A MPB resgatada
Cerca de 13 mil relíquias da primeira fase de gravações no Brasil, como as da lendária Casa Edison, estão sendo resmaterizadas e em breve estarão disponíveis em museu
Rodrigo Faour
26/03/2001
De uns anos para cá, várias iniciativas vêm sendo tomadas para preservar a memória da MPB. Algumas biografias e espetáculos musicais estão ganhando a mídia e as gravadoras aos poucos estão se dando conta do acervo que têm, relançando em CD títulos importantes. Mas quem se atreveria a mexer no baú das primeiras gravações brasileiras, lá do começo do século XX? Resposta: o pesquisador Humberto Francheschi (dono de uma coleção de cerca de 13 mil títulos), o produtor Carlos de Andrade (o Carlão, da gravadora Visom) e uma equipe de técnicos de primeira, disposta a remasterizar discos de 78 rpm, na velocidade de 1.100 unidades por mês. Isso é o projeto Cantares Brasileiros - Centro de Referência da MPB.
A coleção de Humberto abrange os discos da pioneira Casa Edison, que funcionou entre 1902 e 32 (foi a única gravadora a dar certo no Brasil nos primeiros 30 anos de nossa indústria fonográfica), passando por bolachas de diversas outras empresas que se estabeleceram no Brasil até 55, como a Odeon, RCA Victor e a Columbia. O problema é que, até 1927, o sistema de gravação era mecânico e muito precário (a seguir, viria o eletromagnético, melhor, mas também limitado). Por isso, o trabalho de recuperação desses fonogramas é tão fundamental quanto difícil de ser feito para que se tenha uma qualidade mínima de audição.
A idéia da equipe - que conseguiu o patrocínio de uma empresa privada (a Sarapuí, ligada ao Banco Icatu) para tornar realidade o projeto - é que este acervo fique num museu, disponível para os pesquisadores. "A idéia nasceu de um projeto do próprio Humberto, com um fundo didático muito grande, de contar a história da MPB com essas nuanças de mudança nos formatos de gravação nesses primeiros 50 anos do século", explica Carlão, que agora coordena as duas fases iniciais do projeto: a de transcrição (digitalização) e restauração dos fonogramas. "Depois, esse material será guardado e disponibilizado ao público dentro do Instituto Moreira Salles, na Gávea (RJ)", antecipa.
O acervo possui desde discursos de políticos da época lidos pelos locutores da Casa Edison, passando por inúmeros registros instrumentais de gêneros diversos, como choro, polca, tango, habanera e quadrilha, até o histórico samba dos bambas do Estácio. "O pico de qualidade da música carioca foi na época do Estácio e da zona de prostituição do Mangue (anos 20 e 30). Porque onde tem prostituta, tem boêmio e onde tem boêmio, tem samba", explica Carlão.
Flautistas em abundância
O produtor dá uma idéia de como a tecnologia dos primeiros discos era rudimentar. "Na época das gravações mecânicas, o som tinha que ser feito num cone gigante conectado a uma agulha, que cortava o acetato, num prato que era rodado manualmente, já que não havia eletricidade. O prego (agulha) vibrava e ia cortando o disco", conta Carlão. Quem fazia sucesso nessa época eram as bandas militares (do Corpo de Bombeiros, dos fuzileiros navais etc.) e conjuntos de choro (com direito a muitos solos de flauta, como os de Patápio Silva, cujas 14 canções que gravou entre 1902 e 1908 estão agora sendo recuperadas).
No princípio, as gravações não podiam ser feitas com bandas muito grandes, pois mais de 10 músicos não poderiam ser captados pelo funil de gravação (ainda não havia microfone). Embora houvesse bastante música cantada, era a instrumental que mais caía no gosto do povo na fase pré-Era de Ouro, ou seja, de 1902 a 1928. O curioso, segundo os envolvidos no projeto, foi descobrir o número de flautistas atuantes nessa fase da MPB.
"A flauta era um instrumento-chave na música brasileira, ela se identifica muito com a coisa romântica e brejeira do brasileiro. Havia a orquestra de pau e corda, com a flauta de ébano e instrumentos de corda - com duas ou três cordas de aço e o resto de tripa mesmo. Isso predominou nas gravações da música brasileira até o final da década de 10, início da de 20", ensina o pesquisador e dono desse fabuloso acervo, Humberto Francheschi.
