Acertos, erros e excessos de Zé Ramalho

Os melhores anos da carreira do cantor paraibano foram reunidos em caixa com 11 CDs, incluindo várias faixas bônus

Marco Antonio Barbosa
10/04/2003
O tempo ainda não fez toda a justiça a Zé Ramalho. Um dos cabeças da geração setentista que desceu do Nordeste para brilhar no eixo RJ/SP, o paraibano acabou tendo uma carreira bem mais irregular do que seus contemporâneos - Alceu reinventou-se como menestrel independente ao extremo, a prima Elba Ramalho chegou ao topo das paradas (onde encontrou-se com o amigo Fagner), e mesmo nomes como Geraldo Azevedo e Belchior estabeleceram trajetórias mais estáveis, ainda que de menor visibilidade na mídia. O próprio Zé admite que desacertos na sua vida pessoal (notadamente seu envolvimento com drogas) prejudicaram sua potencialidade e empanaram sua musicalidade única; cruzamento da mais funda raiz nordestina, herdeira dos cantadores do sertão, com a verbosidade eletroacústica do folk-rock importado do exterior.

Nada menos que 14 anos da carreira do compositor paraibano (de 1978 a 1992) acabam de ganhar uma revisão bem atenta, com o lançamento da caixa Zé Ramalho (Sony). Agrupando 11 CDs reeditados e remasterizados por Marcelo Fróes, o box - com aparência rústica, feita de papelão sem retoques - traz 23 faixas bônus, oito delas inéditas, todo o trabalho gráfico dos LPs originais e textos e entrevistas conduzidas pelo próprio Fróes. O lançamento corrige a desfalcada discografia digital de Zé, que tinha sido relançada em edições meio apressadas, sem letras e com a arte original desfigurada. Não há muito o que discutir; a caixa condensa o que de melhor o paraibano produziu em toda a sua carreira, uma vitalidade concentrada basicamente entre 1978 e 1983 e que veio diluindo-se pelos anos 80 e 90.

Zé chegou à CBS (atual Sony) pelas mãos de Fagner, que à época (1977) era diretor artístico do selo Epic, direcionado à revelação de novos talentos. Ao entrar em estúdio para gravar seu primeiro álbum solo, em 78, Zé já havia emplacado dois sucessos como compositor (Avohai, gravada por Vanusa, e Frevo Mulher, na voz de Amelinha). E no disco Zé Ramalho o cantor delineava em definitivo sua surpreendente mistura sonora - letras verborrágicas, carregadas de imagens apocalípticas e metafísicas, embaladas por um som que colava influências de pop rock (do ídolo Bob Dylan em especial, mas também dos Beatles e do rock psicodélico) a uma revitalização da estética repentista.

Neste passo, Zé criou seus melhores álbuns. O já citado disco epônimo (que tem Avohai e Vila do Sossego), o cultuado A Peleja do Diabo com o Dono do Céu (que, além de Frevo Mulher e Admirável Gado Novo trazia a antológica capa com Zé do Caixão "contracenando" com o cantor), A Terceira Lâmina (1981) e Força Verde (1982) são as gemas do pacote - consolidando uma impressionante ponte entre o universal e o nordestino. Sintomaticamente, como que para fechar a grande fase de Zé, uma disputa judicial envolvendo Força Verde deixou o cantor em maus lençois em 1982; a faixa-título, que usava versos do poeta irlandês W.B.Yeats, rendeu a Ramalho uma acusação de plágio. (O cantor alegou ter lido a poesia, sem créditos, numa história em quadrinhos do Incrível Hulk, homenageado no título da música.)

O fato é que, de Força Verde em diante, Zé nunca mais foi o mesmo. Enquanto a criatividade murchava e os álbuns investiam em duvidosas incursões pelo pop-rock mais ortodoxos (ou descaradas diluições de fórmulas testadas pelo próprio Zé), um fantasma mais negro rondava a carreira do paraibano: os excessos químicos. Embalado por cocaína e álcool, Ramalho parece não ter notado o sucesso e o talento indo embora. Nas entrevistas com Marcelo Fróes incluídas na caixa, o cantor admite abertamente a má fase. Apenas mais um solitário hit nos anos 80 (Mistérios da Meia-noite, de 1986) viria; a regularidade da produção se perdia. Orquídea Negra (1983), Por Aquelas que Foram Bem Amadas/Pra Não Dizer que Não Falei de Rock (1984), De Gosto, de Água e de Amigos (1985), Opus Visionário (1986), Décimas de um Cantador (1987), Brasil Nordeste(1991) e Frevoador (1992) foram os discos deste período. Os fãs do cantor sempre podem extrair, com preciosismo de garimpeiro, momentos interessantes e dignos em cada um deles. Mas os tempos de glória dos primeiros anos da carreira de Zé estavam definitivamente encerrados.

A volta por cima se daria num outro capítulo, em outra gravadora. Em 1996 Zé assinou com a BMG, reencontrou-se com o sucesso junto a Geraldo Azevedo, Alceu Valença e Elba Ramalho (no álbum O Grande Encontro) e lançou um álbum que, para muitos, compara-se ao apogeu de sua produção: o vigoroso Nação Nordestina, de 2001. Mas essa ressurreição ficou de fora da caixa, assim como a pré-história de Zé ainda no Nordeste. O mitológico disco Paêbiru, gravado em dupla com o pernambucano Lula Cortes em 1975, permanece inédito em CD - e cada uma de suas 500 cópias originais vale hoje em dia uma fortuna.

Além de oferecer a chance de ter, de uma só vez e em grande estilo, todos os discos da primeira fase de Zé Ramalho, a caixa torna-se indispensável para os fanáticos pelas faixas-bônus postas no pacote. Das 23 canções, oito (inéditas) podem ser consideradas raridades para valer, caso da versão instrumental para Admirável Gado Novo ou o take acústico de Chão de Giz. Outras, como Rapaz do Táxi ou O Desafio do Século (dueto com Paulinho Boca de Cantor, dos Novos Baianos), já eram conhecidas. Algumas chegaram a ser lançadas na caixa 20 Anos, box triplo lançado pela mesma Sony em 1997.