A folia eclética do festival Recbeat 2004

Saiba como foi a nona edição do evento, ocorrido no Recife entre o sábado (21) e a terça-feira (24) de Carnaval

CliqueMusic
24/02/2004
Antídoto certeiro para quem procura algo mais no carnaval nordestino além de abadás, frevos e mamulengos, o festival Recbeat realizou sua nona edição entre o sábado (dia 21) e a terça-feira (dia 24) de Carnaval, no Recife - mostrando não apenas a boa fase da música pop pernambucana, mas também trazendo convidados internacionais, nomes consagrados no eixo Rio-SP e gratas novidades locais. Estreando em novo ponto da capital de Pernambuco (a Avenida Cais da Alfândega, ao lado do Rio Capibaribe, depois de oito anos instalado na Rua da Moeda), o Recbeat 2004 contou com 24 atrações (três delas internacionais) no palco principal, além de apresentações de dança, bloco carnavalesco e música eletrônica com DJs.

As novas instalações dobraram a capacidade de público do evento, que teve mais de 20 mil espectadores por noite, tudo com entrada franca. A abertura, no sábado (21), foi com três grupos da mais recente safra pernambucana. O afoxé do Alafin Oyó deu o tom regional e tradicionalista que a noite precisava, sendo complementado logo em seguida pelo contraste criado entre os grupos Astronauta e A Roda. Os primeiros apostam num som repleto de guitarras, pendendo para a psicodelia; já o outro grupo conta com mais malemolência, misturando black music a influências africanas e latinas. Em seguida veio a banda piauiense Narguilé Hidromecânico, também chegada em uma certa lisergia (como o próprio nome já sugere). Caminhando nos passos trilhados pelo manguebeat, o NH cruzou guitarras pesadas, elementos eletrônicos e influências explicitamente regionais.

As duas atrações principais vieram a seguir. A percussionista e cantora Lanlan, junto a seu grupo Os Elaines, capricharam na apresentação do repertório do álbum Com Ela - um som contundente que revisita a MPB sem muita reverência. Teve direito até a uma citação à Nação Zumbi (Da Lama Ao Caos). Eternos campeões de popularidade no Recife, os heróis locais Devotos terminaram a folia no sábado com muito hardcore - incluindo várias canções novas, do terceiro e recém-lançado CD A Hora da Batalha.

No domingo de Carnaval, o Recbeat foi aberto às 16h com a passagem do bloco Quanta Ladeira, referência às subidas e descidas das ruas do Recife Antigo. Formado em 1998 pelos figuraças locais Lenine, Lula Queiroga e Zé da Flauta, o bloco se concentrou à entrada do palco do festival, cantando marchinhas e sambas (alguns com suas letras devidamente atualizadas, satirizando assuntos da atualidade brasileira). Por volta das 20h30, a paraibana Eleonora Falcone inaugurou o palco. Alinhada com a nova MPB nordestina de Chico Cesar e Zeca Baleiro, a cantora mostrou o delicado repertório do álbum Apetite (independente, de 2000), acompanhada de uma banda que mesclava intervenções eletrônicas e violoncelos. O local Maciel Salu (ex-Orchestra Santa Massa) entrou a seguir, desenvolvendo um trabalho a primeira vista 100% tradicionalista - com muita rabeca e percussão regional - mas na qual novos caminhos sonoros vão se desenhando, sutilmente.

Sutileza nunca foi o forte de Rogério Skylab, que, com disco lançado há pouco (Skylab IV) e temas singelos como Bunda Suja ou Meu Pau Fica Duro, conquistou o público na marra e na estranheza. Chegou a descer do palco para cantar Carne Humana no meio do povão. A seguir, o som meio complicado e um tanto experimental do grupo Bernie's Lounge, vindo da Holanda, esfriou um pouco as coisas. A platéia estava mesmo ansiosa pela chegada do Eddie. Fábio Trummer e sua trupe, em excelente fase, tocaram praticamente todo o último álbum, o ótimo Original Olinda Style, e sua mistura de samba-rock, reggae, dub, maracatu & outros bichos. Trummer terminou o show lá pelas duas da manhã, convocando o público a brincar o carnaval nas ruas de Olinda.

Na segunda-feira, dia mais eclético do festival, Recife conheceu o novíssimo projeto de Silvério Pessoa (ex-Cascabulho e mentor do grupo Bate o Mancá). O Refinaria junta Wilson Farias (do Bate o Mancá), Zezão Nóbrega e Felipe Falcão (Digital Groove), além de Silvério, reprossessando as referências regionais do vocalista com bases eletrônicas. Após o show muito bem recebido, o som instrumental do grupo Tira Poeira (RJ) trouxe muito chorinho e samba tradicional ao palco do Recbeat, servindo como introdução ao blues do norte-americano Kenny Brown - que poderia ter ficado deslocado, mas convenceu a platéia com seu suingue. Também não faltou suingue à Nega Gizza, que fez uma das apresentações mais contundentes desta edição do evento - aplaudida e muito pelo público, que cantou Prostituta, sucesso da rapper, de cor. Para finalizar, uma rápida canja de MV Bill, responsável por revelar a vocalista, completou a festa.

Fechou a noitada o DJ Dolores, mostrando também seu projeto novo, Aparelhagem. Dispensando a Orchestra Santa Massa e contando com uma formação de rock mais convencional (com Fernando Catatau do Cidadão Instigado e Instituto, na guitarra), Dolores soltava programações e scratches para decorar músicas inéditas e versões novas para faixas de Contraditório? Nem a forte chuva que caiu na cidade durante o show desanimou o público.

A terça-feira gorda teria o show mais aguardado do Recbeat, o da Nação Zumbi, fechando a noite. Com o maior público do festival até então, o evento começou para valer com o grupo Maracatu Estrela Brilhante de Nazaré da Mata, liderado pelo vocalista e rabequeiro Siba (PE), do Mestre Ambrósio. Depois da bela apresentação do grupo, que caprichou nas fantasias coloridas e no resgate do maracatu rural pernambucano, veio a apresentação do espetáculo de dança Zambo (em homenagem aos 10 anos do estouro do manguebeat). E em seguida o Samba de Coco Raízes de Arcoverde, grupo vindo da mesma cidade do Cordel do Fogo Encantado, mostrou o mais puro samba da zona da mata. Incensado pela crítica, o projeto que junta o grupo paulistano Bojo com a cantora Maria Alcina seguiu-se, trazendo a interessante química entre o vozeirão de Alcina e as nada previsíveis soluções eletroacústicas do quarteto. E mais um convidado internacional - o grupo Abuela Coca, do Uruguai - ainda tocou antes da Nação, misturando rock, rap, referências afro e enchendo (literalmente) o palco de som com seus dez integrantes.

Fechando o evento e o carnaval recifense, o Nação Zumbi, mais consagrado dos expoentes do manguebeat. Cada vez mais azeitados na interpretação do repertório do quinto (e homônimo) álbum, a NZ incendiou o Recbeat à base de percussão tonitruante, guitarras distorcidas e muito groove. Zeroquatro, do mundo livre S/A, compareceu ao palco para dar uma força extra no show, que juntou números mais recentes (Blunt of Judah, Meu Maracatu Pesa uma Tonelada) com pedradas antigas (Rios Pontes & Overdrives, Da Lama ao Caos). Belo fecho para o evento, que se encaminha com todo o gás para a edição de número 10, ano que vem.