A Rainha do Choro completa 80 anos
Ademilde Fonseca recebe homenagens em São Paulo e no Rio Grande do Norte e diz que ninguém cantou o gênero tão bem quanto ela
Rodrigo Faour
02/03/2001
Ela foi a criadora do choro cantado. Foi também a primeira cantora nordestina a tomar de assalto o país com esse gênero gracioso, brejeiro e bastante difícil de ser cantado. Ademilde Fonseca tirou de letra aqueles intervalos criados normalmente para serem executados por instrumentos, que não têm as limitações da escala vocal. Com um aparelho vocal para lá de privilegiado, ela ainda conseguiu manter uma dicção impecável e clara em suas interpretações. Rainha do Choro com toda justiça, Ademilde completa este domingo 80 anos muito bem vividos, cheia de saúde. Por conta do aniversário, a cantora receberá pelo menos duas homenagens. Em São Paulo, no dia 10, ela será recebida na Rua do Choro, com direito a um recital dos chorões locais. E em Pirituba, lugarejo próximo a Natal (RN), onde nasceu, uma praça será batizada com seu nome. Ela aproveita a viagem a sua terra e abre o Projeto Seis e Meia em Natal, na penúltima semana do mês, no Teatro Alberto Maranhão.
Em 1942, quando tinha 21 anos de idade, Ademilde, que já morava no Rio, decidiu cantar durante uma festa, acompanhada por Benedito Lacerda e seu regional, uma música que conhecia desde criança: o choro Tico-Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu. Acabou sendo levada aos estúdios de gravação para registrar a tal façanha. Sucesso total. A partir daí, vieram outros lançamentos imortais, como Apanhei-te Cavaquinho, Urubu Malandro (com letra), Rato, Rato, Teco-Teco, Pedacinhos do Céu, Acariciando, além de Brasileirinho e do baião Delicado. Essas duas últimas acabaram rodando o mundo em sucessivas regravações internacionais.
Ademilde teve algumas chances de se apresentar fora do país. Em 52, cantou em Paris, numa festa dada por Assis Chateaubriand aos vips locais, e, em 84, abriu o carnaval brasileiro de Nova York. Ela ainda atuou muitos anos nas rádios Tupi e Nacional, até o fechamento dessa última, em 1964. Depois, chegou a defender um belo choro de Pixinguinha e Hermínio Bello de Carvalho (Fala Baixinho) no II Festival Internacional da Canção da TV Globo, em 1967, e teve um expressivo revival nos anos 70 com apresentações concorridas no Teatro Opinião, gravando dois novos discos. Chegou a pensar em se aposentar, mas nunca a deixaram abandonar a música. Claro, ela é única no estilo que consagrou.
Aos 59 anos de carreira, Ademilde confessa a CliqueMusic que só não foi mais longe por pura acomodação. E que só recentemente se deu conta de seu valor e de que ninguém jamais cantou choro como ela. Ao mesmo tempo, a cantora não estranha as novas tendências musicais como o funk e o rap. Acha tudo muito natural, parte das mudanças que a música veio sofrendo ao longo dos tempos. Aliás, serenidade é uma boa palavra para definir o jeito de Ademilde, embora ela seja uma pessoa muito ativa. Não pára em casa e está sempre atenta às novidades do mundo via TV. Romântica, porque ninguém é de ferro, ela admite que não resiste a vozes como as de Orlando Silva e Lucho Gatica. Confiram a entrevista...
CliqueMusic - Como você assimilou a passagem do tempo nesses 80 anos, com todas as transformações que a MPB sofreu?
Ademilde Fonseca - Da época do meu auge para cá, posso dizer que sou uma pessoa muito tranqüila. É claro que às vezes sinto falta de rever os fãs, os auditórios, de ter o aplauso... de estar mais atuante. Canto desde os quatro anos de idade. O artista vive do aplauso, mais do que do cachê - ainda que a gente lute para ganhar um cachê melhor. Mas no Brasil, quando o artista vai envelhecendo, o cachê diminui, quando deveria aumentar, né? (risos) Posso dizer que tirei de letra essa passagem do tempo porque sempre fui uma pessoa descomplicada. Se tiver lugar para cantar, canto. Se não tiver, não vou atrás, não corro atrás.Quanto às mudanças, creio que elas são naturais, são as novas gerações que estão chegando e dando seu recado.
