Amélia Rabello dá vida às canções do irmão
As músicas compostas pelo violonista Raphael Rabello são lançadas na voz da cantora, no recém-lançado CD Todas as Canções
Julio Moura
05/03/2002
Os irmãos Raphael e Amélia (clique para ampliar) |
O que poucos sabem - e agora se revela com o lançamento do disco Todas as Canções (Acari) -, é que Raphael compunha canções com data de validade para muito além dos efêmeros 32 anos de vida do compositor, morto em 95, vítima de uma parada cardiorespiratória. As irmãs Amélia e Luciana Rabello resolveram revelar as 18 canções compostas por Raphael, 15 com letra de Paulo César Pinheiro, três com versos de Aldir Blanc. Todas na voz de Amélia Rabello, a intérprete preferida do compositor. Treze delas estão sendo testadas ao vivo por Amélia, em um show que estreou semana passada no Rio de Janeiro. A direção é de Ney Matogrosso, com quem Raphael tocou no épico show/disco Pescador de Pérolas.
Do cassete para o estúdio
"Eu tinha um cassete com gravações ao vivo de nove canções, gravadas em janeiro de 93, no Teatro Clara Nunes. Eu era a única pessoa a ouvir aquelas músicas em primeira mão, assim que Raphael as finalizava, e me sempre me senti responsável por este acervo. O próprio Ney (Matogrosso), que trabalhou durante anos com Raphael, desconhecia as canções. Sabia que não podia continuar guardando este segredo, mas tinha dúvidas em lançar as gravações por causa da qualidade do registro. Minha irmã acabou me convencendo. Hoje fico felicíssima com o resultado", avalia Amélia Rabello.
O disco e o show marcam a volta de Amélia - uma das mais promissoras cantoras de samba reveladas na década de 80 - que, desde a morte de Raphael, manteve-se em silêncio por quase sete anos. Duas das músicas do álbum - Salmo e Camará, ambas com letra de Paulo César - já haviam sido lançadas pela própria Amélia, em seu disco de 1994. "A princípio, a idéia era incluir apenas as músicas que possuíam registros do próprio Raphael, em shows ao vivo ou estúdio. Mas Luciana achou que o disco ficaria pequeno e sugeriu que gravássemos seis músicas inéditas, no estúdio da Acari (gravadora da qual Luciana é sócia)", explica Amélia. Para a empreitada, foram convidados os músicos Cristiano Alves (clarineta), Hugo Pilger (cello), Afonso Machado (bandolim), Luiz Moura (violão) e Celso Silva (pandeiro), além de Sivuca e da própria Luciana. "Foi a parte mais difícil. Não conseguia imaginar aquelas músicas sem a presença do Raphael. Hoje adoro as gravações", conta Amélia.
A cantora revela que Serenata da Saudade e Todas as Canções foram finalizadas por Paulo César Pinheiro depois da morte do violonista. "São músicas que o Raphael há tempos havia deixado com o Paulinho. A música que dá nome ao disco teve letra composta no ano passado, quando já estávamos com o projeto do disco em andamento".
Paulo César e Aldir
Raphael teve apenas dois parceiros na poesia: Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc foram os únicos a sobrepor versos em suas melodias. Segundo o depoimento do próprio Raphael, foi a partir da letra de Sete Cordas, tema originalmente composto para o álbum Raphael Sete Cordas, seu primeiro disco solo, que o instrumentista começou a compor melodias para serem letradas. "Paulo César Pinheiro foi quem me levou para esse caminho de fazer composições para o canto. A partir do poema Sete Cordas, que ele escreveu para uma valsa minha, fiquei estarrecido. Tomei gosto e vi, nessa poesia, a história da minha vida", atribuía Raphael.
Das três letras escritas por Aldir Blanc, Anel de Ouro (dos versos de inspiração noelina: "dessa paixão só resgatei no prego o anel de ouro que te dei") fora gravada no disco comemorativo dos 50 anos do poeta, em 97. Ouro e Fogo revela um sentimento de amor e ódio pela pós-modernidade baiana ("Morena Bahia, tem dias que odeio você / são espinhos na rosa do bem te querer"), com direito à citação de Na Baixa do Sapateiro, de Ary Barroso. Já Galho de Goiabeira ("Você fingiu não notar / quando fiquei sem freio e a cruel bicicleta / pegou uma reta e me atirou do quebra-mar"), traduz um Aldir autobiográfico, na confissão do próprio: "o magrelo insignificante sou eu, porra, com 15 anos, caindo da bicicleta, em Paquetá", sussurra Aldir, no encarte do disco.
Violão até o fim
Amélia diz ainda não ter superado o trauma da morte prematura do irmão - "pegou a todos de surpresa" - numa clínica de desintoxicação na Barra da Tijuca, a NIP (Núcleo Integrado de Psiquiatria). O músico lutava para libertar-se da dependência do álcool e das drogas, lícitas ou ilícitas. Amélia desmente a versão corrente de que Raphael teria contraído Aids e morrera em conseqüência da doença. "Desde criança, ele tinha um problema chamado apnéia do sono, em que a pessoa pára de respirar enquanto está dormindo. O laudo da morte confirma que ele teve uma parada cardíaca. Nunca soube que ele tivesse Aids, bastava olhar para seu aspecto saudável, até pouco antes de morrer", afirma.
"O problema é que, em função da apnéia ele deveria ter uma vida regrada, o que não condizia com seu temperamento, sua ansiedade em viver cada minuto. O problema de Raphael com as drogas era muito sério, sobretudo com as lícitas, vendidas em farmácia. Essas são as piores", resigna-se.
Assim como tantas passagens meteóricas acabam marcando gerações, a música de Raphael ganha um songbook à altura do instrumentista virtuoso, capaz de incluí-lo entre os grandes do cancioneiro brasileiro. "É possível que ele tivesse amadurecido seu lado de compositor, havia muitas canções por serem feitas. Mas sua grande paixão era o violão. Foi o violão quem o acompanhou até o fim", reconhece, reafirmando o testamento de Sete Cordas: "Amigo violão / que comigo estará / até eu morrer".