Adeus a Baden Powell

Morre no Rio o instrumentista que revolucionou o violão brasileiro, aliando técnica e interpretação impecáveis

Nana Vaz de Castro
26/09/2000
A música popular brasileira perdeu na manhã de hoje uma de suas maiores expressões: o compositor e violonista Baden Powell de Aquino, 63 anos de idade, vítima de complicações em vários órgãos vitais. Baden estava internado na Clínica Sorocaba, no Rio, desde 23 de agosto. Nas últimas semanas o músico respirava com auxílio de aparelhos e fazia hemodiálise. O enterro será realizado amanhã às 14h no cemitério São João Batista, em Botafogo (RJ).

Um de seus últimos projetos realizados foi a gravação de um disco dedicado à obra do violonista João Pernambuco (1883–1947), produzido pelo Sesc de São Paulo ouvir 30s. Baden também estava cotado para fazer um show ao lado Gal Costa, com repertório composto exclusivamente de músicas de Tom Jobim. Internado pouco mais de uma semana antes da estréia do show no Rio de Janeiro, Baden foi substituído por Edu Lobo. A gravadora Trama também tem, prestes a lançar, material inédito gravado. Trata-se do disco Lembranças, com previsão de lançamento para outubro. Neste disco, Baden toca acompanhado apenas do percussionista Fred Prince em algumas faixas, e o repertório inclui Pastorinhas (Noel Rosa/ João de Barro), Molambo (Jayme Florence/ Augusto Mesquita), Branca (Zequinha de Abreu) e outras, além de composições próprias como Tem Dó (com Vinicius) e Falei e Disse (com Paulo César Pinheiro).

Nascido no pequeno município fluminense de Varre-Sai, Baden Powell ganhou este nome porque o pai era um entusiasta do escotismo, e resolveu batizar o filho com uma homenagem ao britânico fundador do movimento dos escoteiros, disseminado em todo o mundo. Foi do pai, músico amador, que o jovem Baden recebeu as primeiras noções musicais, no Rio de Janeiro, para onde a família se mudou quando ele ainda era bem pequeno.

Aos oito anos começou a ter aulas de violão com Jayme Florence, o Meira, integrante do conjunto Regional do Canhoto, o mais famoso da época. Graças ao professor passou a freqüentar estúdios de rádio e a conhecer músicos como Pixinguinha, João da Baiana, Bide, Benedito Lacerda, Ismael Silva. Com quinze anos obteve uma autorização especial do juizado de menores para se profissionalizar como músico. Já então acompanhava grandes nomes do rádio e do samba, como Cyro Monteiro, Alaíde Costa, Adelaide Chiozzo. Mas também ganhava a vida tocando em casas de menor prestígio, cabarés do Mangue, gafieiras e inferninhos da zona de meretrício do Rio de Janeiro. Tocava em praticamente todos os programas da Rádio Nacional na década de 50, apesar de nunca ter sido oficialmente contatado pela emissora. Lá, acompanhou estrelas como Angela Maria, Cyll Farney, Ivon Cury.

No final da década foi contratado pela gravadora Philips, e gravou em discos de Paulo Moura (Interpreta Radamés Gnattali, de 1958) e Carlos Lyra (Bossa Nova, 1959). Foi pela Philips que gravou seu primeiro LP, Apresentando Baden Powell e Seu Violão (1959) e o segundo, Um Violão na Madrugada (1961). Tanto no universo do rádio como na incipiente bossa nova, tão influenciada pelo jazz, a técnica e sensibilidade de Baden Powell impressionavam a todos. Por essa época começaram as primeiras parcerias, como com o compositor Billy Blanco, à época namorado de Dolores Duran, que Baden acompanhava. Billy foi amigo de toda vida, e parceiro em músicas de sucesso como Samba Triste.

Em 1962 deu-se o famoso encontro com Vinicius de Moraes. O poeta encontrou em Baden o parceiro que poderia com ele varar madrugadas tocando, compondo – e bebendo –, algo que não fazia muito o gênero de Tom Jobim nem de Carlos Lyra, seus parceiros mais constantes até então. Como moravam longe um do outro, Baden às vezes dormia na casa de Vinicius. Um dia, dormiu lá e ficou por três meses. Entre 62 e 65 Baden e Vinicius compuseram a série de afro-sambas que imortalizaria a dupla como uma das mais brilhantes da MPB dos anos 60. Foi nessa época que a relação de Baden com a bebida se intensificou, permeada por internações e sessões de desintoxicação nas clínicas da cidade, além de shows cancelados, cenas e brigas.

Carreira no exterior
Em 1963 Baden foi a Paris pela primeira vez, com a esposa Heloísa. Pretendia passar quinze dias e acabou ficando quinze meses, período em que gravou os discos Le Monde Musical de Baden Powell e Billy Nencioli et Baden Powell, com o cantor e compositor francês, os primeiros de muitos discos lançados na França. Depois disso, voltaria à Europa diversas vezes e moraria na França na década de 70, onde nasceram seus dois filhos, Phillipe e Louis-Marcel, hoje músicos, e na Alemanha na década de 80, mais precisamente na cidade de Baden-Baden. O violonista foi por um bom tempo (principalmente nos anos 70 e 80) um dos músicos brasileiros de maior prestígio no exterior. Esse prestígio era arranhado apenas em decorrência dos seus problemas com a bebida, que se arrastaram por muito tempo. Mas no palco os efeitos dos porres mal eram notados pela platéia, o que, aos olhos de quem o havia visto minutos antes no camarim, parecia mágica.

Na primeira volta ao Brasil gravou, no início de janeiro de 1966, o disco Os Afro-Sambas, com as composições em parceria com Vinicius em arranjos do maestro César Guerra-Peixe. O disco faz parte de qualquer discografia básica de MPB, mas Baden fez questão de regravá-lo em 1990, alegando que as condições técnicas da gravação de 1966 eram precárias. Sua obsessão pela parte técnica – tanto nas músicas quanto nas gravações – foi uma característica marcante de sua vida. Os que conviveram com ele são unânimes em lembrar as horas que o violonista podia passar tocando a mesma passagem de uma música ao violão ou ouvindo o mesmo disco – às vezes por dias inteiros, levantando-se apenas para trocar o lado do LP da vitrola.

Ao lado de Vinicius, Paulo César Pinheiro foi o parceiro mais importante de Baden. A primeira parceira dos dois foi Lapinha, em 1967, vencedora da primeira Bienal do Samba da TV Record, defendida por Elis Regina acompanhada pelos Originais do Samba. Outros sucessos da dupla foram Cai Dentro, Aviso aos Navegantes, Voltei, Vou Deitar e Rolar e Refém da Solidão.

A partir da década de 90 Baden passou a dedicar seu tempo no trabalho com os filhos Phillipe e Marcel, pianista e violonista, respectivamente. Desde cedo os meninos foram tratados pelo pai como profissionais, e ainda como herdeiros legítimos de seu legado. Excursionaram e gravaram juntos em várias partes do mundo.

Nos últimos anos de vida Baden Powell converteu-se à religião evangélica, mudando de hábitos, jogando fora tudo o que se referia ao candomblé e modificando até mesmo algumas de suas músicas. No Samba da Bênção, por exemplo, em que prestava diversas homenagens a outros músicos com a saudação "saravá", substituiu pela palavra "bênção". Também abandonou as roupas brancas que foram características suas por vários anos.

Em 1999 a escritora francesa Dominique Dreyfus lançou pela Editora 34 a biografia O Violão Vadio de Baden Powell.