A força do batuque baiano, dos blocos à axé music
No livro A Trama dos Tambores, antropóloga analisa a evolução do afro-pop de Salvador e observa: a cidade é capaz de produzir sozinha os seus próprios astros
Tom Cardoso
29/06/2000
Há quem torça o nariz para o excesso de vulgarização e pausterização do axé music. Também há quem reclame do provincianismo do público baiano e até quem condene o sectarismo dos blocos afro. Mas é impossível negar a força e a influência da música pop baiana nas últimas décadas dentro da MPB. O livro A Trama dos Tambores – A Música Afro-Pop de Salvador (Editora 34), da antropóloga Goli Guerreiro, que será lançado terça-feira em Salvador, reforça a tese de que a Bahia hoje, ao contrário dos outros estados, não depende o eixo Rio-São Paulo para produzir os seus astros.
Do surgimento dos blocos afro, como Muzenza, Ilê Ayê, Olodum e Ara Ketu, passando pelo aparecimento dos sambistas urbanos Batatinha e Riachão até desembocar na explosão do axé-music de Daniela Mercury e É o Tchan!, a obra faz um apanhado minucioso de tudo que foi produzido na música afro-baiana neste século. "A minha idéia inicial era realçar a importância do aspecto social na música baiana. Mas desisti quando percebi que, antes de tudo, o afro-pop de Salvador é um fenômeno musical. As pessoas não estão muito preocupadas com que as letras querem dizer. Elas querem dançar, se divertir", afirma Goli.
A autora se convenceu da pouca importância que as letras têm para o público, quando se deu conta de que o refrão de um dos maiores sucessos do Olodum, Faraó, era cantado equivocadamente pela fãs do grupo. "Eles cantavam Farol invés de Faraó, achando que a música (na verdade, uma canção de protesto) era alguma homenagem ao Farol de Itapoã", lembra Goli. "Aquilo derrubou minha tese. A partir disso, pude constatar que o ritmo é o grande rei do movimento".
O pouco interesse do público baiano por letras de protesto levou a maioria dos blocos afro a abandonar o discurso social para apostar na mistura de ritmos. O Olodum, que surgiu no Largo do Pelourinho, no começo da década de 80, como um feroz crítico das desigualdades sociais e raciais da Bahia, hoje assume sua postura pop e quer distância de letras engajadas. O mesmo ocorre com o Ara Kêtu, originário do periférico bairro de Periperi, que hoje faz propaganda do Governo na televisão. "É claro que o engajamento político é importante. Mas graças ao apelo comercial de suas canções, o Ara Kêtu e o Olodum puderam construir suas oficinas de dança e de música. Fizeram o seu papel social de uma forma objetiva".
O único bloco afro a manter as suas convicções políticas e sociais é o Ilê Aiyê, do bairro da Liberdade (bairro onde nasceu a ex-dançarina do É o Tchan Carla Perez) - até hoje ele é contrário à filiação de brancos. Por ironia, o livro de Goli revela que o nome do bloco foi dado por um geólogo iugoslavo, que estava trabalhando em Salvador na época. "O Vovô do Ilê (presidente do bloco) até hoje nega, mas diz isso porque não suporta admitir que o batismo do bloco foi feito por um branco".
Apoio tecnológico
O livro conta que o grande responsável pela modernização e popularização dos blocos afro foi Wesley Rangel, proprietário da gravadora WR, que pela primeira vez deu apoio tecnológico e soube produzir com competência bandas do gênero. Antes disso, alguns produtores de renome tinham fracassado na produção de discos, como o consagrado Liminha, em Canto Negro (1984), do Ilê Aiyê, um dos maiores fracassos de vendas da música baiana. "Wesley aprimorou a técnica de gravação de instrumentos e tornou discos do Olodum e do Ara Kêtu grandes sucessos de mercado. Até então, os blocos afro viviam com dívidas – o Olodum só recebeu o seu primeiro cachê após oito anos de sua fundação".
O sucesso dos blocos afro abriu definitivamente o mercado musical na Bahia. Era o surgimento do samba-reggae, ritmo popularizado por Neguinho do Samba, mestre de baterista do Ilê Aiyê e do Olodum, hoje na Banda Didá. Misturando samba-reggae com música pop, cantores como Luiz Caldas e Sarajane abriram caminho para a explosão do axé music, resultando na consagração de bandas como Banda Eva, Cheiro de Amor e Chiclete com Banana e É o Tchan!, e de artistas como Daniela Mercury, Netinho e Carlinhos Brown. "A partir do fenômeno axé music a Bahia se posicionou, enfim, como um estado negro. Deixou de ter movimentos segmentados para misturar tudo em cima de um palco só", afirma Goli, que elege Carlinhos Brown e Margareth Menezes como os dois grandes representantes da música afro-pop baiana.