Herdeiro das coleções dos avós e dos pais, Humberto seguiu juntando discos, ao mesmo tempo em que trocava figurinhas com os colegas pesquisadores Sérgio Porto e Lúcio Rangel. Ele lembra ainda que no começo do século várias músicas gravadas no país eram estrangeiras e vinham através de partituras. "Elas eram lançadas e, depois de conhecidas pelo público, acabavam transformadas. Tanto assim que, quando elas voltavam a ser gravadas, já ganhavam outra estrutura, uma forma mais brasileira. Isso ajudou a cristalizar a nossa música", ensina.
Sobrevivendo aos chiados
Humberto acrescenta que as jazz bands nacionais (N.R.: na verdade, todo pequeno conjunto de meia dúzia de componentes chamava-se jazz band, apesar de musicalmente não ter nada a ver com jazz americano) e os grupos de música nordestina também gravaram muito na primeira fase do disco no Brasil. Quanto aos cantores dessa época, destacaram-se figuras como o lendário Bahiano, Mário (não o Reis, mas outro homônimo), os ícones Vicente Celestino e Francisco Alves, Paraguassu, entre outros.
Mas os olhos do pesquisador brilham mesmo é quando o assunto são os bambas do morro do Estácio. "O Estácio produziu a melhor música do Brasil, ouso dizer do mundo inteiro", exalta ele, que considera Aracy de Almeida a melhor cantora do Brasil de todos os tempos, e também se desmancha por Carmen Barbosa, que morreu precocemente aos 23 anos de idade. "Foi nossa maior cantora de sambas, apesar de ter gravado apenas 14 músicas". Encantado com o trabalho de recuperação feito pelos esforçados técnicos da equipe de Carlão, Humberto vem se surpreendendo com as remasterizações. "Ando tendo surpresa em cima de surpresa com os resultados. A qualidade é fantástica", elogia.
Alexandre Moreira, tecladista e programador do grupo Bossacucanova, é um dos responsáveis pelas milagrosas recuperações dos velhos 78 rotações. Ele alega que a maior dificuldade da equipe é o tempo para trabalhar em tantos fonogramas. "Gastamos uma hora para restaurar cada música. Atualmente estamos trabalhando em discos gravados até 1915, ou seja, os gravados nas técnicas mais rudimentares possíveis. No momento de cada transcrição, consultamos Humberto e classificamos a importância do material."
Ele explica mais: "Se for apenas um registro histórico, como um determinado discurso, nós retiramos ao máximo os chiados e o deixamos em condições boas para que o pesquisador faça alguma consulta. Já em gravações mais importantes, nós nos aprofundamos mais na recuperação", conta. Por aprofundamento, entenda-se testar diversas agulhas, pesos de braços de vitrolas e programas de filtragem diversos. Haja disposição! Mas o resultado, muitos pesquisadores e aficionados por MPB concordarão, compensará largamente o esforço.
A coleção de Humberto abrange os discos da pioneira Casa Edison, que funcionou entre 1902 e 32 (foi a única gravadora a dar certo no Brasil nos primeiros 30 anos de nossa indústria fonográfica), passando por bolachas de diversas outras empresas que se estabeleceram no Brasil até 55, como a Odeon, RCA Victor e a Columbia. O problema é que, até 1927, o sistema de gravação era mecânico e muito precário (a seguir, viria o eletromagnético, melhor, mas também limitado). Por isso, o trabalho de recuperação desses fonogramas é tão fundamental quanto difícil de ser feito para que se tenha uma qualidade mínima de audição.
A idéia da equipe - que conseguiu o patrocínio de uma empresa privada (a Sarapuí, ligada ao Banco Icatu) para tornar realidade o projeto - é que este acervo fique num museu, disponível para os pesquisadores. "A idéia nasceu de um projeto do próprio Humberto, com um fundo didático muito grande, de contar a história da MPB com essas nuanças de mudança nos formatos de gravação nesses primeiros 50 anos do século", explica Carlão, que agora coordena as duas fases iniciais do projeto: a de transcrição (digitalização) e restauração dos fonogramas. "Depois, esse material será guardado e disponibilizado ao público dentro do Instituto Moreira Salles, na Gávea (RJ)", antecipa.
O acervo possui desde discursos de políticos da época lidos pelos locutores da Casa Edison, passando por inúmeros registros instrumentais de gêneros diversos, como choro, polca, tango, habanera e quadrilha, até o histórico samba dos bambas do Estácio. "O pico de qualidade da música carioca foi na época do Estácio e da zona de prostituição do Mangue (anos 20 e 30). Porque onde tem prostituta, tem boêmio e onde tem boêmio, tem samba", explica Carlão.
