AfroReggae: música contra a falta de perspectivas

Grupo de Vigário Geral lança o CD Nova Cara oito anos depois da chacina que estimulou o aparecimento de importantes projetos sociais e culturais na outrora violenta comunidade carente

Silvia D
14/02/2001
A banda AfroReggae, de Vigário Geral (RJ), surgiu em 1995, dois anos depois do massacre de moradores promovido pela polícia, que pôs a comunidade no mapa como um dos lugares mais violentos do país. Apadrinhado por artistas como Caetano Veloso, MV Bill e Regina Casé, o grupo lançou ontem, em festa na sede da gravadora Universal Music, o seu primeiro disco, Nova Cara (leia crítica). A mistura de música, atitude social e política do AfroReggae tem um objetivo claro: oferecer uma opção sólida aos jovens da comunidade que são sistematicamente atraídos para trabalhar no tráfico de drogas - e fatalmente acabam morrendo cedo.

No princípio, a linha musical seguida pela banda era bastante semelhante ao samba-reggae do Olodum. Aos poucos, ela ampliou a gama de influências sonoras, incorporando o funk carioca, o rap paulista e as fusões de música estrangeira e brasileira apresentadas por grupos como O Rappa e Planet Hemp. E também adotou vocalistas, instrumentos elétricos e dançarinos. Entre 1995 e 1998, os membros do AfroReggae elaboraram o espetáculo Nova Cara, que conta com impactantes elementos teatrais e foi aperfeiçoado ao longo de apresentações em países como Inglaterra, Holanda, França, Itália e Canadá.

Logo depois da chacina de 1993, voluntários de outras comunidades se mobilizaram para oferecer alternativas de socialização aos jovens da região. Através de oficinas de cidadania, música, dança, capoeira e teatro, conseguiu-se multiplicar o interesse pela arte na área, embora a banda trabalhasse com tambores emprestados. Hoje em dia, os próprios membros do AfroReggae estão capacitados a oferecer oficinas, até mesmo fora do Brasil. Eles fazem questão de visitar comunidades de baixa renda em países diferentes e ignoram barreiras lingüísticas, contabilizando algumas almas em países do Primeiro Mundo, que resolveram abandonar o crime depois de conhecê-los.

AfroReggae, o projeto, atinge hoje em torno de 400 pessoas, através das bandas AfroReggae, AfroReggae II, AfroLata e AfroSamba. Seus integrantes acreditam que apontar soluções é mais importante do que só apontar problemas e esperam promover algum tipo de integração social através do disco/show Nova Cara. "Queremos unir a favela e o asfalto", afirma o vocalista Anderson, um dos membros mais antigos do grupo.

Cale a boca e consuma!
Anderson conta uma história típica de jovens que moram em favelas. "Eu queria um tênis Nike, queria muito, e minha mãe partiu pro sacrifício para me dar." A diferença da sua trajetória para a de outros rapazes em situação semelhante é que ele percebeu logo o problema: "Começou a faltar comida em casa e eu caí na real." Anderson analisou o inevitável sistema socioeconômico baseado no apelo ao consumo e decidiu procurar José Junior, mentor do projeto AfroReggae.

LG, também vocalista, chegou a desistir do tráfico por causa da banda: "O traficante era o herói do jovem, o senhor da vida e da morte, que tinha roupas, armas, carros e mulheres. Antes de entrar [para o tráfico], eu não sabia que não poderia mais dormir direito, sem medo, e ir até a praça com a minha garota... se não fosse pelo AfroReggae, a essa altura eu já estaria preso, aleijado ou morto. Mas por enquanto, não ganho tanto dinheiro com a banda quanto ganhava no tráfico."

O preço do CD do AfroReggae na loja, aliás, não se enquadra nos padrões de renda da comunidade de onde vem o grupo. Para poder oferecer seu disco aos moradores de Vigário Geral, o AfroReggae entrou em acordo com a gravadora, que destinará à banda uma quantidade de discos que poderá ser vendida a preços simbólicos.

A divindade hindu Shiva, que rege a morte e a transformação, tornou-se um emblema para a mudança profunda que foi implantada em Vigário Geral a partir da chacina e do surgimento do AfroReggae. Depois de merecerem aprovação em um artigo no prestigiado jornal The New York Times, o resultado da mudança pode ser resumido nas palavras de MV Bill: "Essa banda é um exemplo de dignidade e auto-estima para o jovem brasileiro."