A volta por cima do Ira!

Aos 20 anos de carreira, a banda paulistana experimenta de novo o grande sucesso com o disco MTV Ao Vivo. Em entrevista, o vocalista Nasi conta como foi o processo que levou o Ira! de volta ao fim de semana do Canecão (RJ) depois de 13 anos longe da mídia

Silvio Essinger
15/02/2001
Uma boa notícia: gravado em setembro passado no Memorial da América Latina (SP) e lançado pouco depois, MTV Ao Vivo Ira! ouvir 30s (DeckDisc/Abril Music), o primeiro álbum ao vivo da banda paulistana em 20 anos de carreira, caminha rapidamente para o disco de ouro (100 mil cópias). Ao mesmo tempo, está saindo em DVD a gravação do show, com entrevistas e biografia de bônus. Eis um sucesso que o Ira! não vivia desde os tempos de seu segundo LP, Vivendo e Não Aprendendo ouvir 30s (1986), que estourou músicas como Envelheço na Cidade e Flores em Você (que foi até tema de abertura de novela). Sinal de que os bons tempos voltaram mesmo é que eles fazem este fim de semana uma temporada no Canecão (RJ) - sábado e domingo, com abertura do Cajamanga, uma das revelações do concurso Escalada do Rock, do Rock In Rio. Coisa que não acontecia desde 87, na turnê de Vivendo e Não Aprendendo.

Em entrevista a CliqueMusic, o vocalista Marcos Valadão, o Nasi, falou de como foi custoso para o Ira! dar essa volta por cima e comentou com alegria o fato de os mineiros do Pato Fu estarem regravando um de seus sucessos, Tolices, para seu novo álbum. Ele também teceu comentários sobre a participação no último Rock in Rio, ao lado dos amigos do Ultraje a Rigor, e sobre o relançamento luxuoso, coordenado pelo titã Charles Gavin, de Vivendo e de Mudança de Comportamento ouvir 30s (85), o LP de estréia da banda: "Ele é a base do repertório do Ao Vivo. Espero que a garotada vá procurá-lo agora."

CliqueMusic - É uma vitória estar fazendo sucesso de novo?
Nasi
- Sim, ainda mais se levarmos em conta que o cenário não é mais tão propício ao rock quanto naquela época. Isso tudo é fruto de um amadurecimento de postura do Ira! Tivemos alguns momentos difíceis nos anos 80, ficamos sem perspectivas e gravamos dois discos na Paradoxx (7 ouvir 30s e Você Não Sabe Quem Eu Sou ouvir 30s), que tiveram repercussão segmentada. Mas aí veio a Abril e fez um trabalho legal. Isso é Amor ouvir 30s (disco de versões, lançado em 1999, que já vendeu 80 mil cópias) nos colocou de novo nas rádios e nos levou a ganhar um prêmio da Associação de Críticos de São Paulo como melhor grupo popular - saímos enfim daquela coisa de grupo de rock. Essa ressonância pop, artística, abriu campo para que gravássemos esse esperado disco ao vivo. Sempre éramos tentados a fazê-lo, mas chegamos a um acordo de que teria que ser num momento de saúde da banda, para não parecer que era o canto do cisne.

CliqueMusic - E o show do Rock in Rio coroou esse momento bom?
Nasi -
Tudo foi muito feliz - o dia, a escalação, o horário... Gostei de tocar com o Ultraje, aquele foi um bom momento de integração. Foi melhor fazer uma celebração assim do que um show inteiro do Ira! - não dá para ser over o tempo todo. Meia hora só foi suficiente, a gente saiu da apresentação com o público pedindo mais! O que foi mais importante para gente neste bom show do Rock in Rio, porém, é o fato de nossa última participação em grandes festivais até então, em 1987, no Hollywood Rock, ter sido muito conturbada. Ali, por sinal, havia um clima bem mais propício para um levante do Grupo dos Seis do que no Rock in Rio (referência às bandas que desistiram de se apresentar no festival por se julgarem diminuídas em relação às atrações estrangeiras). Todo o staff, todo o equipamento e a estrutura de som e luz era para as bandas estrangeiras - e não havia nem remuneração para as bandas nacionais!

Na época, abrimos o jogo de maneira ingênua, numa entrevista coletiva, e travamos um bate-boca com a organização do Hollywood Rock. Só que isso não reverteu numa apresentação irada, como deveria ser. Foi um show afoito, retraído (Edgard Scandurra encerrou a apresentação jogando a guitarra no chão). E, coincidentemente, a gente nunca mais participou de um grande festival depois disso. A banda estava num bom momento, tinha tudo na mão, e perdeu o pênalti e o campeonato nesse show - depois disso, o rock nacional foi ladeira abaixo.

CliqueMusic - O amadurecimento fez bem então ao Ira!, não?
Nasi -
Tem uma palavra que falam há mais de dez anos e a gente não gosta muito - maturidade. Quer dizer, se a gente amadurece, qualquer dia fica podre, não é? (risos). Foi por isso que o Ira! deu aquele título de Vivendo e Não Aprendendo ao segundo LP. De qualquer forma, foi bom ter amadurecido. Passamos por aquele período desértico, entre 1993 e 96, e, quando a colheita chegou, soubemos aproveitá-la.

