A poesia infinita enquanto dura

Encoberta pelo sucesso como letrista, a carreira literária de Vinicius foi exaltada por Drummond e Bandeira

Nana Vaz de Castro
07/07/2000
Vinicius ficou mais conhecido por sua ligação com a música popular. Mas seu trabalho poético e não musicado é extenso, e há mesmo que diga que sua atuação de letrista ofuscou seu talento como poeta. O mais antilírico dos poetas brasileiros, João Cabral de Melo Neto, amigo e colega do Itamaraty, dizia: "Vinicius era um poeta de uma habilidade como eu nunca vi igual. Ele entrou no caminho do samba porque quis, porque antes ele já tinha feito coisas da maior sofisticação".

João Cabral, que declarava publicamente não gostar de música, lamentava o fato de Vinicius ter enveredado por esse caminho que considerava "menor" e achava que o Brasil perdeu um grande poeta. Já o recluso Carlos Drummond de Andrade, por quem Vinicius nutria certa inveja poética no início de carreira, dizia invejar Vinicius "porque ele vive em estado permanente de poesia".

Como em todo o resto de sua vida, a carreira literária de Vinicius foi também camaleônica, fragmentada, mutante. Os críticos apontam duas fases principais: a primeira, a fase mística, vai de 1933 (data de publicação de seu primeiro livro, O Caminho para a Distância) até a edição do poema Ariana, a Mulher, em 1936. A segunda, a fase pé no chão, tem mais ou menos como marco a publicação, em 1943, de Cinco Elegias.

O jovem poeta de 19 anos que tem o primeiro livro editado por Augusto Frederico Schmidt é influenciado pelo próprio Schmidt, por Octavio de Faria, Rimbaud, e por um forte sentimento católico, adquirido em anos de semi-internato no colégio Santo Inácio, dirigido por jesuítas. É uma poesia transcendental, idealista, "embriagada pela vertigem das grandes abstrações e das grandes alturas", como define Otto Lara Resende em seu prefácio à edição de 1967 do Livro de Sonetos. Inclui-se aí ainda o segundo livro, Forma e Exegese, publicado em 1935.

O livro de 1938, Novos Poemas, representa a transição, com poemas nas duas fases. O próprio Vinicius considera O Falso Mendigo, incluído em Novos Poemas, o primeiro em que abandona o transcendentalismo e caminha em direção à poesia do cotidiano, das coisas terrenas, que o popularizou. São dessa época alguns de seus sonetos mais famosos, como o Soneto da Separação ("De repente do riso fez-se o pranto"), Soneto do Maior Amor ("Maior amor nem mais estranho existe/ Que o meu, que não sossega a coisa amada"), ambos de 1938 e Soneto da Fidelidade ("De tudo, ao meu amor serei atento"), de 1939.

Carreira diplomática foi acidental
Formado em direito, um mês no fórum foi o suficiente para Vinicius perceber que não estava na profissão certa. "A diplomacia surgiu como um quebra-galho", confessava sem maiores pudores. Pelo Itamaraty, serviu em Los Angeles, Paris e Montevidéu nos anos 40, 50 e 60, época em que os homens "da carreira" dispunham de tempo para vultosos trabalhos literários, como atestam as obras de João Cabral e Guimarães Rosa.

Com a promulgação do AI-5, em 1968, Vinicius, a essa altura intimamente ligado à intelectualidade artística de oposição ao regime, foi aposentado compulsoriamente. Desde então acentuou-se seu lado boêmio, bon vivant, popular, mulherengo.

Durante a carreira diplomática sua poesia amadureceu e o poeta passou a cantar cada vez mais o cotidiano das ruas, através de obras como a Balada das Meninas de Bicicleta, a Balada das Arquivistas ou a Canção para a Amiga Dormindo. As Cinco Elegias, de 1943, são prefaciadas por Manuel Bandeira, que inicia dizendo: "Naturalmente, estas cinco elegias vão escandalizar muita gente (a ausência de poesia em certas pessoas dá pena)."

Um outro fato foi determinante para que o poeta parasse de olhar tanto para o céu e se sentisse mais próximo da terra. Um ano antes de entrar para o Itamaraty e publicar as elegias, em 1942, uma viagem pelo Nordeste e Norte do Brasil (incluindo Amazonas) com o escritor norte-americano Waldo Frank o faz conhecer um país real, de favelas, palafitas, mangues, capoeiras, rodas de samba etc. Sem idealizações, a viagem o apresentou a um Brasil miserável e contribuiu para tornar sua obra "realista", e, por que não dizer, posicionada politicamente. "Saí do Rio um homem de direita e voltei um homem de esquerda", disse o futuro autor de Operário em Construção (1956), mostrando mais uma vez sua personalidade mutante.

Com o passar do tempo, o envolvimento progressivo com a música popular vai absorvendo Vinicius, deixando pouco tempo para a obra poética desvinculada de sentido musical. Conforme vai achando os parceiros ideais (Tom, Lyra, Baden, Edu), sua carreira na música passa a ser, para ele, mais gratificante, pois é por meio dela que se torna uma figura nacionalmente popular. Mesmo assim, Vinicius nunca abriu mão da sua poesia. Em seus shows na década de 70, acompanhado de cantores como Maria Creuza, costumava intercalar músicas com declamações de seus poemas.

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