A vanguarda vive em Cid Campos

Disco do cantor e compositor reúne Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhotto a poetas concretistas

Marco Antonio Barbosa
11/07/2001
Quem (ainda) tem medo da vanguarda? É o que cada faixa do álbum No Lago do Olho ouvir 30s (Dablíú) (clique aqui para ler a crítica), do cantor, compositor e instrumentista Cid Campos, parece gritar em suas entrelinhas. Trafegando na árida zona de convergência entre a poesia concretista e a música experimental - uma zona que muita gente com certeza nem supunha existir - Cid, que chega a seu primeiro CD solo, parece, à primeira vista, ter vindo para confundir. Afinal, qual seria a reação natural das pessoas ao encarar um álbum que coloca música em poemas de autores "difíceis" como Augusto de Campos, Décio Pignatari e José Lino Grünewald, e que além disso dá espaço para as vertentes mais "cabeça" das obras de Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhotto?

Nada disso, Cid veio para esclarecer, não para confundir (ainda mais). "Faço música experimental sim, mas tenho um suporte pop por baixo de tudo. Curto ritmos, gosto de mexer com samba, xaxado, baião. Não quero fazer canções só para uns poucos ouvirem", afirma o artista. Filho de Augusto de Campos, Cid afirma que o formato peculiar de No Lago do Olho vem a ser um reflexo de sua maturidade musical. "Ao mesmo tempo em que o disco mostra um momento importante e amadurecido da minha musicalidade, eu sinto como se eu estivesse começando agora", afirma Cid.

As 19 faixas de No Lago do Olho se dividem em dois blocos: músicas compostas por Cid ao longo de seus quase 20 anos de carreira (ele começou a tocar aos 16 anos) e versões musicadas para poemas, assinadas pelos poetas já citados e outros (Walter Silveira, Haroldo de Campos e Lenora de Barros), declamados/cantados pelos próprios autores. Há papai Augusto debulhando seus Tempoespaço e Flor da Boca; titio Haroldo com seu Crisantempo; e dose dupla de Walter Silveira, em Banheiro Público e Sairótsih. Junto aos escritores, estão Arnaldo Antunes (em uma versão para seu poema Máximo Fim) e Adriana Calcanhotto, cantando em Êxtases.

"A poesia concreta me instiga a criar. Sinto-me desafiado a compôr música que se encaixe em letras que às vezes são pequenininhas, como o poema Life, do Décio Pignatari - que tem apenas quatro letras! A dificuldade me interessa, ajuda na criação", resume Cid, que já lida com poesia e música há bastante tempo. "A partir de 1991, comecei a fazer música para instalações e eventos que tinham a poesia como parte integrante. Daí os poetas - o Augusto, o Décio - começaram a fazer parcerias comigo, indo ao estúdio e colocando suas vozes nas músicas que eu criava. Com o Walter Silveira, por exemplo, eu já compus músicas suficientes para encher um CD inteiro", conta Cid.

Via poesia também se deu o encontro com Arnaldo e Adriana, dois eternos interessados na zona vanguardista explorada por Cid. "Na verdade, conheci o Arnaldo quando éramos adolescentes, junto com o Paulo Miklos - eles mais tarde formariam os Titãs", fala Cid. "Só fui trabalhar com ele em meados dos anos 90, quando estivemos juntos em um projeto homenageando Oswald de Andrade. Para este disco, eu pedi que o Arnaldo viesse gravar um poema inédito comigo... e ele mandou logo quatro poemas! Ele adorou o convite, veio e gravou um monte de vozes." Adriana Calcanhotto é outra antiga colaboradora. "Conheço-a desde o começo dos anos 90. Ela tinha me convidado, em 1998, para fazer o arranjo da música Vamos Comer Caetano ouvir 30s. Sempre nos falamos, e ela veio gravar comigo por conta própria, fez questão de participar", lembra Cid.

O álbum contém um resumo da carreira do Cid Campos compositor/cantor/baixista, em músicas como Etc e Vamp Neguinha. "Ao mesmo tempo em que eu agitava todas essas coisas, esses projetos com poesia, também ia fazendo minhas músicas. Flor da Boca, por exemplo, eu musiquei aos 16 anos. Então fui juntando tudo isso e quando vi já tinha repertório para um disco. Mas não tive pressa, fui gravando ao longo de dois anos", diz Cid.

No Lago do Olho encerra uma trajetória marcada pessoal na qual música e poesia sempre andaram juntas. Criado em meio a artistas e intelectuais, Cid foi influenciado desde pequeno pelo ambiente no qual vivia na casa de seu pai. "O Augusto recebia toda aquela galera do Tropicalismo: Gal, Caetano, Gil, Macalé. Eu vi o Gil mostrando Batmacumba ouvir 30s pela primeira vez em público, ele tinha acabado de compô-la. Ao mesmo tempo, eu convivia com todo aquele ambiente de poesia, fazíamos encenações dos poemas do Augusto. Tudo isso acabou me marcando muito. Minha música reflete essa mistura", rememora Cid.

Ao chegar à adolescência, o músico participou de bandas de rock, como o grupo Papa Poluição (que compôs em 1982 a trilha sonora do filme Sargento Getúlio, de Hermano Penna), e depois entrou fundo na música instrumental, com a banda Sexo dos Anjos. "Era uma coisa meio jazz, cheia de improvisos e influenciada pelo Hermeto Paschoal, com ritmos brasileiros", conta Cid. Já com o grupo Zipertensão, uma de suas canções, Vamp Neguinha, acabou participando do Festival dos Festivais, promovido pela TV Globo em 1985, e se classificando para a final. "Fazíamos um rock estranho, com elementos de performance. Levamos a maior vaia", diz Cid, rindo. Durante os anos 90, Cid colaborou com vários espetáculos e tornou-se parceiro do veterano baixista Péricles Cavalcanti.

Com toda essa overdose de informação e as referências nem pouco populares que pautam sua obra, Cid Campos hesita ao tentar classificar sua obra. "É um som esquisito. Eu me considero na mesma linhagem de artistas como o Tom Zé, Walter Franco, Arrigo Barnabé, o próprio Arnaldo - gente que me influenciou também. É uma mistura do pop com o experimental: ao mesmo tempo em que eu mexo com grooves, com os instrumentos básicos do pop, eu também coloco a (cantora) Madalena Bernardes para pôr aquelas vozes estranhas no disco...", fala ele.

Acima de tudo, Cid despe-se da pretensão e do hermetismo que assusta muita gente quando ouve-se falar em vanguarda. "Eu apenas curto o que faço, acho significativo lançar um trabalho como este. Mas também não me encaixo no padrão do artista que quer perseguir uma carreira, se enquadrar no mercado. Não fiz esse disco pensando em emplacar sucesso algum. É só um registro de um momento maduro, que eu queria ter feito antes. Mas se rolar de me classificarem como vanguarda, tudo bem, visto a camisa com o maior prazer."