Ainda <i>black</i>, ainda <i>beautiful</i>

Precursor do soul Brasil, Gerson King Combo lança Mensageiro da Paz, seu primeiro álbum em 23 anos

Marco Antonio Barbosa
10/07/2001
"Se um dia fui rei, se reinei não sei/ Só sei que é pura verdade/ Quem nasceu pra rei, nunca pra ninguém/ Perde a majestade". Assim Gerson King Combo cantava, profeticamente, em 1978, em seu grande sucesso Funk Brother Soul. Parecem versos que se encaixam à perfeição para a reapresentação do "James Brown brasileiro" ao público, em pleno ano 2001. Vinte e três anos após lançar seu último LP (e após ficar 15 anos sem pisar num estúdio), King Combo está de volta, com o álbum Mensageiro da Paz ouvir 30s (Continental), coroando o gradual retorno da lenda viva do soul brasileiro à cena que ele ajudou a criar. E, para Gerson King Combo, é como se praticamente nada tivesse mudado; o black será eternamente beautiful para o cantor da capa preta.

"Voltei na carona de toda essa gente nova que vive dizendo que gosta de mim. Agora estou tomando o gostinho da coisa de novo, de aparecer na TV, de fazer shows, cantar...", fala Gerson sobre as circunstâncias de seu retorno. O figuraça da black music dos anos 70 não lançava disco algum desde 1986, quando gravou o compacto Mão Branca. Não por acaso, já em 1984 - bastante tempo depois do auge de sua popularidade - o cantor começaria a deixar a música de lado, ao arrumar um emprego na Funlar, projeto de assistência a crianças excepcionais mantido pela Prefeitura do Rio de Janeiro. "Fui me envolvendo, o trabalho com as crianças - ao qual me dedico até hoje - foi preenchendo o meu tempo, e fui me afastando aos poucos. Depois que fiquei viúvo, em 1990, aí então que desanimei de vez da música. Até este retorno definitivo, eu só tinha feito uma ou outra canja em shows de amigos", conta Gerson.

A desistência de King Combo também pode ser creditada ao ostracismo a que foi relegado durante os anos 80, época na qual a mídia só tinha olhos para o pop rock pós-Blitz. Esqueceram-se do sujeito que ajudou a introduzir a música negra de extração americana no Brasil, por volta de 1972. Tarado por James Brown, Gerson traduziu o suíngue funk-soul do Godfather para um sotaque brasileiro - e junto com Tim Maia, Banda Black Rio, Simonal e uns poucos outros, lançou as bases do som black brazuca.

"Hoje em dia todo mundo me tem como ídolo. Eu fico muito envaidecido, maravilhado com toda essa atenção. Do pessoal que já está mais estabelecido - Fat Family, Maurício Manieri, Cidade Negra - até os mais novos, como a Paula Lima, os irmãos Max de Castro e Simoninha, todo o pessoal do hip hop. Mas eu voltei com humildade, sem mania de grandeza. Tenho muito carinho por essa nova geração", reflete Gerson. E ele já vem voltando desde 1996, quando começou a tocar com o grupo Clave de Soul. "Eles me procuraram, falando que me adoravam, que queriam que eu cantasse com eles... daí aos poucos eu fui ressurgindo", lembra o cantor. De lá para cá, esporádicas aparições em TV e jornais antecederam um festival de participações especiais: nos CDs de estréia de Paula Lima (É Isso Aí! ouvir 30s) e do grupo gaúcho Video Hits (Registro Sonoro Oficial ouvir 30s) e em shows da cantora Andréa Dutra e dos grupos Artigo 288 e Funk Como Le Gusta.

"Resolvi voltar mesmo quando me vi na televisão, em um desses programas em que participei. Olhei a mim mesmo dançando, cantando, ainda inteirão e pensei: 'É, até que ainda dou para o gasto...' Na verdade eu nem tinha noção de como eu fazia sobre o palco, só me restaram as lembranças dos anos 70 - porque daquela época eu não tenho nada registrado, nenhum videotape", relata Gerson.

