A nova volta do boêmio, desta vez em dose tripla
Nelson Gonçalves ganha filme, DVD e CD relembrando sua carreira musical e sua vida conturbada
Marco Antonio Barbosa
28/07/2001
Sua vida já tinha rendido uma peça de teatro - o musical Metralha, de 1997. Mas o próprio homenageado certamente concordaria em mais uma releitura de sua peculiar trajetória, ainda mais em se tratando de um ambicioso projeto que junta cinema, homevideo e música. Sim, Nelson Gonçalves virou um filme - chamado, ora essa, Nelson Gonçalves - , que conta a vida atribulada e os altos e baixos da carreira de um dos maiores mitos da MPB. O filme, que estreou ontem (dia 27) apenas no Rio de Janeiro, também será lançado em formato DVD. Sua trilha sonora , reunindo 17 canções interpretadas por Nelson (duas das quais inéditas), chega às lojas junto com o filme, como parte da série RCA 100 Anos de Música, da gravadora BMG. Do pacote filme/DVD/CD, pode se extrair um válido panorama da tortuosa existência de Nelson (falecido em 18 de abril de 1998) e de seu papel na música popular nos últimos 50 anos.
Nelson Gonçalves, o filme, é dirigido por Eliseu Ewald e é parte documentário, parte ficção. Para compor a porção factual do filme, o diretor recorreu a imagens de arquivo de várias épocas (das chanchadas da produtora Atlântida, nos anos 50, até imagens de Nelson nos anos 90) e depoimentos de pessoas próximas - artística e pessoalmente - ao cantor, como Lobão, Adelino Moreira, Sergio Cabral e Albino Pinheiro. O que entra de ficção traz o ator Alexandre Borges interpretando o cantor, em cenas que resgatam passagens bem controvertidas da vida de Nelson.
Controvérsia, aliás, é o que não falta na biografia do cantor e também não poderia faltar no filme. A curta carreira de Nelson (que ainda não era Nelson e sim Antônio Gonçalves Sobral - o nome artístico só veio em 1941) como boxeador no Rio Grande do Sul, a chegada ao Rio, os contratempos trazidos pela gagueira (daí o apelido Metralha), o sucesso como cantor de rádio nos anos 40 e 50. E também as partes nem tão gloriosas. O pendor do cantor para a boêmia - que acabou até virando marketing - o levaria a torrar as fortunas que ganhava; mas o pior foi o vício em cocaína, que o levou à decadência física e artística nos anos 60. Chegou a ser preso como traficante, em 1965. Tudo isso o filme conta, com riqueza de detalhes e aprovação da família: Margareth Gonçalves, filha do cantor, participa da produção como produtora associada; e o pequeno Pedro Renato, neto de Nelson, interpreta o próprio avô com a idade de sete anos.
O retorno de Nelson às boas com o público, a partir do fim dos anos 60, também ganha destaque. O filme é finalizado com o devido reconhecimento à figura do cantor como ícone de nossa música, um dos maiores vendedores de disco de todos os tempos (e também suposto recordista mundial de títulos gravados, com mais de duas mil canções registradas entre 1941 e 1997), grande nome do fim da era dourada da MPB pré-bossa nova e também referência básica para as gerações posteriores.
A parte documental da fita também é caprichada. Além das imagens de arquivo de Nelson, algumas até raras (coletadas na Biblioteca Nacional), os depoimentos dos convidados são convincentes e emocionantes. Em especial os de Adelino Moreira, autor de um dos maiores sucessos de Nelson Gonçalves (A Volta do Boêmio, de 1957), e o de Lobão. As entrevistas foram todas gravadas há mais de dois anos, pois o projeto do filme já estava sendo desenvolvido desde 1999. A intenção era que o trabalho fosse exibido como uma minissérie de TV, narrada pelo próprio Nelson - que chegou a assinar contrato com Eliseu Ewald, apenas duas semanas antes de morrer.
Disco revê a longa parceria com a RCA
Nelson Gonçalves, o disco, também é um documentário; no caso, registra a longuíssima associação entre o cantor e o selo RCA-Victor, pelo qual gravou seu primeiro disco (um 78 rotações, em 1941) e no qual ficou como contratado até o literal fim da vida. São 15 músicas pinçadas entre os maiores sucessos dos 57 anos de carreira discográfica de Nelson - ao longo da qual lançou o espantoso total de 127 LPs - e duas faixas inéditas. A permanência do cantor na RCA não encontra igual na história da música brasileira e tem pouquíssimos paralelos no mercado exterior.