CliqueMusic - Você que sempre foi tão afinada, técnica e brejeira não estranha quando vê estilos como o funk e o rap na TV, bem mais agressivos dominando a cena da MPB?
Ademilde Fonseca - É uma música falada e não cantada que está dominando atualmente. São ligeirinhas as palavras, as letras falam sempre de uma história daquele momento, do morro, da cidade, da vida política... Tudo em música é válido. A gente não pode pichar, porque está tudo dentro do contexto da nossa atualidade. Saiu de moda o culto à voz, o cantor de boa voz parece que não vai para frente. Hoje o pessoal prefere mais assistir a uma menina nuazinha, com o corpo quase todo de fora, dizendo letras como "Dói, um tapinha não dói"... (risos) Mas é o sinal da mudança dos tempos.
CliqueMusic - Apesar de o choro ser cantado e tocado só por quem é muito bom, de ter esse lado arrojado, ele era muito popular, senão não teria feito o sucesso estrondoso que fez no começo de sua carreira... o que prova que pelo menos no seu tempo era possível ser popular e arrojado ao mesmo tempo...
Ademilde Fonseca - Interessante, porque nunca tomei consciência disso. Nunca estudei esse gênero. Em Natal, na minha época de escola, conheci o Tico-Tico no Fubá cantado por um amigo, filho de uma professora de piano, que nos ensaiava para apresentações em festas. Lembro até que tinha uma parte declamada que eu nunca reproduzi, acabei até me esquecendo dessa parte da letra. Chegando ao Rio, acabei mostrando essa letra ao Benedito Lacerda numa festa e ele gostou. Acabei gravando e deu certo.
CliqueMusic - Teve vontade de cantar outros gêneros além do choro, ao longo de sua carreira?
Ademilde Fonseca - Faço o que tenho vontade agora que tenho idade para isso. Quando comecei, raramente colocava repertório de outros cantores, até porque isso não era comum naquele tempo. Hoje em dia me dou ao luxo de cantar nos meus shows coisas como De Volta pro Aconhego, do Dominguinhos e Nando Cordel, xotes e baiões, maxixe, como Gosto Que Me Enrosco e Jura.... Mas o público exige que eu não deixe o choro, já que ninguém canta esse gênero mesmo... Tenho ouvido em CD diversas gravações minhas antigas que estão sendo reeditadas e posso dizer simplesmente, sem a menor empáfia, e de boca cheia: ninguém canta choro, mas não canta mesmo! (risos) Porque não é fácil.
CliqueMusic - Você acha que esse título de Rainha do Choro ajudou ou prejudicou mais?
Ademilde Fonseca - De certo modo até prejudicou, porque só chamam a gente para aquilo. Então a Rainha do Choro só pode ir onde tem choro. Talvez pudesse ter lutado contra isso, mas sou acomodada mesmo, em todos os sentidos... (risos)
CliqueMusic - Você gravou muito na época dos 78 rpm. Mas na fase do LP, embora ainda estivesse com uma voz impecável, você gravou apenas quatro discos e alguns compactos. Guarda alguma mágoa por isso ter acontecido?
Ademilde Fonseca - Mágoa? Só se for uma mágoa inconsciente. Creio que não. Até quando a Rádio Nacional fechou, em 1964, e quis me aposentar, ficou difícil, continuaram me solicitando. Tenho a impressão que essa gente que continuou gravando ou é mais avançada ou mais entrona do que eu. Outros cantores foram mais à luta pela música como um trabalho e sempre considerei a música para mim como um lazer, como se eu não precisasse daquilo para valer. Foi uma atitude muito burra de minha parte! (risos) Não tinha consciência mesmo do meu valor. Agora tenho! Veja como foi tarde... (risos)
CliqueMusic - Uma das coisas que mais marcaram em você foi sua dicção impressionante para se fazer compreender em letras grandes, ditas com muita rapidez. É verdade que isso foi notado antes mesmo de sua época de cantora, quando fez teatro?
