A jovem guarda catalogada e dissecada

Livro sobre o movimento mergulha nas origens do rock nacional e sublinha sua importância na história da MPB e na do mercado fonográfico brasileiro, redimensionando a importância de integrantes como Ronnie Von

Rodrigo Faour
03/11/2000
A juventude brasileira dos anos 60 se dividia, a grosso modo, em duas: a mais intelectualizada, que assistia a programas como O Fino da Bossa (de Elis Regina e Jair Rodrigues, na TV Record) e não perdia um festival da canção. Mas havia uma outra platéia – bem mais numerosa, das camadas populares – que consumia os discos e programas daqueles jovens que tocavam à sua maneira um roquinho básico ao modo de Beatles, Rolling Stones, Beach Boys e outros. Era a jovem guarda, que passou a ser uma marca e não apenas o nome de um programa apresentado entre 1965 e 68 por Wanderléa, Roberto e Erasmo Carlos. Apesar de um som que em muitos casos era precário e com os anos ficou datado, a jovem guarda angariou fãs tão fiéis que sustentam até hoje seus artistas, independentemente de eles terem discos novos lançados ou de contarem com a grande mídia a seu lado. Para a alegria dos que curtem o gênero, o pesquisador Marcelo Fróes lança nesta segunda-feira, dia 6, às 19h, na Livraria do Museu da República, no Catete (Rio de Janeiro) o livro Jovem Guarda – Em Ritmo de Aventura (Editora 34), com direito a pocket-show de Renato e Seus Blue Caps.

Marcelo conta que o seu maior desafio foi aglutinar tantas informações num livro sem torná-lo cansativo. "Comecei a escrevê-lo entre 1992 e 93, levado pelo interesse que tinha por Beatles e pelo rock dos anos 60 em geral. Percebi que a jovem guarda era um movimento que não tinha uma história bem contada. Seus integrantes só tinham lembranças muito filtradas. A mídia os mostrava só de uma forma, digamos, engraçadinha. Por causa da má vontade e da ignorância na mídia musical, os próprios artistas não se empenharam em mostrar que de fato eles contribuíram para a história da MPB", conta. O autor ressalta que o único nome da jovem guarda que escreveu um livro até agora foi o Ronnie Von. "Mãe de Gravata é um livro onde ele se situa muito bem, com muita lucidez e humildade. Mesmo assim, ele não tem noção da importância que teve para o movimento", ressalta.

Artistas reavaliados
Na verdade, Ronnie Von é um dos personagens reavaliados por Fróes, ao lado de grupos obscuros que ele considera também muito interessantes como Canibais e Baobás. "Ronnie estava sempre antenado com o que rolava fora do país e sempre se cercou de gente muito boa no palco e no disco. Os Mutantes, por exemplo, só foram para a Tropicália porque o (maestro) Rogério Duprat os conheceu no programa Mundo Encantado, que o Ronnie apresentava, e os apresentou ao Gilberto Gil. Acabaram sendo a banda da casa da Tropicália."

Fróes conta que, nos anos 60, vários países, como Itália, Espanha e Argentina, tiveram as suas jovens guardas. "Mas aqui o movimento foi muito forte, tanto que hoje o preço dos discos nas lojas virtuais de raridades já começam a ficar altos. Aquele interesse inicial dos estrangeiros pela bossa nova, hoje se ampliou. Hoje, qualquer coisa feita no Brasil passou a ser interessante. Até os estrangeiros já estão descobrindo o iê iê iê".

De acordo com a pesquisa de Fróes, a qualidade dos artistas da jovem guarda varia muito de acordo com a qualidade dos estúdios que gravaram, dos instrumentos a que tinham acesso e dos produtores que cada um teve para registrar seus discos. "Muitos discos eram subproduzidos, gravados em estúdios ruins, com instrumentos pobres, já que a maioria dos músicos não tinha acesso aos importados. Por último os produtores eram velhos homens de estúdio, que apitavam sobre o que estava sendo feito, sem a menor intimidade com o gênero que estavam gravando", explica. Não raro, era possível ver uma orquestra tradicional como a do maestro Astor gravando com um grupo de garotos, como aconteceu no disco do The Snakes – a banda pioneira integrada por Erasmo Carlos. "Era uma mistura difícil de dar certo", avalia.