Goli reconhece o desgaste do axé neste fim de século e aposta num novo ritmo: a mistura de música eletrônica com percussão e samba-reggae, já experimentada por Daniela Mercury no último carnaval baiano. "Pude acompanhar de perto a apresentação de Daniela e fiquei empolgada com a originalidade da mistura. Acho que vai pegar. O público baiano é super provinciano, muito voltado para o próprio umbigo, mas ao mesmo tempo antropofágico demais."
Do surgimento dos blocos afro, como Muzenza, Ilê Ayê, Olodum e Ara Ketu, passando pelo aparecimento dos sambistas urbanos Batatinha e Riachão até desembocar na explosão do axé-music de Daniela Mercury e É o Tchan!, a obra faz um apanhado minucioso de tudo que foi produzido na música afro-baiana neste século. "A minha idéia inicial era realçar a importância do aspecto social na música baiana. Mas desisti quando percebi que, antes de tudo, o afro-pop de Salvador é um fenômeno musical. As pessoas não estão muito preocupadas com que as letras querem dizer. Elas querem dançar, se divertir", afirma Goli.
A autora se convenceu da pouca importância que as letras têm para o público, quando se deu conta de que o refrão de um dos maiores sucessos do Olodum, Faraó, era cantado equivocadamente pela fãs do grupo. "Eles cantavam Farol invés de Faraó, achando que a música (na verdade, uma canção de protesto) era alguma homenagem ao Farol de Itapoã", lembra Goli. "Aquilo derrubou minha tese. A partir disso, pude constatar que o ritmo é o grande rei do movimento".
O pouco interesse do público baiano por letras de protesto levou a maioria dos blocos afro a abandonar o discurso social para apostar na mistura de ritmos. O Olodum, que surgiu no Largo do Pelourinho, no começo da década de 80, como um feroz crítico das desigualdades sociais e raciais da Bahia, hoje assume sua postura pop e quer distância de letras engajadas. O mesmo ocorre com o Ara Kêtu, originário do periférico bairro de Periperi, que hoje faz propaganda do Governo na televisão. "É claro que o engajamento político é importante. Mas graças ao apelo comercial de suas canções, o Ara Kêtu e o Olodum puderam construir suas oficinas de dança e de música. Fizeram o seu papel social de uma forma objetiva".
O único bloco afro a manter as suas convicções políticas e sociais é o Ilê Aiyê, do bairro da Liberdade (bairro onde nasceu a ex-dançarina do É o Tchan Carla Perez) - até hoje ele é contrário à filiação de brancos. Por ironia, o livro de Goli revela que o nome do bloco foi dado por um geólogo iugoslavo, que estava trabalhando em Salvador na época. "O Vovô do Ilê (presidente do bloco) até hoje nega, mas diz isso porque não suporta admitir que o batismo do bloco foi feito por um branco".
Apoio tecnológico
O livro conta que o grande responsável pela modernização e popularização dos blocos afro foi Wesley Rangel, proprietário da gravadora WR, que pela primeira vez deu apoio tecnológico e soube produzir com competência bandas do gênero. Antes disso, alguns produtores de renome tinham fracassado na produção de discos, como o consagrado Liminha, em Canto Negro (1984), do Ilê Aiyê, um dos maiores fracassos de vendas da música baiana. "Wesley aprimorou a técnica de gravação de instrumentos e tornou discos do Olodum e do Ara Kêtu grandes sucessos de mercado. Até então, os blocos afro viviam com dívidas – o Olodum só recebeu o seu primeiro cachê após oito anos de sua fundação".
O sucesso dos blocos afro abriu definitivamente o mercado musical na Bahia. Era o surgimento do samba-reggae, ritmo popularizado por Neguinho do Samba, mestre de baterista do Ilê Aiyê e do Olodum, hoje na Banda Didá. Misturando samba-reggae com música pop, cantores como Luiz Caldas e Sarajane abriram caminho para a explosão do axé music, resultando na consagração de bandas como Banda Eva, Cheiro de Amor e Chiclete com Banana e É o Tchan!, e de artistas como Daniela Mercury, Netinho e Carlinhos Brown. "A partir do fenômeno axé music a Bahia se posicionou, enfim, como um estado negro. Deixou de ter movimentos segmentados para misturar tudo em cima de um palco só", afirma Goli, que elege Carlinhos Brown e Margareth Menezes como os dois grandes representantes da música afro-pop baiana.
Goli reconhece o desgaste do axé neste fim de século e aposta num novo ritmo: a mistura de música eletrônica com percussão e samba-reggae, já experimentada por Daniela Mercury no último carnaval baiano. "Pude acompanhar de perto a apresentação de Daniela e fiquei empolgada com a originalidade da mistura. Acho que vai pegar. O público baiano é super provinciano, muito voltado para o próprio umbigo, mas ao mesmo tempo antropofágico demais."