Assis Valente, o sambista trágico

Há 90 anos nascia o compositor amargurado que fez alegres sambas como ...E o Mundo Não se Acabou, e clássicos da MPB, como Brasil Pandeiro, Boas Festas e Cai, Cai, Balão

Nana Vaz de Castro
16/03/2001
Assis Valente teve uma vida atormentada. Os muitos sucessos de sua autoria não foram suficientes para impedir que ele tentasse tirar a própria vida três vezes antes de finalmente conseguir, em 10 de março de 1958, ingerindo guaraná com formicida numa praia carioca. Assis, que completaria 90 anos na próxima segunda-feira, 19 de março, tentou afogar-se na praia do Leme, jogar-se de uma janela, e, a mais notória de suas tentativas de suicídio, atirou-se do Corcovado em 1941 — e não morreu.

Mesmo com tão trágico histórico, não se pode dizer que sua vida tenha sido uma sucessão de fracassos. Pelo menos não do ponto de vista profissional. Nascido em Santo Amaro, no interior da Bahia, ele revelou desde cedo pendor para a vida artística e notável inteligência. Há até mesmo uma estranha história segundo a qual teria sido raptado aos seis anos de idade por um homem que não se conformava em ver criança tão brilhante em um local tão pobre.

Lendas à parte, o fato é que aos nove anos José de Assis Valente já vivia em Salvador, longe dos pais e dos irmãos. Era farmacêutico e estudava desenho e escultura no Liceu de Artes e Ofícios. Algumas vezes, entretanto, deixou a cidade para acompanhar um circo pelo interior baiano, onde atuava como artista e comediante. Mais tarde fez o curso de prótese dentária. Ou seja, um homem de múltiplos interesses e talentos, que nunca conseguiu se decidir definitivamente por uma ocupação.

Sucesso profissional em várias frentes
Depois que foi para o Rio de Janeiro, em 1927, trabalhou como ilustrador e como protético antes de começar a fazer sambas, por influência de Heitor dos Prazeres, o bamba da Praça Onze com quem fez amizade no início da década de 30. Suas ilustrações eram boas a ponto de serem publicadas em revistas de prestígio, como a carioca Fon Fon. Do seu ofício de protético, dizem que era o melhor de sua época, e manteve a profissão por toda a vida. Seus sambas foram gravados pelos maiores intérpretes de então: Francisco Alves, Carlos Galhardo, Orlando Silva, Aracy de Almeida, as irmãs Aurora e Carmen Miranda, entre muitos outros.

Na vida pessoal, no entanto, a situação era outra. A própria incapacidade de se decidir pela vida de sambista serve como indício de sua indefinição íntima. Segundo seus biógrafos (Francisco Duarte Silva e Dulcinéa Nunes Gomes, autores de A Jovialidade Trágica de José Assis Valente — Ed. Martins Fontes, 1989) e as pessoas que conviveram com ele, Assis era um homossexual reprimido pela ambiente machista e moralista em que transitava, o mundo boêmio carioca dos anos 30, 40 e 50. Casado e pai de uma filha, esbanjava dinheiro com seus amantes, e por isso contraiu sérias dívidas, apontadas como um dos motivos de seu suicídio na carta que deixou. Além disso, andava "muito cansado das injustiças e muito enojado de tudo", conforme escreveu.

Carmen Miranda: amor e mágoa
Sua carreira musical, no entanto, foi marcada pelo sucesso de músicas espantosamente alegres, dada sua personalidade "triste e amargurada", para usar as expressões que utilizou em Alegria. Neste samba diz "Minha gente era triste e amargurada/ inventou a batucada/ pra deixar de padecer/ salve o prazer /salve o prazer". Assis Valente inventou sua própria batucada, brejeira e satírica, capaz de conquistar a exigente Carmen Miranda, mas nem assim deixou de padecer completamente. Carmen foi sua principal e mais querida intérprete, por quem tinha verdadeira fixação. Depois de ter gravado em 1933 Good Bye Boy e Etc., a Pequena Notável se encantou com o compositor baiano, e eternizou pérolas como Recenseamento, ...E o Mundo Não se Acabou (que, recentemente, ganhou versões de Paula Toller, Adriana Calcanhotto ouvir 30s e Ney Matogrosso ouvir 30s), Uva de Caminhão e Camisa Listrada.

