As músicas da vida de Nelson Motta
Sucesso com o livro de memórias Noites Tropicais, o escritor-jornalista-produtor-apresentador fala a CliqueMusic sobre sua atividade de letrista, na qual foi da bossa ao rock, passando pela discoteque
Silvio Essinger
02/06/2000
Nelson Motta não se ilude: "Letrista é a terceira opção da memória." Ou seja, só depois do cantor e do melodista é que alguém vai lembrar que ele também está lá nos créditos da música – e não são poucas as músicas com a sua assinatura, em mais de 35 anos de atividade: O Cantador, Saveiros, Dancin’ Days, Perigosa, Como Uma Onda, Coisas do Brasil, Bem Que Se Quis... "Mas não esquento muito. A multiplicidade de atividades compensa", diz este produtor de discos, shows e programas de TV, criador de casas badaladas, colunista de jornal, apresentador de TV e escritor – sucesso, aliás, com o seu mais novo livro, a autobiografia Noites Tropicais (Objetiva). Visão de quem acompanhou (e participou de) alguns dos momentos mais importantes da história da MPB, o volume deu até origem a um disco duplo, que sai em breve pela Universal Music, reunindo as principais músicas que fazem parte da narrativa, como Sá Marina (na versão de Wilson Simonal), Preta Pretinha (Novos Baianos) e Comida (com Marisa Monte).
De passagem pelo Brasil (há oito anos ele mora em Nova Iorque) para divulgar o livro, Nelson aproveita para avisar que está retomando com todo o gás a atividade de letrista – no período americano, havia feito apenas algumas versões, sem maiores pretensões. Ele responde, por exemplo, por duas músicas no próximo e aguardado disco de Ed Motta, Manual Prático para Festas, Bailes e Afins Volume 2: o fox Tardes de Verão e o soul ("bem Marvin Gaye anos 70") Ele Disse Sim. Recentemente, começou também a letrar uma bossa nova de Dé, ex-baixista do Barão Vermelho, que espera entregar logo. Os dois músicos entram assim para o clube dos parceiros de Nelson Motta – agremiação que prima pela variedade, já que inclui de Dori Caymmi e Djavan a Rita Lee e Lulu Santos. "Acho que o ecletismo tem a ver com meu temperamento. Entedio-me rapidamente", diz Nelson.
Ainda garoto (e ainda assinando como Nelsinho Motta), ele fez sua primeira letra, Encontro, para música de Wanda Sá, que foi gravada pela cantora em seu primeiro disco, Wanda Vagamente (de 1964). "Foi uma bobagenzinha dos dois, nem conto ela", desfaz-se. Para Nelson, a sua história na MPB começa com as músicas em parceria com Dori: Saveiros (que ganhou um festival na voz de Nana Caymmi e hoje ele considera apenas "correta"), O Cantador ("a primeira boa de verdade"), O Mar É Meu Chão e Festa. "Mas dessas hoje eu só gosto mesmo de De Onde Vens (gravada por Elis Regina), um clássico brega", diz. Os caminhos acabaram separando em 1968 o bossanovista Dori do cada vez mais tropicalista Nelson – e ele parou de escrever letras. "Queria fazer coisas mais modernas mas não tinha parceiros."
Um jingle inesquecível
No trabalho com publicidade, um escorregão: Um Novo Tempo, música de Marcos Valle letrada por Nelson e Paulo Sérgio Valle. Cantada por um coro dos atores da Rede Globo para um especial de fim de ano, a música foi vista por alguns como sendo estranhamente otimista numa época em que a ditadura militar torturava e matava – de qualquer forma, consagrou-se é até hoje lembrada. "A única coisa que presta é o ‘Hoje a festa é sua/ Hoje a festa é nossa/ É de quem quiser/ Quem vier’. O resto é horrível", autocritica-se Nelson. A volta como letrista de fato se deu com Perigosa, de Rita Lee e Roberto de Carvalho, feita para as Frenéticas, grupo das garçonetes da Dancin’ Days, a discoteca que ele havia aberto no Rio. Para passar a música pela censura, o letrista usou um sensacional estratagema. Ao invés de mandar a letra com o refrão "Eu vou fazer você ficar louco/ Dentro de mim", passou o último verso para a estrofe seguinte. Ficou "Dentro de mim/ Eu sei que eu sou/ Bonita e gostosa...". Junto com Dancin’ Days, parceria de Nelson com o tecladista Ruban, Perigosa fez das Frenéticas um sucesso nacional.
