A rebeldia e lucidez de um poeta escancarado
Letras e declarações de Cazuza ainda soam totalmente atuais mesmo dez anos após sua morte
Rodrigo Faour
30/06/2000
"Pra que sonhar/ A vida é bela e cruel despida/ Tão desprevenida e exata/ Que um dia acaba". Cazuza (1958-1990) soube disso cedo demais e tratou de viver gota a gota tudo o que podia. Sexo & romance, drogas & lucidez, rock’n’roll, Cartola & Maysa. Contradição? Não. Cazuza mesmo. Rebelde descarado por vocação e com muitas causas. Sempre intenso, queria mexer um pouco com o marasmo yuppie dos anos 80. "Os jovens de hoje são bem caretas", disse há exatos 15 anos. "Levo uma vida burguesa. Mas sei que o Brasil vai mal, que tem gente morrendo de fome, que o papa é um bobo e que o comunismo não está com nada", completou na mesma época. Como se pode constatar, tratava-se de um rebelde lúcido.
Desde que morreu, em 7 de julho de 1990, Agenor de Miranda Araújo Neto – o Cazuza – jamais foi esquecido. O parcerio de Barão Roberto Frejat e a cantora Dulce Quental compuseram O Poeta Está Vivo no ano que ele morreu e Marina Lima fez Pode Ser o Que For ("Caju, Caju, eu leio os sinais... Vem vindo coisa boa pra mim") no ano seguinte. Pelo menos, seis discos foram lançados para lembrá-lo. A começar pelo disco de sobras de estúdio Por Aí (91) e Barão Vermelho Ao Vivo no Rock in Rio (gravado em 85). Em seguida, três tributos: o primeiro (Viva Cazuza) foi gravado na Praça da Apoteose, no Rio, o segundo (Som Brasil Cazuza) era o registro do programa Som Brasil da TV Globo, de 1995, e o último saiu no ano passado, Tributo a Cazuza. Por fim, o songbook gravado por Cássia Eller (Veneno Antimonotonia) em 1996. Cássia é talvez a única artista que – como intérprete – tenha levado adiante um pouco da rebeldia de Cazuza durante os anos 90.
Foram apenas nove anos de carreira, mas que vêm dando frutos até hoje. Cazuza começou aos 21 anos, quando criou o Barão Vermelho e começou a compor suas primeiras músicas com Roberto Frejat. Entre 1981 e 1990, gravou três discos com a banda e cinco álbuns solo. Participou da geração pioneira do Rock Nacional, ao lado da Blitz. Foi o suficiente para deixar uma obra na qual o que salta aos olhos é a poética de versos rascantes. "Acho que a gente tem que ser agressivo porque estamos numa época muito agressiva, a Direita está agressiva", disse em 1987. Realmente, desde que morreu até hoje as coisas só pioraram, mas infelizmente não surgiram poetas melhores desde sua geração para levar adiante sua bandeira anarquista.
"Canibais de nós mesmos/ Antes que a terra nos coma/ Cem gramas, sem dramas/ Por que que a gente é assim?", dizia em Por Que a Gente é Assim?, ainda na primeira fase da carreira, com o Barão. Na mesma época, fez o hino do tesão ("Todo dia é dia e tudo em nome do amor/ Ah! Essa é a vida que eu quis/ Procurando vaga uma hora aqui e outra ali/ No vai e vem dos seus quadris"), que catapultou sua carreira, via regravação de Ney Matogrosso, em 1983. Depois, foi cada vez mais longe. Cantou sua porção edipiana em seu primeiro álbum solo ("Você nunca traiu seu melhor amigo/ Nem quis comer a tua mãe?") e traçou mil rosas roubadas para declarar seu amor exagerado ("Por você eu largo tudo/ Vou mendigar, roubar, matar").
Rock com muita bossa e blues
Mesmo tendo voz rouca e a língua presa, nada disso foi empecilho ao cantor. Com estilo bem pessoal, gingou ao som do melhor pop/rock, mas previu uma boa fusão desse som com a MPB, chegando a compor até bossa nova, Faz Parte do meu Show, gravada até por Cauby Peixoto (!). Aliás, chegou mesmo a soltar farpas contra seus próprios amigos roqueiros: "Roqueiro no Brasil é careta e machista". Além do rock, da bossa e da fossa nova, cantou ainda blues, inclusive o antológico Blues da Piedade, zombando dos mesquinhos. "Pra quem vê a luz/ Mas não ilumina suas mini-certezas/ Vive contando dinheiro e não muda quando é lua cheia (...) Vamos pedir piedade para essa gente careta e covarde".