Ademilde Fonseca - Quando era pequena, fazia teatro em Natal. Escolheram-me para fazer o papel de uma velhinha, justamente por causa da minha dicção. Fazia essa peça juntamente com um grupo teatral da época, com Didi Câmara e meu marido, Naldimar Delfim.
CliqueMusic - No fim dos anos 30 você não sofreu preconceito por trabalhar como atriz e cantora, ainda por cima no Rio Grande do Norte?
Ademilde Fonseca - A família não bronqueou porque com 17 anos já estava casada. Meu marido era músico, então nessa época quem mandava em mim era ele (risos). Ele escrevia e tocava um violão muito legal. Além disso, me ensinou muita coisa em música, pronúncia inclusive. Ele me incentivava. Antes de casar, realmente havia uma pressão. Com sete, oito até 11 anos, meu pai me prendia muito. Um vizinho chegava e perguntava: "Ah! Queria que Preta - esse era meu apelido - fosse lá em casa cantar..." e meu pai: " Não, ela não vai..." Ele não me queria nesse meio. Depois de casada, isso passou.
Mas aí veio um preconceito diferente, um autopreconceito (risos). Eu achava que mulher casada tinha que cuidar dos filhos e da casa. Então, quando mudamos para o Rio, vivíamos de uma renda que vinha da minha família. Comecei a ver que estava difícil para nos mantermos com aquele dinheiro e decidi ir trabalhar. Aí é que fui fazer um teste com o Renato Murce na Rádio Clube do Brasil. Cantei o samba Batucada em Mangueira, do repertório da Odete Amaral, e passei. O Benedito Lacerda me acompanhou e desde então ficamos amigos. Era chamada por ele para cantar em clubes e festas particulares.
CliqueMusic - Você ficou emocionada ao ouvir sua voz pela primeira vez em disco?
Ademilde Fonseca - Não fiquei emocionada quando ouvi minha voz gravada... Não é engraçado? Achei tudo tão natural... Todas as coisas que iam acontecendo em minha vida, parece que eu havia previsto. Nada me chamava muito a atenção. É espiritual, parece...
CliqueMusic - Você teve um revival nos anos 70, quando o choro tornou-se símbolo de resistência cultural em meio à ditadura...
Ademilde Fonseca - Foi quando me apresentei no Teatro Opinião. O ator Jorge Coutinho disse: "Você vai fazer um novo disco", e saiu pedindo músicas a Paulinho da Viola, Martinho da Vila e outros. Voltei com esse disco (em 1975). O Opinião era superlotado às segundas feiras, quando tinha roda de samba. Da minha última safra, considero um disco muito bom, apesar de eu nunca estar totalmente satisfeita com meus trabalhos. Sou perfeccionista.
CliqueMusic - Você foi acompanhada por alguns dos maiores instrumentistas do país... Jacob do Bandolim, Benedito Lacerda, Pixinguinha, Dante Santoro, Abel Ferrreira, Waldir Azevedo, Garoto, Canhoto, os maestros Chiquinho, Radamés Gnattali, Severino Araújo... Com relação aos grandes mestres de regionais de choro, como era sua relação com figuras como Jacob e Benedito, que sempre foram controvertidas...
Ademilde Fonseca - Sempre me dei muito bem com eles. Sou uma pessoa que, se me derem 250 gramas de manteiga de presente, acho maravilhoso. Imagine que o Jacob, sabendo que sou nordestina, uma vez me deu de presente um desses ganchos de armar rede. Achei aquilo o máximo (risos). Trabalhei pouco com Jacob porque ele também era um solista, mas tenho boas recordações. O Benedito Lacerda era meio malcriadão. (risos) Sei que dava broncas nas pessoas, no conjunto, mas tinha uma gargalhada gostosa. Ele foi um protetor para mim na época que comecei. Tinha cuidado comigo nos ensaios, preocupava-se com o tom em que eu deveria cantar melhor. Se ele fosse vivo até hoje, eu teria ganho muito mais dinheiro.
CliqueMusic - Quais foram os maiores virtuoses que você já viu tocar? E quais são os cantores que, quando escuta, você não resiste e pára para ouvir?