Na virada para os anos 80, Nelson Motta iniciou sua mais fértil e bem-sucedida parceria: com o cantor e guitarrista Lulu Santos. "Foi a fase em que eu mais fiz música, em que eu estava mais estimulado", conta. Dela, veio o maior sucesso do letrista: Como Uma Onda, que veio acompanhado do curioso subtítulo Zen Surfismo – ela tinha sido composta para o filme Garota Dourada, de Antônio Calmon. "O filme foi um fracasso retumbante", lembra. "Por sorte, ele demorou tanto a ser lançado que, quando saiu, a música já era big hit". A letra desse bolero moderno, conta ele, teve inspiração em Jorge Luis Borges e no livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, de Eugene Herringel, e refletiu a sua contradição pessoal: entre a filosofia zen e os excessos de maconha, cocaína e Noites Cariocas (a casa noturna que montou no Pão de Açúcar). "Foi uma fase de muitas loucuras, full gas", define.
Das músicas que fez com Lulu, a que Nelson mais aprecia hoje é Tudo Azul. Numa passagem do instrumental, que tinha modulações nordestinas, ele foi lá e tascou os famosos versos: "Eu nunca fui o Rei do Baião/ Nem sei fazer chover no sertão". "Foi a melodia que puxou. Parece que a letra estava lá", conta. Na maioria das vezes em que compõe, Nelson se sente como se estivesse raspando as melodias para revelar os versos que estavam o tempo todo lá, apenas encobertos. "Vou muito pelo som. A letra tem que ser mais sonora que verbal. Antes de ser letra, ela tem que ser música. As rimas internas têm uma importância fundamental." Não é à toa que, entre os letristas que ele mais admira estão Djavan e Jorge Ben Jor ("que são totalmente sonoros"). Assim, foi com muita honra que Nelson fez para Djavan a letra do choro Você Bem Sabe. "Logo para ele, que não precisa de ninguém...", diz, modesto.
Parceria com Erik Satie
Entre as versões que escreveu, o letrista destaca uma de suas menos conhecidas: a de Anema e Core, canção de D’Exposito e Tito Manlio, que Zizi Possi gravou como A Vida Corre no disco Estrebucha Baby (de 1989, ou seja, bem antes da fase italiana da cantora). Nelson gosta também da Vida Real, versão do bolero Dejame Ir (de Chico Novarro e Michael Ribas), gravada por Djavan. Outra letra que muitos não devem conhecer e delicia o autor é Cenas de um Amor, feita para Tendrement, música do compositor erudito impressionista francês Erik Satie. "Talvez seja a melhor letra que eu fiz", confessa Nelson.
Num ranking de letristas, Nelson Motta põe-se num segundo time. No primeiríssimo, "o Olimpo", estariam Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee e "letristas full time" como Aldir Blanc, Abel Silva, Ronaldo Bastos, Vítor Martins, José Carlos Capinam e Antônio Cícero. Músicas que ele gostaria de ter feito, há várias. Só para ficarmos com as mais recentes, ele cita as imbatíveis Desde Que o Samba É Samba (Caetano) e Futuros Amantes (Chico). "E depois ainda há quem diga que a década de 90 foi perdida!"
De passagem pelo Brasil (há oito anos ele mora em Nova Iorque) para divulgar o livro, Nelson aproveita para avisar que está retomando com todo o gás a atividade de letrista – no período americano, havia feito apenas algumas versões, sem maiores pretensões. Ele responde, por exemplo, por duas músicas no próximo e aguardado disco de Ed Motta, Manual Prático para Festas, Bailes e Afins Volume 2: o fox Tardes de Verão e o soul ("bem Marvin Gaye anos 70") Ele Disse Sim. Recentemente, começou também a letrar uma bossa nova de Dé, ex-baixista do Barão Vermelho, que espera entregar logo. Os dois músicos entram assim para o clube dos parceiros de Nelson Motta – agremiação que prima pela variedade, já que inclui de Dori Caymmi e Djavan a Rita Lee e Lulu Santos. "Acho que o ecletismo tem a ver com meu temperamento. Entedio-me rapidamente", diz Nelson.
Ainda garoto (e ainda assinando como Nelsinho Motta), ele fez sua primeira letra, Encontro, para música de Wanda Sá, que foi gravada pela cantora em seu primeiro disco, Wanda Vagamente (de 1964). "Foi uma bobagenzinha dos dois, nem conto ela", desfaz-se. Para Nelson, a sua história na MPB começa com as músicas em parceria com Dori: Saveiros (que ganhou um festival na voz de Nana Caymmi e hoje ele considera apenas "correta"), O Cantador ("a primeira boa de verdade"), O Mar É Meu Chão e Festa. "Mas dessas hoje eu só gosto mesmo de De Onde Vens (gravada por Elis Regina), um clássico brega", diz. Os caminhos acabaram separando em 1968 o bossanovista Dori do cada vez mais tropicalista Nelson – e ele parou de escrever letras. "Queria fazer coisas mais modernas mas não tinha parceiros."
