização dos festivais para a saúde da música brasileira? "Foi, se você pensar que a maioria daqueles que foram revelados nos festivais ainda estão ativos, compondo, muito bem, obrigado", ironiza o autor, ligando obviamente ato a fato: Dos chamados 'grandes' pela audiência musical no Brasil (Chico, Caetano, Gil, João Gilberto, meio que por vias difíceis, entre outros tantos, compositores e intérpretes), a suprema maioria permanece gravando, compondo, fazendo apresentações, com exceções e ausências. "O trabalho deles ficou e ficará para outras tantas gerações. Sem os festivais, talvez a identificação com aquilo (a música popular brasileira) se daria de uma forma mais 'comercial', como é hoje", relativiza ele, aproveitando para re-alfinetar as ditas 'majors' e seus super-esquemas de divulgação.

Figura notória quando o assunto é MPB, Zuza coleciona e mostra no livro, algumas histórias conferidas in loco que dão a medida do que eram aqueles dias. "Caetano, em dúvida, me mostrou uns vinte dias antes de um festival, duas músicas que queria inscrever: uma era Alegria Alegria, lembra. Aliás, o que hoje podemos considerar como um acinte à MPB não passava de mero fato banal. No festival da Record em 1967, Erasmo Carlos teve uma canção eliminada na primeira fase. Capoeirada não era páreo ao poder de Alegria Alegria, Domingo no Parquee para a vencedora Ponteio, de Edu Lobo e Capinam. Certa vez, o compositor Zé Keti fez nada menos que 16 sambas para ter o que inscrever num outro festival.

No Festival Internacional da Canção de 1971, Jorge Ben foi de Porque É Proibido Pisar na Grama, desconhecida talvez até do próprio, então defendida por ele mesmo, enquanto Moacir Franco defendia arduamenteUm Novo Sol, de Carlos Imperial e Ângelo Antonio. Ben teve mais sorte no ano seguinte, quando ganhou o último FIC, também o último festival da "Era" descrita no livro, com Fio Maravilha. A essa altura, os festivais eram feitos na Rede Globo, cercados do regime do presidente Médici por todos os lados. E ninguém nunca mais ouviu falar em Ângelo Antonio.