Adelaide Chiozzo: a todo vapor, aos 70 anos

Cantora, atriz e acordeonista famosa na década de 50 tem público fiel até hoje

Rodrigo Faour
17/06/2001
O tempo parece não ter passado para Adelaide Chiozzo. Bonitona, com leveza e garra de iniciante, a cantora completou 70 anos no último dia 8 e figura em nosso imaginário desde 1950, quando estourou em filmes como Carnaval no Fogo, ao lado de Eliana Macedo. Ambas formaram uma dupla imbatível nas chanchadas de então. Sozinha ou ao lado da amiga, ela gravou 18 discos de 78 rotações e um raro LP - Lar, Doce Melodia - ao lado de seu marido, o violonista Carlos Mattos, seu companheiro há exatos 50 anos. O diferencial de Adelaide em relação às outras artistas de seu tempo é que além de acumular as carreiras de atriz e cantora, ela ainda por cima é uma excelente acordeonista, a ponto de incentivar toda uma geração de garotas a encarar o pesado instrumento. Não era para menos, em suas mãos o acordeon parecia ter a leveza de um leque de plumas... Atualmente, Adelaide tem se apresentado em diversos shows pelo país ao lado de Emilinha Borba, segundo ela, sempre com casas lotadas.

Adelaide diz que desde criança era inquieta ("a mais levada da classe") e sempre teve vocação para a carreira artística. "Quando era bem pequena, se ouvia fox-trot, saía sapateando. Era a época da Shirley Temple... Aos 9 anos, já tocava uma violinha porque morava no Brás, em São Paulo, onde a música sertaneja é muito forte", recorda a cantora. Mas foi quando pegou no acordeon pela primeira vez que sua mãe viu que ali estava nascendo uma grande estrela. "Meu pai não queria que ninguém tocasse em seu acordeon, que ele mal sabia tocar. Mas eu sabia que se pegasse naquilo, tocaria tranquilamente. Minha mãe então segurou as correias do instrumento e eu toquei uma valsa inteira, Saudades de Matão, que era de autoria do irmão dela. Ela ficou muito nervosa e começou a chorar", conta ela, orgulhosa de ser autodidata no acordeon.

Um vizinho, vendo Adelaide tocar daquele jeito, tratou de inscrevê-la no programa Procura-se Novos Valores, de Vicente Leporace, na Rádio Bandeirantes (SP). Sem que seu pai soubesse, é claro! "No ensaio, os músicos que ali estavam já ficaram comentando uns com os outros sobre minha performance; afinal, eu tinha apenas 11 anos. Na hora do programa, toquei direitinho e ganhei o primeiro lugar. Venci todas as etapas do programa. No dia da final, esse meu vizinho pediu que meu pai ligasse o rádio, que tinha uma surpresa para ele. Quando ele me viu tocando uma valsa difícil chamada Rapaziada do Brás, ficou chocado, pois nem sabia que eu tocava". A seguir, ela recebeu o convite de uma dupla sertaneja, os Irmãos Motta, para que ela os acompanhasse em seu programa semanal. O pai só consentiu se o irmão, também acordeonista, a acompanhasse. "Ele tinha um preconceito danado. Antigamente se falava que artista não prestava", recorda.

Aos 15 anos, Adelaide se mudou com a família para o Rio de Janeiro. Sua mãe sabia que em São Paulo a carreira da filha não decolaria. Estava certa. À exeção de Isaurinha Garcia, os artistas paulistas não costumavam estourar nacionalmente. Seu pai vendeu a fábrica de móveis que tinha em Sampa e comprou de um amigo uma nova no Rio. "Um dia - um domingo de manhã - papai abriu uma parte da fábrica e falou: 'Pegue o acordeon, vamos tocar alguma coisa'. Ele pegou o violão e quando estávamos no meio da música, apareceu uma pessoa pedindo para entrar e ouvir o nosso som. Era o Irany de Oliveira, compositor de várias músicas do Carequinha. Ele perguntou ao meu pai se ele conhecia o programa Papel Carbono, do Renato Murce. Recém chegados de São Paulo, nunca havíamos falar no programa. Ele disse que era um programa popular e que queria me inscrever lá. Mais uma vez meu pai só consentiu se meu irmão fosse junto comigo".

O Papel Carbono era um programa onde os calouros-mirins tinham de imitar algum grande nome da música. Adelaide então imitou o gaúcho Pedro Raimundo, e seu irmão, Luiz Gonzaga - então no auge da popularidade. "Nesse programa quem votava era o auditório e eu levei novamente o primeiro lugar", diz. Nessa altura, a figura graciosa de Adelaide saltava aos olhos, afinal não havia outras artistas na época, quanto mais tão jovens, empunhando um acordeon. "Costumo dizer que o acordeon é um caixote bem acabado (risos). Tocava aquele acordeon grande, pesado e quase ficava escondida atrás dele pois era pequena ainda...", lembra ela, que popularizou muito o instrumento, a ponto de Mário Mascarenhas, que tinha uma escola de acordeonistas, ter ido até à cantora pedir-lhe que ensinasse às garotas como dançar com o instrumento nos braços.

"O Mário queria que eu as ensinasse como fazer do acordeon um instrumento simpático, leve. Ele pesa muito mais no lado esquerdo que no lado direito e a correia do lado esquerdo vivia caíndo do ombro. Então eu jogava o cabelo pra a frente e quando voltava para trás dava um impulso que ela voltava para o lugar", ensina a cantora, lembrando-se que antes dela apenas Dilú Melo tocava acordeon, apesar de não ter ficado marcada como sanfoneira porque além, de se apresentar tocando também outros instrumentos, atuou mais como compositora. Com tantos anos empunhando esse peso, Adelaide jura que nunca teve problemas de coluna. Mais problemas ela teve mesmo foi com o machismo do pai e do marido. Por pouco não liquidaram sua carreira.