Ademilde Fonseca - Quanto ao maior virtuose, creio que Altamiro Carrilho é demais, mas o Abel Ferreira no clarinete também era incrível, tocava ao seu ouvido sem machucar. Mais do passado, tinha o Luiz Americano que também tocava um belo clarinete. Entre os cantores, só houve uma pessoa que eu achava que parava o trânsito. Tinha que parar para ouvir: Orlando Silva. E de fora, minha paixão era o Lucho Gatica... Naquela época, porque hoje ele perdeu muito - aliás, todos nós, veteranos... infelizmente, o tempo passa... (risos)
Em 1942, quando tinha 21 anos de idade, Ademilde, que já morava no Rio, decidiu cantar durante uma festa, acompanhada por Benedito Lacerda e seu regional, uma música que conhecia desde criança: o choro Tico-Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu. Acabou sendo levada aos estúdios de gravação para registrar a tal façanha. Sucesso total. A partir daí, vieram outros lançamentos imortais, como Apanhei-te Cavaquinho, Urubu Malandro (com letra), Rato, Rato, Teco-Teco, Pedacinhos do Céu, Acariciando, além de Brasileirinho e do baião Delicado. Essas duas últimas acabaram rodando o mundo em sucessivas regravações internacionais.
Ademilde teve algumas chances de se apresentar fora do país. Em 52, cantou em Paris, numa festa dada por Assis Chateaubriand aos vips locais, e, em 84, abriu o carnaval brasileiro de Nova York. Ela ainda atuou muitos anos nas rádios Tupi e Nacional, até o fechamento dessa última, em 1964. Depois, chegou a defender um belo choro de Pixinguinha e Hermínio Bello de Carvalho (Fala Baixinho) no II Festival Internacional da Canção da TV Globo, em 1967, e teve um expressivo revival nos anos 70 com apresentações concorridas no Teatro Opinião, gravando dois novos discos. Chegou a pensar em se aposentar, mas nunca a deixaram abandonar a música. Claro, ela é única no estilo que consagrou.
Aos 59 anos de carreira, Ademilde confessa a CliqueMusic que só não foi mais longe por pura acomodação. E que só recentemente se deu conta de seu valor e de que ninguém jamais cantou choro como ela. Ao mesmo tempo, a cantora não estranha as novas tendências musicais como o funk e o rap. Acha tudo muito natural, parte das mudanças que a música veio sofrendo ao longo dos tempos. Aliás, serenidade é uma boa palavra para definir o jeito de Ademilde, embora ela seja uma pessoa muito ativa. Não pára em casa e está sempre atenta às novidades do mundo via TV. Romântica, porque ninguém é de ferro, ela admite que não resiste a vozes como as de Orlando Silva e Lucho Gatica. Confiram a entrevista...
CliqueMusic - Como você assimilou a passagem do tempo nesses 80 anos, com todas as transformações que a MPB sofreu?
Ademilde Fonseca - Da época do meu auge para cá, posso dizer que sou uma pessoa muito tranqüila. É claro que às vezes sinto falta de rever os fãs, os auditórios, de ter o aplauso... de estar mais atuante. Canto desde os quatro anos de idade. O artista vive do aplauso, mais do que do cachê - ainda que a gente lute para ganhar um cachê melhor. Mas no Brasil, quando o artista vai envelhecendo, o cachê diminui, quando deveria aumentar, né? (risos) Posso dizer que tirei de letra essa passagem do tempo porque sempre fui uma pessoa descomplicada. Se tiver lugar para cantar, canto. Se não tiver, não vou atrás, não corro atrás.Quanto às mudanças, creio que elas são naturais, são as novas gerações que estão chegando e dando seu recado.
CliqueMusic - Você que sempre foi tão afinada, técnica e brejeira não estranha quando vê estilos como o funk e o rap na TV, bem mais agressivos dominando a cena da MPB?