Um jingle inesquecível
No trabalho com publicidade, um escorregão: Um Novo Tempo, música de Marcos Valle letrada por Nelson e Paulo Sérgio Valle. Cantada por um coro dos atores da Rede Globo para um especial de fim de ano, a música foi vista por alguns como sendo estranhamente otimista numa época em que a ditadura militar torturava e matava – de qualquer forma, consagrou-se é até hoje lembrada. "A única coisa que presta é o ‘Hoje a festa é sua/ Hoje a festa é nossa/ É de quem quiser/ Quem vier’. O resto é horrível", autocritica-se Nelson. A volta como letrista de fato se deu com Perigosa, de Rita Lee e Roberto de Carvalho, feita para as Frenéticas, grupo das garçonetes da Dancin’ Days, a discoteca que ele havia aberto no Rio. Para passar a música pela censura, o letrista usou um sensacional estratagema. Ao invés de mandar a letra com o refrão "Eu vou fazer você ficar louco/ Dentro de mim", passou o último verso para a estrofe seguinte. Ficou "Dentro de mim/ Eu sei que eu sou/ Bonita e gostosa...". Junto com Dancin’ Days, parceria de Nelson com o tecladista Ruban, Perigosa fez das Frenéticas um sucesso nacional.
Na virada para os anos 80, Nelson Motta iniciou sua mais fértil e bem-sucedida parceria: com o cantor e guitarrista Lulu Santos. "Foi a fase em que eu mais fiz música, em que eu estava mais estimulado", conta. Dela, veio o maior sucesso do letrista: Como Uma Onda, que veio acompanhado do curioso subtítulo Zen Surfismo – ela tinha sido composta para o filme Garota Dourada, de Antônio Calmon. "O filme foi um fracasso retumbante", lembra. "Por sorte, ele demorou tanto a ser lançado que, quando saiu, a música já era big hit". A letra desse bolero moderno, conta ele, teve inspiração em Jorge Luis Borges e no livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, de Eugene Herringel, e refletiu a sua contradição pessoal: entre a filosofia zen e os excessos de maconha, cocaína e Noites Cariocas (a casa noturna que montou no Pão de Açúcar). "Foi uma fase de muitas loucuras, full gas", define.
Das músicas que fez com Lulu, a que Nelson mais aprecia hoje é Tudo Azul. Numa passagem do instrumental, que tinha modulações nordestinas, ele foi lá e tascou os famosos versos: "Eu nunca fui o Rei do Baião/ Nem sei fazer chover no sertão". "Foi a melodia que puxou. Parece que a letra estava lá", conta. Na maioria das vezes em que compõe, Nelson se sente como se estivesse raspando as melodias para revelar os versos que estavam o tempo todo lá, apenas encobertos. "Vou muito pelo som. A letra tem que ser mais sonora que verbal. Antes de ser letra, ela tem que ser música. As rimas internas têm uma importância fundamental." Não é à toa que, entre os letristas que ele mais admira estão Djavan e Jorge Ben Jor ("que são totalmente sonoros"). Assim, foi com muita honra que Nelson fez para Djavan a letra do choro Você Bem Sabe. "Logo para ele, que não precisa de ninguém...", diz, modesto.
Parceria com Erik Satie
Entre as versões que escreveu, o letrista destaca uma de suas menos conhecidas: a de Anema e Core, canção de D’Exposito e Tito Manlio, que Zizi Possi gravou como A Vida Corre no disco Estrebucha Baby (de 1989, ou seja, bem antes da fase italiana da cantora). Nelson gosta também da Vida Real, versão do bolero Dejame Ir (de Chico Novarro e Michael Ribas), gravada por Djavan. Outra letra que muitos não devem conhecer e delicia o autor é Cenas de um Amor, feita para Tendrement, música do compositor erudito impressionista francês Erik Satie. "Talvez seja a melhor letra que eu fiz", confessa Nelson.
Num ranking de letristas, Nelson Motta põe-se num segundo time. No primeiríssimo, "o Olimpo", estariam Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee e "letristas full time" como Aldir Blanc, Abel Silva, Ronaldo Bastos, Vítor Martins, José Carlos Capinam e Antônio Cícero. Músicas que ele gostaria de ter feito, há várias. Só para ficarmos com as mais recentes, ele cita as imbatíveis Desde Que o Samba É Samba (Caetano) e Futuros Amantes (Chico). "E depois ainda há quem diga que a década de 90 foi perdida!"