CliqueMusic - O Ira! sempre teve uma imagem de a grande reserva de integridade no rock brasileiro...
Nasi
- Isso tomou uma tal dimensão que virou uma forma de diminuir a banda! É algo que nos incomodava, porque parecia que o Ira! era honesto e as outras bandas não eram - mas somos mais do que isso! Tivemos erros e acertos. Nos 80, a gente acreditava que se criaria uma mídia correta para o rock, e por isso priorizava os programas em que se pudesse tocar ao vivo. Só que isso não aconteceu. Hoje em dia, a gente sabe que se não participar de determinados programas, ninguém vai ver a banda. Durante uma época, a gente se recusou a participar deles e isso criou uma defasagem em relação aos nossos colegas de geração, além de um estigma de artistas compradores de briga. É o que às vezes simplifica a definição do Ira! - honestidade, sim, mas com qualidade.

CliqueMusic - Entre erros e acertos, porém, vocês construiram uma obra de 10 discos.
Nasi -
A gente tem uma característica de rock que não deixou herdeiros - só agora uma banda, o Pato Fu, regravou uma música nossa, Tolices, que ficou bem do jeito deles. Nem todos os nossos discos são obras-primas, mas não há nenhum que a gente possa dizer que seja totalmente m.. Eles refletem os momentos pelos quais passamos - uns mais felizes, outros menos inspirados. O curioso é que, com todos os picos de sucesso, nós nunca perdemos uma certa aura cult e nunca tivemos uma imagem muito desgastada. No imaginário do roqueiro o Ira! é visto como uma coisa bacana. E nos shows, estamos vendo uma segunda geração de fãs - é comum dar autógrafos para o pai e para o filho. É difícil ver banda que tenha uma música como Envelheço na Cidade, que agita a garotada hoje tanto quanto agitava a daquela época. Em termos de Brasil, isso é muito importante. A gente, por exemplo, nunca usou gírias nas letras para não ficar datado.

CliqueMusic - E mesmo flertando com vários estilos musicais, o Ira! nunca perdeu sua característica própria.
Nasi -
Tivemos influência do hip hop, da música eletrônica, da música flamenca... Eram coisas que a gente estava vivendo - um estava namorando uma dançarina de flamenco, outro uma menina que fazia a dança do ventre... (risos) É o fio da navalha em que se anda. Mas a gente sempre quis manter uma maneira de fazer música que o público gosta - ele cobra muito, pede para a gente não se vender.

CliqueMusic - Nunca o Ira! esteve com tantos discos nas lojas quanto hoje. Além dos discos da Deck Disc/Abril Music, ainda têm as coletâneas da Warner e os dois primeiros discos, que o Charles Gavin relançou com faixas bônus.
Nasi
- Depois que a gente saiu da Warner, a cada disco que a gente lançava em outra gravadora, ela soltava uma coletânea - e nos shows a gente acabava dando tantos autógrafos nas coletâneas quanto nos discos que a gente estava lançando. Eu ficava p., porque eram discos nos quais a gente não tinha tido nenhuma participação na seleção do material - e sequer davam os CDs para a gente! Mas teve o outro lado, porque isso alimentou uma nova geração de fãs, os adolescentes dos anos 90. Quanto à reedição dos dois primeiros discos pelo Charles, este sim foi um projeto sério. Ele entrou em contato com a banda, disse que tinha achado coisas ao vivo e escolheu com a gente quais as que iam entrar como faixa bônus. Assim é bacana! Ele ainda reeditou o primeiro disco solo do (guitarrista) Edgard Scandurra (Amigos Invisíveis ouvir 30s, de 1989), que estava jogado na privada do porão da Warner. Nosso próximo desejo é que ele ajude a relançar o Psicoacústica (terceiro LP do Ira!, de 1988), que é talvez o nosso mais cultuado. Seria sensacional ouvi-lo remasterizado - é o nosso melhor som.

CliqueMusic - O próximo disco do Ira! será, enfim, de inéditas. E aí?
Nasi -
O Ira! descobriu que também gosta de trabalhar sob pressão - a gente era meio Dorival Caymmi (risos). Por isso, já levamos algumas músicas novas para o Ao Vivo (Vida Passageira, Inundação de Amor e Superficial (Como um Espinho)) O Edgard já tem algumas coisas na manga, e eu tenho as minhas com o Gaspa (Ricardo Gasparini, o baixista). A intenção é divulgar o disco ao vivo até o final do primeiro semestre e depois gravar o novo.

CliqueMusic - E como ele deve sair? Já dá para saber?
Nasi
- A essa altura do campeonato, nós já temos uma maneira reconhecida de compor, mas não que ela seja óbvia. No novo disco a gente quer usar toda a gama de influências - a eletrônica do Edgard, a minha blues (o vocalista já está no terceiro disco de sua banda paralela, Nasi e os Irmãos do Blues) e a surf-music do Gaspa (que tem a banda paralela, Os Alquimistas). A gente quer esse próximo CD seja o menos básico, uma ponte entre o Ira! clássico e os outros sons, outras batidas, novas pulsações.