Para os caçadores de relíquias, vale a pena assinalar a inclusão de Sinto-me Bem, faixa do primeiro 78 RPM de Nelson, de 1941 (creditada a Ataulpho Alves, antes da reforma ortográfica). Do mesmo lote vêm sucessos primevos como Renúncia (42) e Maria Betânia (45), que registram a consolidação do estilo do cantor - totalmente filiado à escola dó-de-peito de cantores como Francisco Alves e Orlando Silva. Segue-se uma seleta de clássicos dos anos 50, o auge do sucesso de Nelson, imediatamente antes do cantor se envolver com as drogas. Camisola do Dia (53), Pensando em Ti (57), Dos Meus Braços Não Sairá (58) e, claro, A Volta do Boêmio (57), estão todos no álbum.
Da fase mais conturbada da vida do cantor - basicamente os anos 60 - só há Último Desejo, de 1966, apesar de Nelson ter gravado pelo menos um LP por ano naquela década. A coletânea pula então para o dueto com Maria Bethânia gravado em 1986 (Caminhemos) e resgata do último disco do cantor - Ainda É Cedo, de 1997, dedicado a sucessos do pop nacional - Nada Por Mim, de Herbert Vianna e Paula Toller, lançada por Marina Lima em 1984.
As inéditas são sobras de estúdio que certamente vão agradar aos completistas de plantão. O clássico Nova Ilusão, de Claudionor Cruz e Pedro Caetano, é recriado de forma sóbria; gravada em 1986 (ficou de fora do disco Ele & Elas Vol.2), virou samba-canção elegante. Erva Daninha (Carlos Colla e Ed Wilson, gravada para Nós , de 1987) pende um tiquinho a mais para o banal. Em ambas, evidencia-se a excepcional forma do cantor, que então já chegava perto dos 70 anos de idade.
Naturalmente, a fenomenal (em quantidade e longevidade) produção de Nelson Gonçalves não pode ser resumida em meras 17 músicas. Ainda mais tratando-se de um artista cuja trajetória nos estúdios se confunde com a própria evolução das técnicas de gravação e do mercado fonográfico nacional. Mas esta nova coletânea da BMG vale a pena tanto para o neófito interessado no cantor (especialmente pela oportuna embalagem "veja-o-filme-ouça-o-CD") quanto para o colecionador radical, interessado nas duas canções inéditas. Trata-se de um belo resgate de uma figura ímpar da nossa música - quiçá, da música mundial.
Nelson Gonçalves, o filme, é dirigido por Eliseu Ewald e é parte documentário, parte ficção. Para compor a porção factual do filme, o diretor recorreu a imagens de arquivo de várias épocas (das chanchadas da produtora Atlântida, nos anos 50, até imagens de Nelson nos anos 90) e depoimentos de pessoas próximas - artística e pessoalmente - ao cantor, como Lobão, Adelino Moreira, Sergio Cabral e Albino Pinheiro. O que entra de ficção traz o ator Alexandre Borges interpretando o cantor, em cenas que resgatam passagens bem controvertidas da vida de Nelson.
Controvérsia, aliás, é o que não falta na biografia do cantor e também não poderia faltar no filme. A curta carreira de Nelson (que ainda não era Nelson e sim Antônio Gonçalves Sobral - o nome artístico só veio em 1941) como boxeador no Rio Grande do Sul, a chegada ao Rio, os contratempos trazidos pela gagueira (daí o apelido Metralha), o sucesso como cantor de rádio nos anos 40 e 50. E também as partes nem tão gloriosas. O pendor do cantor para a boêmia - que acabou até virando marketing - o levaria a torrar as fortunas que ganhava; mas o pior foi o vício em cocaína, que o levou à decadência física e artística nos anos 60. Chegou a ser preso como traficante, em 1965. Tudo isso o filme conta, com riqueza de detalhes e aprovação da família: Margareth Gonçalves, filha do cantor, participa da produção como produtora associada; e o pequeno Pedro Renato, neto de Nelson, interpreta o próprio avô com a idade de sete anos.