Ah, sim, os caretas e reacionários. Esses ele nunca perdoou. "Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro/ Transformam o país inteiro num puteiro/ Pois assim se ganha mais dinheiro". Os brasileiros foram alvo de sua fúria, mas também o próprio país foi alvo de seu manifesto homônimo em forma de música. "Não me elegeram chefe de nada/ O meu cartão de crédito é uma navalha/ Brasil, mostra tua cara...", dizia uma das raras canções de protesto dos anos 80, que chegou quase a desgastar-se de tanto que foi cantada e gravada – até Bibi Ferreira a cantou em show.
Brasil forma uma trilogia musical do Brasil caótico de final de século, ao lado de Comida (Titãs) e É (Gonzaguinha). Aliás, Cazuza temia não só que o Brasil mas que o mundo inteiro embarcasse numa nau rumo ao abismo. "Estamos entrando numa nova Idade Média, com posturas reacionárias do papa João Paulo II, a paranóia da AIDS, a corrida armamentista... Acho que a gente tem que mudar o mundo, impedir essa regressão".
Da política ao amor, Cazuza destilou como ninguém o narcisismo de sua geração ("Se todo alguém que eu amo/É como amar a lua inacessível/ É que eu não amo ninguém), a carência que não passa ("Eu devia ganhar pra ser carente profissional") e a solidão de menino mimado ("Eu quero alguém que puxe o meu saco/ Eu quero alguém pra ir ao cinema/ Quero alguém/ Não sou exigente"). Nada politicamente correto, como se vê.
Quando se viu portador do vírus mortal do HIV, isso logo se refletiu em suas letras. "O meu tesão agora é risco de vida", dizia na faixa-título de seu clássico LP Ideologia (1988). "Eu vi a cara da morte e ela estava viva", continuava na faixa Boas Novas. Mais tarde, quando revelou a todos sua condição, explodiu na densa e triste Cobaias de Deus, sua rara parceria com Ângela Ro Ro, lançada no álbum Burguesia, em 1989. "Se você quer saber como eu me sinto/ Vá a um laboratório ou num labirinto/ Seja atropelado pelo trem da morte/ Vá ver as cobaias de Deus (...) Nós somos as Cobaias de Deus." Mas em seu CD póstumo, Por Aí, de 1991, saía uma faixa emblemática na qual, com seu humor ferino, acabaria por desfazer de uma vez por todas as noções estereotipadas de Céu e inferno, como que dando um tapa nos que quisessem transforma-lo em santo. "O reino dos Céus é do chato/ Do chato, do chato/ Do otário e do cagão".
Desde que morreu, em 7 de julho de 1990, Agenor de Miranda Araújo Neto – o Cazuza – jamais foi esquecido. O parcerio de Barão Roberto Frejat e a cantora Dulce Quental compuseram O Poeta Está Vivo no ano que ele morreu e Marina Lima fez Pode Ser o Que For ("Caju, Caju, eu leio os sinais... Vem vindo coisa boa pra mim") no ano seguinte. Pelo menos, seis discos foram lançados para lembrá-lo. A começar pelo disco de sobras de estúdio Por Aí (91) e Barão Vermelho Ao Vivo no Rock in Rio (gravado em 85). Em seguida, três tributos: o primeiro (Viva Cazuza) foi gravado na Praça da Apoteose, no Rio, o segundo (Som Brasil Cazuza) era o registro do programa Som Brasil da TV Globo, de 1995, e o último saiu no ano passado, Tributo a Cazuza. Por fim, o songbook gravado por Cássia Eller (Veneno Antimonotonia) em 1996. Cássia é talvez a única artista que – como intérprete – tenha levado adiante um pouco da rebeldia de Cazuza durante os anos 90.
Foram apenas nove anos de carreira, mas que vêm dando frutos até hoje. Cazuza começou aos 21 anos, quando criou o Barão Vermelho e começou a compor suas primeiras músicas com Roberto Frejat. Entre 1981 e 1990, gravou três discos com a banda e cinco álbuns solo. Participou da geração pioneira do Rock Nacional, ao lado da Blitz. Foi o suficiente para deixar uma obra na qual o que salta aos olhos é a poética de versos rascantes. "Acho que a gente tem que ser agressivo porque estamos numa época muito agressiva, a Direita está agressiva", disse em 1987. Realmente, desde que morreu até hoje as coisas só pioraram, mas infelizmente não surgiram poetas melhores desde sua geração para levar adiante sua bandeira anarquista.