Então, 2001 fica sendo o ano que viu chegar às lojas o primeiro CD de Gerson King Combo - seu primeiro álbum desde Gerson King Combo - Volume II ouvir 30s, de 1978. Nas 14 faixas de Mensageiro da Paz, o que se ouve é o mais puro som black dos anos 70, seja em músicas novas (Brigas, Personal Trainer, Tudo É Possível) ou em regravações do próprio acervo passado do cantor (Funk Brother Soul, Mandamentos Black e Uma Chance). Gerson teoriza sobre a aparente nostalgia: "A filosofia do som ainda é a dos anos 70, mas a linguagem é de 2001. A tecnologia de agora é incrível. Só que também tem a malandragem que eu trouxe daquela época. Também tem o fato de eu trabalhar só com gente mais nova. Acabei remoçando, aceitando idéias novas, pegando os macetes atuais. Acho que o disco ficou um sucesso", diz, sem modéstia.

O discurso black is beautiful, americanizado mas devidamente traduzido para o Brasil setentão recém-"destropicalizado", também permanece. "Eu ainda falo uma linguagem antiga em minhas letras", admite Gerson. "Minha preocupação agora não é com o movimento negro, pelo menos não do jeito que eu o via nos anos 70. Meu interesse agora é dar um toque na rapaziada, acalmar os ânimos. Fico muito preocupado com a violência. Os rappers é que assumiram uma linguagem radical, agressiva, contando da vida na periferia. Eu então não vou botar mais lenha nessa fogueira. Só quero que os jovens vejam que não é assim - matando-se uns aos outros, brigando, quebrando tudo - que a banda toca."

Segundo Gerson, a grande maioria das faixas novas foi composta de novembro do ano passado para cá. "Só teve uma música, Força e Poder, que era mais velha. Eu fiz umas mudanças na letra para encaixá-la em minha nova temática. Fico alerta aos temas atuais, ao que rola na periferia agora - afinal, eu moro em Madureira (subúrbio do Rio de Janeiro) e vejo muita coisa: surfistas de trem, violência nos estádios", conta o cantor.

Vindo da periferia carioca e ligado em som negro, King Combo não pôde escapar da febre conhecida como... funk. Em Personal Trainer, Gerson não resiste ao apelo calipígio das funkeiras e inclui os versos "É bundinha pra lá, é bundinha pra cá /É um show de mexe mexe rebolando sem parar". "Pô, quem é que não gosta de um popozão? É bonito de se ver, a dança é legal", entrega o man in black. "O que fica mal é denegrir as mulheres, fazer baixaria. As brigas nos bailes também não são bonitas. Encaro as letras do funk como se fossem uma piada, sem compromisso social. Não é para levar a sério."

Outro destaque do disco são as três regravações, que entraram sob pedido popular. "Fizemos uma pesquisa entre a galera que curte meu som - DJs, artistas - para saber quais as músicas eles mais queriam ouvir de novo. Uma Chance é meu abre-alas, é uma das músicas que mais me representa. Funk Brother Soul também, é a música que agita o povo ao vivo, com minhas coreografias e tudo. E Mandamentos Black é quase como um hino, é a letra que diz tudo aquilo no que acredito", resume Gerson.

Além do Clave de Soul (que faz as bases e arranjos do disco), Gerson contou com a sister Sandra de Sá (na faixa-título) e os brothers do Cidade Negra (em Força e Poder). O cantor fala sobre as participações: "Os garotos do Cidade Negra são meus fãs desde pequenininhos... com nove, dez anos eles iam para a porta das casas noturnas para me ver passar, pegar na minha capa. Encontrei com eles ano passado na entrega do Prêmio Hutus e falei que ia gravar um disco e queria que eles participassem. Foi complicado combinar os horários, mas no fim deu tudo certo. Já a Sandra é minha amiga de anos, cantamos juntos nos anos 80. Ela fez questão de participar da gravação."