As baquetas explosivas da bossa

Há exatos dez anos, a música brasileira perdia Edison Machado, o revolucionário baterista que mudou a maneira de se tocar samba

Tárik de Souza e Nana Vaz de Castro
15/09/2000
Gênero que valorizou como poucos o setor instrumental, a bossa nova gerou expoentes em quase todos os instrumentos. O carioca do Engenho Novo Edison Machado (1934-1990), egresso da escola das gafieiras, foi um de seus principais heróis da bateria. A ele atribui-se a criação do chamado samba no prato por conta de uma caixa que furou num certo baile em seu bairro em 1949, e ele continuou tocando só no prato e tambores. O macete agradou e Edison incorporou a extensão do chiado ao acento tônico da percussão, como Jimi Hendrix fez com a microfonia adicionada aos acordes da guitarra. Junto com o ruído ("minha bateria diz o que vejo e vivo, então sou barulhento", definiu) sua performance sempre marcante era pontuada pelas caras e bocas que fazia na empolgação dos solos.

Isso ajudou a perpetuar o mito do Edison "Maluco" que o acompanhou durante a carreira iniciada nos bailes dos subúrbios cariocas seguida por uma travessia do túnel para o Beco das Garrafas da bossa nova em Copacabana. Brilhou na área, integrando um dos melhores trios formados na época, o Bossa Três, ao lado de Luís Carlos Vinhas (piano) e Tião Netto (baixo), além do Sexteto Bossa Rio, liderado por Sérgio Mendes. Nos Estados Unidos, apresentou-se no Ed Sullivan Show, gravou inicialmente com Tom Jobim, com o Bossa Três e o acordeonista Jo Basile.

Durante a fase áurea da bossa nova Edison também formou o Rio 65 Trio, ao lado de Dom Salvador (piano, que também imigraria para os EUA) e Sérgio Barroso (baixo). O disco gravado pelo grupo em 1965 mereceu cinco estrelas do rigoroso crítico Sylvio Tulio Cardoso, o mais importante da época. No ano seguinte, o mesmo trio gravaria o otimista A hora e a vez da MPM (ambos editados pela então Philips, atual Universal, que nunca os relançou), profetizando uma longa vida para a chamada "música popular moderna", rótulo surgido no estuário de estilos do fim da bossa nova.

O baterista ainda liderou uma poderosa big band no LP Edison Machado É Samba Novo (CBS) relançado em CD pela Sony sem as informações da contracapa e com uma mixagem ruim. O discaço elencava nos sopros nada menos que Moacir Santos, Paulo Moura, J.T. Meirelles, Pedro Paulo, Maciel e Raulzinho, o pianista Tenório Junior ("desaparecido" durante a ditadura numa excursão à Argentina) e o baixista Tião Netto. Edison, que participou da trilha sonora do filme Terra em Transe de Glauber Rocha com seu grupo, registraria ainda, em 1970, pelo pequeno selo Stylo, o disco Obras, liderando um quarteto ao lado de Ion Muniz (sax tenor e flauta), Alfredo Cardim (piano) e Ricardo dos Santos (baixo).

Carreira americana
Com o recrudescimento da ditadura local e a revoada de músicos para o exílio desfez-se o que restava da bossa nova e a vida para músicos como Edison ficou mais difícil. Ele ainda trabalhou com o cantor Agostinho dos Santos num disco e numa viagem até Caracas, Venezuela, mas em pouco tempo estava sem emprego. Uma entrevista em março de 1972 ao jornal O Globo era aberta por uma espécie de anúncio classificado: "O melhor baterista do Brasil aceita emprego em espetáculo de qualquer natureza. Ligar para 224-1151 ou procurar Edison Machado na Rua Benjamim Constant 10, quarto 107". Ao jornalista Luis Carlos Maciel na Revista Rock (a história e a Glória), ele confessaria quatro anos depois ter vendido a bateria para viajar para os Estados Unidos, onde o ambiente era mais favorável aos músicos.

Não por acaso, ele ficou 14 anos por lá. Gravou com Chet Baker e Ron Carter e seu grupo Lua Nova apresentou-se em vários festivais de jazz. Só retornaria ao Brasil em 1990. Arrebanhou um sexteto para curta temporada na boate carioca People, no Leblon integrado pelos experientes Edson Maciel (trombone), Macaé (sax tenor) e mais Paulo Roberto Oliveira (flugelhorn e cornet), Luís Alves (baixo) e Luís Paiva (piano). Edison já não utilizava mais os pedais da bateria, mas os shows foram a apoteose final de uma trajetória cintilante ceifada pela estreiteza do mercado. Ele morreria em Niterói de um enfarte fulminante, três meses depois, no dia 15 de setembro. Estrela de um instrumento geralmente reservado à cozinha ou ao segundo plano no palco, ele tinha o carisma dos ídolos. Até Jorge Ben (ainda sem o Jor), na histórica apresentação de sua Chove Chuva no show O Fino da Bossa, em 1965 (gravada em disco), não resistiu à locomotiva rítmica que o acompanhava no trio ao fundo e convocou: "Toca, Edison!"