Flautistas em abundância
O produtor dá uma idéia de como a tecnologia dos primeiros discos era rudimentar. "Na época das gravações mecânicas, o som tinha que ser feito num cone gigante conectado a uma agulha, que cortava o acetato, num prato que era rodado manualmente, já que não havia eletricidade. O prego (agulha) vibrava e ia cortando o disco", conta Carlão. Quem fazia sucesso nessa época eram as bandas militares (do Corpo de Bombeiros, dos fuzileiros navais etc.) e conjuntos de choro (com direito a muitos solos de flauta, como os de Patápio Silva, cujas 14 canções que gravou entre 1902 e 1908 estão agora sendo recuperadas).
No princípio, as gravações não podiam ser feitas com bandas muito grandes, pois mais de 10 músicos não poderiam ser captados pelo funil de gravação (ainda não havia microfone). Embora houvesse bastante música cantada, era a instrumental que mais caía no gosto do povo na fase pré-Era de Ouro, ou seja, de 1902 a 1928. O curioso, segundo os envolvidos no projeto, foi descobrir o número de flautistas atuantes nessa fase da MPB.
"A flauta era um instrumento-chave na música brasileira, ela se identifica muito com a coisa romântica e brejeira do brasileiro. Havia a orquestra de pau e corda, com a flauta de ébano e instrumentos de corda - com duas ou três cordas de aço e o resto de tripa mesmo. Isso predominou nas gravações da música brasileira até o final da década de 10, início da de 20", ensina o pesquisador e dono desse fabuloso acervo, Humberto Francheschi.
Herdeiro das coleções dos avós e dos pais, Humberto seguiu juntando discos, ao mesmo tempo em que trocava figurinhas com os colegas pesquisadores Sérgio Porto e Lúcio Rangel. Ele lembra ainda que no começo do século várias músicas gravadas no país eram estrangeiras e vinham através de partituras. "Elas eram lançadas e, depois de conhecidas pelo público, acabavam transformadas. Tanto assim que, quando elas voltavam a ser gravadas, já ganhavam outra estrutura, uma forma mais brasileira. Isso ajudou a cristalizar a nossa música", ensina.
Sobrevivendo aos chiados
Humberto acrescenta que as jazz bands nacionais (N.R.: na verdade, todo pequeno conjunto de meia dúzia de componentes chamava-se jazz band, apesar de musicalmente não ter nada a ver com jazz americano) e os grupos de música nordestina também gravaram muito na primeira fase do disco no Brasil. Quanto aos cantores dessa época, destacaram-se figuras como o lendário Bahiano, Mário (não o Reis, mas outro homônimo), os ícones Vicente Celestino e Francisco Alves, Paraguassu, entre outros.
Mas os olhos do pesquisador brilham mesmo é quando o assunto são os bambas do morro do Estácio. "O Estácio produziu a melhor música do Brasil, ouso dizer do mundo inteiro", exalta ele, que considera Aracy de Almeida a melhor cantora do Brasil de todos os tempos, e também se desmancha por Carmen Barbosa, que morreu precocemente aos 23 anos de idade. "Foi nossa maior cantora de sambas, apesar de ter gravado apenas 14 músicas". Encantado com o trabalho de recuperação feito pelos esforçados técnicos da equipe de Carlão, Humberto vem se surpreendendo com as remasterizações. "Ando tendo surpresa em cima de surpresa com os resultados. A qualidade é fantástica", elogia.
Alexandre Moreira, tecladista e programador do grupo Bossacucanova, é um dos responsáveis pelas milagrosas recuperações dos velhos 78 rotações. Ele alega que a maior dificuldade da equipe é o tempo para trabalhar em tantos fonogramas. "Gastamos uma hora para restaurar cada música. Atualmente estamos trabalhando em discos gravados até 1915, ou seja, os gravados nas técnicas mais rudimentares possíveis. No momento de cada transcrição, consultamos Humberto e classificamos a importância do material."
Ele explica mais: "Se for apenas um registro histórico, como um determinado discurso, nós retiramos ao máximo os chiados e o deixamos em condições boas para que o pesquisador faça alguma consulta. Já em gravações mais importantes, nós nos aprofundamos mais na recuperação", conta. Por aprofundamento, entenda-se testar diversas agulhas, pesos de braços de vitrolas e programas de filtragem diversos. Haja disposição! Mas o resultado, muitos pesquisadores e aficionados por MPB concordarão, compensará largamente o esforço.