"Canibais de nós mesmos/ Antes que a terra nos coma/ Cem gramas, sem dramas/ Por que que a gente é assim?", dizia em Por Que a Gente é Assim?, ainda na primeira fase da carreira, com o Barão. Na mesma época, fez o hino do tesão ("Todo dia é dia e tudo em nome do amor/ Ah! Essa é a vida que eu quis/ Procurando vaga uma hora aqui e outra ali/ No vai e vem dos seus quadris"), que catapultou sua carreira, via regravação de Ney Matogrosso, em 1983. Depois, foi cada vez mais longe. Cantou sua porção edipiana em seu primeiro álbum solo ("Você nunca traiu seu melhor amigo/ Nem quis comer a tua mãe?") e traçou mil rosas roubadas para declarar seu amor exagerado ("Por você eu largo tudo/ Vou mendigar, roubar, matar").
Rock com muita bossa e blues
Mesmo tendo voz rouca e a língua presa, nada disso foi empecilho ao cantor. Com estilo bem pessoal, gingou ao som do melhor pop/rock, mas previu uma boa fusão desse som com a MPB, chegando a compor até bossa nova, Faz Parte do meu Show, gravada até por Cauby Peixoto (!). Aliás, chegou mesmo a soltar farpas contra seus próprios amigos roqueiros: "Roqueiro no Brasil é careta e machista". Além do rock, da bossa e da fossa nova, cantou ainda blues, inclusive o antológico Blues da Piedade, zombando dos mesquinhos. "Pra quem vê a luz/ Mas não ilumina suas mini-certezas/ Vive contando dinheiro e não muda quando é lua cheia (...) Vamos pedir piedade para essa gente careta e covarde".
Ah, sim, os caretas e reacionários. Esses ele nunca perdoou. "Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro/ Transformam o país inteiro num puteiro/ Pois assim se ganha mais dinheiro". Os brasileiros foram alvo de sua fúria, mas também o próprio país foi alvo de seu manifesto homônimo em forma de música. "Não me elegeram chefe de nada/ O meu cartão de crédito é uma navalha/ Brasil, mostra tua cara...", dizia uma das raras canções de protesto dos anos 80, que chegou quase a desgastar-se de tanto que foi cantada e gravada – até Bibi Ferreira a cantou em show.
Brasil forma uma trilogia musical do Brasil caótico de final de século, ao lado de Comida (Titãs) e É (Gonzaguinha). Aliás, Cazuza temia não só que o Brasil mas que o mundo inteiro embarcasse numa nau rumo ao abismo. "Estamos entrando numa nova Idade Média, com posturas reacionárias do papa João Paulo II, a paranóia da AIDS, a corrida armamentista... Acho que a gente tem que mudar o mundo, impedir essa regressão".
Da política ao amor, Cazuza destilou como ninguém o narcisismo de sua geração ("Se todo alguém que eu amo/É como amar a lua inacessível/ É que eu não amo ninguém), a carência que não passa ("Eu devia ganhar pra ser carente profissional") e a solidão de menino mimado ("Eu quero alguém que puxe o meu saco/ Eu quero alguém pra ir ao cinema/ Quero alguém/ Não sou exigente"). Nada politicamente correto, como se vê.
Quando se viu portador do vírus mortal do HIV, isso logo se refletiu em suas letras. "O meu tesão agora é risco de vida", dizia na faixa-título de seu clássico LP Ideologia (1988). "Eu vi a cara da morte e ela estava viva", continuava na faixa Boas Novas. Mais tarde, quando revelou a todos sua condição, explodiu na densa e triste Cobaias de Deus, sua rara parceria com Ângela Ro Ro, lançada no álbum Burguesia, em 1989. "Se você quer saber como eu me sinto/ Vá a um laboratório ou num labirinto/ Seja atropelado pelo trem da morte/ Vá ver as cobaias de Deus (...) Nós somos as Cobaias de Deus." Mas em seu CD póstumo, Por Aí, de 1991, saía uma faixa emblemática na qual, com seu humor ferino, acabaria por desfazer de uma vez por todas as noções estereotipadas de Céu e inferno, como que dando um tapa nos que quisessem transforma-lo em santo. "O reino dos Céus é do chato/ Do chato, do chato/ Do otário e do cagão".