Ademilde Fonseca - É uma música falada e não cantada que está dominando atualmente. São ligeirinhas as palavras, as letras falam sempre de uma história daquele momento, do morro, da cidade, da vida política... Tudo em música é válido. A gente não pode pichar, porque está tudo dentro do contexto da nossa atualidade. Saiu de moda o culto à voz, o cantor de boa voz parece que não vai para frente. Hoje o pessoal prefere mais assistir a uma menina nuazinha, com o corpo quase todo de fora, dizendo letras como "Dói, um tapinha não dói"... (risos) Mas é o sinal da mudança dos tempos.
CliqueMusic - Apesar de o choro ser cantado e tocado só por quem é muito bom, de ter esse lado arrojado, ele era muito popular, senão não teria feito o sucesso estrondoso que fez no começo de sua carreira... o que prova que pelo menos no seu tempo era possível ser popular e arrojado ao mesmo tempo...
Ademilde Fonseca - Interessante, porque nunca tomei consciência disso. Nunca estudei esse gênero. Em Natal, na minha época de escola, conheci o Tico-Tico no Fubá cantado por um amigo, filho de uma professora de piano, que nos ensaiava para apresentações em festas. Lembro até que tinha uma parte declamada que eu nunca reproduzi, acabei até me esquecendo dessa parte da letra. Chegando ao Rio, acabei mostrando essa letra ao Benedito Lacerda numa festa e ele gostou. Acabei gravando e deu certo.
CliqueMusic - Teve vontade de cantar outros gêneros além do choro, ao longo de sua carreira?
Ademilde Fonseca - Faço o que tenho vontade agora que tenho idade para isso. Quando comecei, raramente colocava repertório de outros cantores, até porque isso não era comum naquele tempo. Hoje em dia me dou ao luxo de cantar nos meus shows coisas como De Volta pro Aconhego, do Dominguinhos e Nando Cordel, xotes e baiões, maxixe, como Gosto Que Me Enrosco e Jura.... Mas o público exige que eu não deixe o choro, já que ninguém canta esse gênero mesmo... Tenho ouvido em CD diversas gravações minhas antigas que estão sendo reeditadas e posso dizer simplesmente, sem a menor empáfia, e de boca cheia: ninguém canta choro, mas não canta mesmo! (risos) Porque não é fácil.
CliqueMusic - Você acha que esse título de Rainha do Choro ajudou ou prejudicou mais?
Ademilde Fonseca - De certo modo até prejudicou, porque só chamam a gente para aquilo. Então a Rainha do Choro só pode ir onde tem choro. Talvez pudesse ter lutado contra isso, mas sou acomodada mesmo, em todos os sentidos... (risos)
CliqueMusic - Você gravou muito na época dos 78 rpm. Mas na fase do LP, embora ainda estivesse com uma voz impecável, você gravou apenas quatro discos e alguns compactos. Guarda alguma mágoa por isso ter acontecido?
Ademilde Fonseca - Mágoa? Só se for uma mágoa inconsciente. Creio que não. Até quando a Rádio Nacional fechou, em 1964, e quis me aposentar, ficou difícil, continuaram me solicitando. Tenho a impressão que essa gente que continuou gravando ou é mais avançada ou mais entrona do que eu. Outros cantores foram mais à luta pela música como um trabalho e sempre considerei a música para mim como um lazer, como se eu não precisasse daquilo para valer. Foi uma atitude muito burra de minha parte! (risos) Não tinha consciência mesmo do meu valor. Agora tenho! Veja como foi tarde... (risos)
CliqueMusic - Uma das coisas que mais marcaram em você foi sua dicção impressionante para se fazer compreender em letras grandes, ditas com muita rapidez. É verdade que isso foi notado antes mesmo de sua época de cantora, quando fez teatro?
Ademilde Fonseca - Quando era pequena, fazia teatro em Natal. Escolheram-me para fazer o papel de uma velhinha, justamente por causa da minha dicção. Fazia essa peça juntamente com um grupo teatral da época, com Didi Câmara e meu marido, Naldimar Delfim.
CliqueMusic - No fim dos anos 30 você não sofreu preconceito por trabalhar como atriz e cantora, ainda por cima no Rio Grande do Norte?