Carmen foi também um dos maiores motivos de desgosto para Assis. Em 1940, quando voltou de uma temporada nos Estados Unidos, ela pediu músicas para gravar. O sambista lhe ofereceu Recenseamento e Brasil Pandeiro. Carmen gostou da primeira, mas desprezou a segunda, dizendo que era muito "borocoxô", que não prestava. O samba que começa dizendo "chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor" provou-se um sucesso atemporal, tendo estourado três vezes até hoje. Primeiro, no mesmo ano de 40 pelas vozes dos Anjos do Inferno. Em 1972 novamente com os Novos Baianos, e em 94 mais uma vez, a reboque de uma milionária campanha publicitária de chinelos patrocinadores da Seleção Brasileira na Copa do Mundo dos EUA, em que o Brasil sagrou-se campeão.

"A recusa da Carmen doeu muito nele, ele nunca mais esqueceu", diz a cantora Marlene, que gravou em 1956 seu primeiro LP, inteiramente dedicado ao repertório de Assis (Marlene Apresenta Sucessos de Assis Valente). "Foi o violonista Luiz Bittencourt quem sugeriu que eu gravasse Assis, e eu até hoje acho que fiz muito bem em aceitar a sugestão. Era uma época em que ele passava por muita dificuldade financeira, ninguém mais o gravava. O meu disco foi uma grande alegria para ele", lembra Marlene. A cantora se recorda ainda da personalidade do compositor: "Ele era muito tímido, muito fechado, acho que tinha vergonha que alguém descobrisse que era homossexual. Imagina, naquela época! Nunca o vi com um amigo, ele devia ser muito sozinho. Mas era uma pessoa muito delicada, interessante, inteligente e educadíssima."

O primeiro sucesso de Assis foi em 1932, quando Araci Côrtes gravou o impagável Tem Francesa no Morro, que satiriza a moda francófona da época por meio de versos como "Si vous frequente macumbe entrer na virada e fini pour sambar/ dance ioiô, dance iaiá". No ano seguinte seria a vez de Carlos Galhardo ter enorme êxito com a marcha natalina Boas Festas, um clássico regravado muitas vezes — Caetano Veloso a cantou, em 68, na TV, à moda tropicalista, com uma arma apontada para a cabeça. Também em 33, Aurora Miranda e Francisco Alves gravaram Cai, Cai, Balão, música inspirada nas festas juninas e que se tornou parte do patrimônio musical infantil brasileiro.

Ponto de vista feminino
A década de 30 foi o auge da carreira de Assis Valente, lançando suas músicas de maior sucesso pelas vozes privilegiadas dos grandes nomes do rádio. Transitava com facilidade pelo meio, tendo sido inclusive o introdutor do conterrâneo Dorival Caymmi no ambiente artístico. Depois do rompimento com Carmen e do êxito de Brasil Pandeiro na gravação dos Anjos do Inferno, a vida de Assis foi lentamente entrando em um período de declínio. O ano de 1941 foi o do seu casamento e da tentativa de suicídio atirando-se do Corcovado. Alguns sucessos esparsos permearam aquela década, como o pungente Fez Bobagem, gravado por Aracy de Almeida. É possível que este samba, falando do ponto de vista feminino ("Meu moreno fez bobagem/ maltratou meu pobre coração"), tenha sido feito para um de seus amantes, assim como Camisa Listrada ("Não quero e não consinto o meu querido debochar de mim").

Depois de sua morte, Assis teve esparsas homenagens. Foi muito gravado por cantoras. Aracy de Almeida, Elza Soares, Isaura Garcia, Márcia, Maria Alcina, Simone, Olívia Byington, Wanderléa, Nara Leão, Maria Bethânia, Zezé Motta, Clara Nunes, Vanusa, Eliete Negreiros e Ademilde Fonseca já se arriscaram no repertório valentiano ao longo dos anos. Ultimamente, ganhou interpretações de Eduardo Dussek (ex-Dusek), que recriou o repertório de Carmen, e acaba de ser gravado por Ney Matogrosso em seu recém-lançado Batuque. Disco só com músicas suas é possível achar um, gravado em 86 e relançado em CD pela coleção Acervo Funarte ouvir 30s. Em 95 ficou em cartaz no Rio de Janeiro o musical O Samba Valente de Assis, um panorama sobre a vida do sambista.