Carreira de cantora acompanhou a da atriz
O compositor Irany de Oliveira não levou Adelaide apenas para o Papel Carbono, mas achou por bem levá-la para um teste nos estúdios da Atlândida. "Ele disse para o (diretor de chanchadas) José Carlos Burle que eu era um gênio no acordeon, tocava todos os gêneros e nunca tinha tido professor. O Burle disse: 'Você sorri, faz cara de choro, olha pra cima, para baixo, toca acordeon e canta. Tudo rapidinho.' Mas meu pai dizia que sem meu irmão não dava. Tinham que engolir meu irmão", conta Adelaide.

"Eu então fiz dois quadros - um num ano, no filme É Com Esse que eu Vou - e outro no ano seguinte, Este Mundo É um Pandeiro . Os jornlaistas queriam saber quem era aquela garotinha que tocava acordeon. O Watson Macedo fez O Mundo se Diverte e me colocou num quadro cantando Tempo de Criança - quem me a música deu foi a Emilinha. Ela era meu ídolo", relembra a artista.

Adelaide recorda sua participação no filme Carnaval no Fogo, de Watson Macedo: "O Watson perguntou: 'Adelaide, você não teria uma música alegre para uma cena que tivesse bicicletas, moinhos rodando... tipo música da Holanda...?' Ele tinha uma imaginação fantástica. Nisso, o Bené Nunes começou a compor no piano. E o Watson: 'Pedalando, pedalando vou buscar o meu amor'. (O ator) Anselmo Duarte fez a letra. Cheguei em casa e treinei. Eu ouvia uma música no cinema, chegava em casa e saía a música inteira. Acabei gravando a música, Pedalando."

O sucesso chegava, mas Adelaide enfrentava problemas com o autoritarismo do pai. Ela conta como foi o começo do romance com Carlos Mattos, em 1950: "Minha mãe dizia para meu pai: 'É um rapaz muito bonzinho que toca violão e que admirou muito Adelaidinha... Ele ia lá em casa tocar violão para nossa família. Toda noite ele ia. Papai falava: 'Esse cara está vindo para tocar para você. Ele é boa gente? Senão, sento a mão nele!" Um dia, falou que queria me namorar. A família foi toda lá. Meu pai me tirou da Rádio Nacional para não encontrar com ele. Ele me proibiu de namorar: dizia que casamento sim, mas não queria namoro. Foi meu pai quem marcou a data do casamento, 20 de janeiro de 1951".

"Meu pai me falava sobre meu trabalho no cinema: 'Se você deixar aparecer perna e beijar, eu te arrebento, te mato até'. Ele disse isso para meu marido", fala Adelaide. Quando cairam na real? Nunca. "Não sei como sobrevivi no mundo artístico. Fiz novela, trabalhei nos melhores veículos. Atlândida, Rádio Nacional, três novelas (Feijão Maravilha, Deus nos Acuda e Cambalacho). A partir dos anos 60 terminou isso. Fazia um filme sempre muito nervosa, primeiro porque tinha que ver o script para ver se tinha perna de fora, cena de cama... O que vingou mesmo foi a época da chanchada porque não tinha cena de cama."

Aposentando o acordeon
Com o final da fase das chanchadas, Adelaide foi perdendo popularidade. Ficou deprimida? "Fui vender imóveis. Abri uma firma, vendia roupas. Tive que preencher o vazio. Era uma coisa honesta que estava fazendo. Nós temos uma vida e temos que manter. Carlos foi dar aula de violão. Arranjamos um emprego para ele. Foi ensinar violão. Fazendo butique, imobiliária... Saí da Rádio Nacional e eles ficaram me devendo uma indenização - mas foi mixaria e demoraram dois anos para pagar."

Mas a música continuou a fazer parte de sua vida. "Montei um conjunto e passei a tocar contrabaixo elétrico. Minha filha tocava guitarra-base, Carlos a guitarra solo e um sobrinho ficava na bateria. Era o grupo Eles e Elas, batizado pelo César de Alencar. Naquela época o acordeon ficou como coisa de caipira, cafona. Fui para o contrabaixo, tenho facilidade de aprender, ele me de uma aula e fui embora. Cantava e cantava rock e tudo, twist... Nunca abandonamos a música. Tinha que ter esse lado", narra Adelaide.

Hoje, aos 70 anos, Adelaide ainda está bem ativa. "Eu canto. Meu show tem samba e até rock. Canto Beijinho Doce, meu carro-chefe, Pedalando, Cabecinha no Ombro, Sabiá na Gaiola, Cabeça Inchada... Canto coisas mais modernas, como Anos Dourados e Bésame. Não gosto de ser saudosista. Está certo, tive um passado. Gosto das coisas boas até hoje. Até coisa de pagodeiro, tem algumas boas que canto no show, fazemos arranjo no nosso estilo e o pessoal vibra. São grandes músicos, por coincidência da minha família: meu filho, netos", diz ela.

E o que fica dessa carreira de mais de 50 anos: "Eu acho que valeu muito. Fico muito contente. Fico pensando como Deus foi maravilhoso para mim. Fui bem na carreira artística, no cinema, na TV e no rádio. Fui bem com o público, porque o tenho ainda, até hoje. Fui com Emilinha em SP 3.500 pessoas. Não tinha lugar. Ou sozinha ou com Emilinha, a gente lota. As pessoas se emocionam muito. Sou dona de casa, cozinho, passo... Ainda arranjo tempo para decorar música, letras..."