O retorno de Nelson às boas com o público, a partir do fim dos anos 60, também ganha destaque. O filme é finalizado com o devido reconhecimento à figura do cantor como ícone de nossa música, um dos maiores vendedores de disco de todos os tempos (e também suposto recordista mundial de títulos gravados, com mais de duas mil canções registradas entre 1941 e 1997), grande nome do fim da era dourada da MPB pré-bossa nova e também referência básica para as gerações posteriores.
A parte documental da fita também é caprichada. Além das imagens de arquivo de Nelson, algumas até raras (coletadas na Biblioteca Nacional), os depoimentos dos convidados são convincentes e emocionantes. Em especial os de Adelino Moreira, autor de um dos maiores sucessos de Nelson Gonçalves (A Volta do Boêmio, de 1957), e o de Lobão. As entrevistas foram todas gravadas há mais de dois anos, pois o projeto do filme já estava sendo desenvolvido desde 1999. A intenção era que o trabalho fosse exibido como uma minissérie de TV, narrada pelo próprio Nelson - que chegou a assinar contrato com Eliseu Ewald, apenas duas semanas antes de morrer.
Disco revê a longa parceria com a RCA
Nelson Gonçalves, o disco, também é um documentário; no caso, registra a longuíssima associação entre o cantor e o selo RCA-Victor, pelo qual gravou seu primeiro disco (um 78 rotações, em 1941) e no qual ficou como contratado até o literal fim da vida. São 15 músicas pinçadas entre os maiores sucessos dos 57 anos de carreira discográfica de Nelson - ao longo da qual lançou o espantoso total de 127 LPs - e duas faixas inéditas. A permanência do cantor na RCA não encontra igual na história da música brasileira e tem pouquíssimos paralelos no mercado exterior.
Para os caçadores de relíquias, vale a pena assinalar a inclusão de Sinto-me Bem, faixa do primeiro 78 RPM de Nelson, de 1941 (creditada a Ataulpho Alves, antes da reforma ortográfica). Do mesmo lote vêm sucessos primevos como Renúncia (42) e Maria Betânia (45), que registram a consolidação do estilo do cantor - totalmente filiado à escola dó-de-peito de cantores como Francisco Alves e Orlando Silva. Segue-se uma seleta de clássicos dos anos 50, o auge do sucesso de Nelson, imediatamente antes do cantor se envolver com as drogas. Camisola do Dia (53), Pensando em Ti (57), Dos Meus Braços Não Sairá (58) e, claro, A Volta do Boêmio (57), estão todos no álbum.
Da fase mais conturbada da vida do cantor - basicamente os anos 60 - só há Último Desejo, de 1966, apesar de Nelson ter gravado pelo menos um LP por ano naquela década. A coletânea pula então para o dueto com Maria Bethânia gravado em 1986 (Caminhemos) e resgata do último disco do cantor - Ainda É Cedo, de 1997, dedicado a sucessos do pop nacional - Nada Por Mim, de Herbert Vianna e Paula Toller, lançada por Marina Lima em 1984.
As inéditas são sobras de estúdio que certamente vão agradar aos completistas de plantão. O clássico Nova Ilusão, de Claudionor Cruz e Pedro Caetano, é recriado de forma sóbria; gravada em 1986 (ficou de fora do disco Ele & Elas Vol.2), virou samba-canção elegante. Erva Daninha (Carlos Colla e Ed Wilson, gravada para Nós , de 1987) pende um tiquinho a mais para o banal. Em ambas, evidencia-se a excepcional forma do cantor, que então já chegava perto dos 70 anos de idade.
Naturalmente, a fenomenal (em quantidade e longevidade) produção de Nelson Gonçalves não pode ser resumida em meras 17 músicas. Ainda mais tratando-se de um artista cuja trajetória nos estúdios se confunde com a própria evolução das técnicas de gravação e do mercado fonográfico nacional. Mas esta nova coletânea da BMG vale a pena tanto para o neófito interessado no cantor (especialmente pela oportuna embalagem "veja-o-filme-ouça-o-CD") quanto para o colecionador radical, interessado nas duas canções inéditas. Trata-se de um belo resgate de uma figura ímpar da nossa música - quiçá, da música mundial.