A tradição renovadora de Jacob do Bandolim

Caixa com 3 CDs, englobando o período mais fértil do músico, esquadrinha o universo do choro brasileiro em todas as suas dimensões

Tárik de Souza
19/12/2000
Virtuose de temperamento instável, talvez ditado pelo (des)compasso do coração que acabaria parando antes do tempo, num segundo enfarte aos 51 anos, Jacob Pick Bittencourt, o Jacob do Bandolim (1918-1969) era capaz de disparar opiniões contraditórias. Criticava a estagnação do músico Ernesto dos Santos, o Donga (1890-1974), um dos criadores do primeiro samba. "É o mais reacionário dos tocadores do choro, um indivíduo que se plantou no calendário e não sai dele", atirava. E ao mesmo tempo combatia violonistas posteriores como Baden Powell e Rosinha de Valença, por terem "evoluído demais". Voltar ao choro para eles, seria "um retrocesso", diagnosticava.

Ao contrário da índole incerta do homem nascido e criado na boêmia Lapa carioca, o bandolinista autodidata estabeleceu uma trilha de rigor e refinamento na interpretação e seguiu por ela, como demonstra a caixa Jacob do Bandolim – Gravações Originais 1949-1969 (ouça trechos dos volumes 1 ouvir 30s, 2 ouvir 30s e 3 ouvir 30s. Trata-se do período em que o músico gravou na antiga RCA (atual BMG) após uma curta estada na Continental que o substituiria pelo sucesso popular de outro chorão, Waldir Azevedo, do cavaquinho, estouro do começo dos 50 com Brasileirinho e Delicado.

Embora sem a intensidade do rival, logo transformado em desafeto, Jacob também teve seus êxitos autorais de vendagem. Um deles foi Noites Cariocas, gravado inicialmente em 1957 e editado em três versões na caixa, acompanhada de libreto esclarecedor, assinado pelo jornalista João Máximo, o chorão Henrique Cazes (que escolheu o repertório) e o pesquisador Sérgio Prata (responsável pela discografia). Outro sucesso é o choro Doce de Coco apresentado numa versão inédita, mais corrida, menos romântica.

Mas a seleção mostra que Jacob, um dos consolidadores da linguagem do choro com seu bandolim de toque seco mas emotivo, de menos (e mais extensas) notas que o barroco precursor Luperce Miranda, não se amarrou ao gênero. Embarcou no passo do frevo (Sapeca), flertou com o flamenco (Santa Morena), valsou com dolência (Feia) e enfiou até um sotaque de fado na homenagem ao clube favorito (Vascaíno). O intercâmbio com o samba não poderia faltar como ocorre em Biruta e na Receita de Samba. Seu expressionismo autoral o conduz do moto perpétuo da valsa O Vôo da Mosca, onde não há pausas para o executante ao recortado de síncopas de A Ginga do Mané, homenagem ao botafoguense Garrincha, único futebolista do século capaz de afrontar o reino de Pelé.

"Acho o bandolim, o dos italianos, um instrumento enjoado, a gente tem que arrancar dele um som que ele não tem", ralha o queixoso Jacob que incorporou o instrumento ao sobrenome artístico. Ainda assim, ou até por isso, na faixa Entre Mil... Você! ele emprega a técnica do tremolo (tão executado pelos peninsulares) de palhetadas rápidas imitando um som contínuo. Foi Jacob ainda quem trouxe para a atmosfera do choro os tanguinhos brasileiros do erudito Ernesto Nazareth (ouçam a transcrição para seu instrumento dos clássicos Odeon e Brejeiro) em gravações que realizou a partir de 1952. Não por acaso, foi incluída na caixa o 2º movimento (referente a Nazareth) da Suite Retratos, que lhe dedicou um admirador de sua genialidade, o maestro Radamés Gnattali. O "troféu" obrigou o autodidata a estudar para executá-lo (também na caixa há o 4º movimento, dedicado a Chiquinha Gonzaga).

Autor de peças vitais para a gramática do choro como Assanhado, BoleBole, Pé de Moleque, Simplicidade, Dolente e Vibrações (faixa-título de seu disco considerado mais perfeito), Jacob também incorporou clássicos de outras esferas a seu repertório seletíssimo. Faceira (Ernesto Nazareth), Lábios que Beijei (J. Cascata/ Leonel Azevedo), Despertar da Montanha (Eduardo Souto/ Francisco Pimentel) e Serra da Boa Esperança (Lamartine Babo) estão entre eles.

Empedernido defensor das tradições, Jacob aparentemente dobra-se à bossa nova em Chega de Saudade (Tom Jobim/ Vinicius de Moraes), que divide com o Zimbo Trio no show gravado com Elizeth Cardoso no teatro João Caetano, em 1968. Mas só aparentemente. Como o próprio Jobim relatou em entrevista a este repórter para o livro Tons sobre Tom (com Márcia Cezimbra e Tessy Callado, Editora Revan, 1995), a música, divisora de águas do movimento, foi feita em cima da escala básica (primeira, segunda, terceira, dominante, tônica) de um método de violão de Canhoto que ele usou para ensinar a uma aluna. "Inventei uma sucessão de acordes clássica e botei em cima uma melodia", admitiu ele. O resto fica com a genialidade do autor e a do(s) executante(s) na faixa que fecha a caixa, a arca de um virtuose acima de épocas e (das próprias) idiossincrasias.