Depoimentos

Robertinho Silva
, baterista
"Edison Machado foi uma grande influência para mim no começo da minha carreira. Cheguei a pular o muro de um clube em Bangu para poder vê-lo tocando, já que eu não era sócio. Era um show com o cantor Miltinho, que na época fazia muito sucesso com Mulher de Trinta, mas na verdade quem roubava a cena era o Edison. Ele era um inovador. Já em 1954 fez uma gravação com a Turma da Gafieira que é antológica, ao lado de Sivuca, Raul de Barros, Baden Powell. Na época da bossa nova, então, ele foi um sucesso. Musicalmente, ele era muito explosivo. O disco Edison Machado É Samba Novo é uma verdadeira aula de bateria, foi com ele que aprendi a usar os pratos. Edison prezava muito a música brasileira, dizia que só tocava em dois por quatro. Quando eu comecei a ficar mais conhecido, tocando na Orquestra Quincas e os Copacabanas no Dancing Avenida, um dia ele apareceu e foi falar comigo. Disse: ‘Meu nome é Edison Machado e eu inventei o samba no prato’. Para mim foi um honra, e ele mesmo tinha bastante orgulho do seu trabalho. Pena que ele tenha passado por tanta dificuldade ao longo da vida, principalmente quando voltou a Brasil. Mas ele viajava, dizia que os Beatles tinham ficado milionários à custa dele, porque o Ringo Starr o havia copiado. Ele era uma pessoa conservadora, mas a música dele não era."

Pascoal Meirelles, baterista
"Fui muito influenciado pelo Edison no começo da minha carreira, ele era um dos bateristas que eu mais ouvia. Basicamente, ele mudou a forma de se tocar a música brasileira na bateria. O samba no prato foi só uma das coisas em que ele inovou, mas nem acho que tenha sido a mais importante. Acho até um pouco redutor que as pessoas se lembrem dele só por causa disso. A meu ver, a importância dele é maior, é a concepção moderna que ele deu para a bateria."

Wilson das Neves, baterista
"Trabalhei com o Edison em 1959 na boate Drink. Nós éramos os dois bateristas da casa e nos revezávamos. Quando cheguei, ele já era profissional, já tinha um nome. Na época ele despontou porque tocava de uma maneira diferente. Edison era muito explosivo, gostava de impor a sua maneira de tocar, tocava pra ele mesmo, e não para os outros. Edison era bastante ousado. Talvez ele tenha ido para os Estados Unidos porque não se adaptou à maneira de tocar para os artistas daqui, acompanhando cantores. Assim como ele, outros bateristas como Jadir de Castro e Paulinho Magalhães também trouxeram um estilo inovador. Mas o Edison era muito engraçado, ele adorava imitar o Jerry Lewis, e era igualzinho."

Tião Netto, baixista, integrante do Bossa Três
"Edison foi o maior baterista de samba de todos os tempos. O tempo dele no samba no prato e no pé direito é irreprodutível. Ele tinha um suíngue fantástico, e quem quisesse que fosse atrás. Foi, sem dúvida, uma figura de proa na MPB. A música brasileira atual, principalmente o samba, deve muito a Edison. Fui com ele para os Estados Unidos, na década de 60, com o Bossa Três. Foi uma grande aventura."

Luís Carlos Vinhas, pianista, integrante do Bossa Três
"Edison era um músico maravilhoso, de caráter firme. Era muito falador, crítico e exigente. Quando nós (Bossa Três) fomos para os Estados Unidos e ele viu os músicos maravilhosos que havia por lá, foi um choque para ele. O pessoal lá estudava dez, doze horas por dia, ele ficou transtornado, porque não tinha muita estrutura. Edison era muito inteligente, mas tinha uma cultura muito rala. Cismou de ficar nos Estados Unidos, e até passou por alguns apertos por lá."

Luís Alves, baixista
"Toquei com o Edison no último show que ele fez, no People (RJ). Ele foi o papa da bateria moderna no Brasil, da bateria de samba. Era um gênio mesmo. Para mim a bateria brasileira pode ser classificada antes de Edison Machado e depois de Edison Machado. Pessoalmente ele era muito agitado. Antes dele, praticamente não se usava prato para tocar samba, era só tambor e bumbo, ele foi mesmo um precursor da bateria moderna."