Surpresas
Entre as surpresas que o leitor vai se deparar nesse livro está um depoimento do cantor e compositor Roberto Livi, que alertou Marcelo para as origens do programa Jovem Guarda. "Ele me disse que havia o Club del Clã, um programa argentino que estimulou o pessoal da CBS brasileira a ter um programa de TV, com cantores, cantoras, grupos e duplas. Isso, associado à divulgação em rádio e disco, quer dizer que a jovem guarda foi muito bem arquitetada e pensada. Foi um movimento de mercado que revolucionou a indústria do disco no Brasil. Ali se desenvolveram os LPs de alta fidelidade e os compactos. Além disso, o jovem ganhou uma música específica para o seu consumo. Foi o primeiro boom de vendas nacional, como a beatlemania e a invasão do rock britânico nos Estados Unidos. Vale dizer que os artistas da jovem guarda aqui venderam mais que os próprios Beatles", revela.

Outra surpresa é constatar que vários artistas que hoje tomaram novos rumos na MPB começaram em grupinhos da jovem guarda. É o caso do produtor Liminha, dos cantores Zé Ramalho, Vinícius Cantuária e Dudu França (do hit Grilo na Cuca) e dos executivos Miguel Plopschi, Max Pierre, Marcos Maynard (presidente da Abril Music) e outros – muitos dos quais estarão reunidos no evento Rock’n’roll Celebration 2000 que ocorre no Esporte Clube Pinheiros (SP). Nele, acontece a reunião das formações originais dos grupos Watt 69, Kompha, Sunday (que tem nos teclados o diretor da Som Livre, Hélio Costa Manso), Lee Jackson (que tem Maynard nos teclados) e Memphis (cujo vocalista é Dudu). O show será gravado em CD, VHS e DVD. "Muitos grupos foram engolidos pelo sistema", conta Marcelo. "Tanto que os Fevers e o Renato e Seus Blue Caps foram os únicos que continuaram após o final da jovem guarda. Só incluí no livro aqueles que gravaram ou revelaram personalidades importantes", justifica.

Erasmo Carlos – ícone do movimento – foi o fio condutor do livro de Fróes, uma vez que Roberto não quis participar com suas memórias. "Fiz isso porque foi um privilégio ter o Erasmo falando. Ele abriu as portas da sua casa, foi uma oportunidade única. Seu depoimento é elucidativo, com comentários bem humorados e coerentes. Foi um privilégio", conta ele, que deixou de fora a discografia dos artistas do livro e incluiu apenas uma CDteca básica. "Vou inaugurar um site onde vai constar toda a discografia da jovem guarda. Porque, se fosse incluí-la, o livro seria um catálogo telefônico", explica. O site, www.jovemguarda.com.br, ainda não tem data de lançamento.

Finalmente, a pergunta que fica no ar é por que a jovem guarda ainda tem tantos fãs fiéis? "Ela sempre foi forte, sempre vendeu muito mais disco que a bossa nova e a MPB em geral. Se você for visitar seus artistas, vai ver que está todo mundo bem. Todos têm carro bonito, boas casas, mesmo sem ter disco na praça. Eles souberam cultivar seu público e não dependem de crítica, de matérias em jornais, enfim, não dependem da mídia da Zona Sul carioca. A imprensa pode não dar valor mas o público dá. Eles vivem de fazer shows. O Renato Barros, do Renato e Seus Blue Caps, por exemplo, não tem disco novo na praça e recebe royalties baixos dos relançamentos em CD dos velhos vinis, mas faz shows de quarta-feira a domingo no Brasil inteiro".