Ademilde Fonseca - A família não bronqueou porque com 17 anos já estava casada. Meu marido era músico, então nessa época quem mandava em mim era ele (risos). Ele escrevia e tocava um violão muito legal. Além disso, me ensinou muita coisa em música, pronúncia inclusive. Ele me incentivava. Antes de casar, realmente havia uma pressão. Com sete, oito até 11 anos, meu pai me prendia muito. Um vizinho chegava e perguntava: "Ah! Queria que Preta - esse era meu apelido - fosse lá em casa cantar..." e meu pai: " Não, ela não vai..." Ele não me queria nesse meio. Depois de casada, isso passou.
Mas aí veio um preconceito diferente, um autopreconceito (risos). Eu achava que mulher casada tinha que cuidar dos filhos e da casa. Então, quando mudamos para o Rio, vivíamos de uma renda que vinha da minha família. Comecei a ver que estava difícil para nos mantermos com aquele dinheiro e decidi ir trabalhar. Aí é que fui fazer um teste com o Renato Murce na Rádio Clube do Brasil. Cantei o samba Batucada em Mangueira, do repertório da Odete Amaral, e passei. O Benedito Lacerda me acompanhou e desde então ficamos amigos. Era chamada por ele para cantar em clubes e festas particulares.
CliqueMusic - Você ficou emocionada ao ouvir sua voz pela primeira vez em disco?
Ademilde Fonseca - Não fiquei emocionada quando ouvi minha voz gravada... Não é engraçado? Achei tudo tão natural... Todas as coisas que iam acontecendo em minha vida, parece que eu havia previsto. Nada me chamava muito a atenção. É espiritual, parece...
CliqueMusic - Você teve um revival nos anos 70, quando o choro tornou-se símbolo de resistência cultural em meio à ditadura...
Ademilde Fonseca - Foi quando me apresentei no Teatro Opinião. O ator Jorge Coutinho disse: "Você vai fazer um novo disco", e saiu pedindo músicas a Paulinho da Viola, Martinho da Vila e outros. Voltei com esse disco (em 1975). O Opinião era superlotado às segundas feiras, quando tinha roda de samba. Da minha última safra, considero um disco muito bom, apesar de eu nunca estar totalmente satisfeita com meus trabalhos. Sou perfeccionista.
CliqueMusic - Você foi acompanhada por alguns dos maiores instrumentistas do país... Jacob do Bandolim, Benedito Lacerda, Pixinguinha, Dante Santoro, Abel Ferrreira, Waldir Azevedo, Garoto, Canhoto, os maestros Chiquinho, Radamés Gnattali, Severino Araújo... Com relação aos grandes mestres de regionais de choro, como era sua relação com figuras como Jacob e Benedito, que sempre foram controvertidas...
Ademilde Fonseca - Sempre me dei muito bem com eles. Sou uma pessoa que, se me derem 250 gramas de manteiga de presente, acho maravilhoso. Imagine que o Jacob, sabendo que sou nordestina, uma vez me deu de presente um desses ganchos de armar rede. Achei aquilo o máximo (risos). Trabalhei pouco com Jacob porque ele também era um solista, mas tenho boas recordações. O Benedito Lacerda era meio malcriadão. (risos) Sei que dava broncas nas pessoas, no conjunto, mas tinha uma gargalhada gostosa. Ele foi um protetor para mim na época que comecei. Tinha cuidado comigo nos ensaios, preocupava-se com o tom em que eu deveria cantar melhor. Se ele fosse vivo até hoje, eu teria ganho muito mais dinheiro.
CliqueMusic - Quais foram os maiores virtuoses que você já viu tocar? E quais são os cantores que, quando escuta, você não resiste e pára para ouvir?
Ademilde Fonseca - Quanto ao maior virtuose, creio que Altamiro Carrilho é demais, mas o Abel Ferreira no clarinete também era incrível, tocava ao seu ouvido sem machucar. Mais do passado, tinha o Luiz Americano que também tocava um belo clarinete. Entre os cantores, só houve uma pessoa que eu achava que parava o trânsito. Tinha que parar para ouvir: Orlando Silva. E de fora, minha paixão era o Lucho Gatica... Naquela época, porque hoje ele perdeu muito - aliás, todos nós, veteranos... infelizmente, o tempo passa... (risos)