Beijo roubado a Paris

João Gilberto emociona franceses ao homenagear a cidade com canção de Charles Trenet

Hugo Sukman
10/07/2001
Da última vez que João Gilberto se apresentou em Paris, em 1989, ao ar livre no Jardin des Tuilleries, ele ainda não tinha como afagar a cidade como o fez neste domingo. Depois de Da Cor do Pecado, parece ter se tocado e falou, em francês, maintenant (agora)...", e cantou Que Reste-t-il de nos Amours. Uma baita homenagem à cidade que o acolhia num Olympia lotado, no primeiro dos dois shows que fez em Paris, depois de vir do Festival de Montreal, rumo ao Festival de Montreux. A célebre canção de Charles Trenet entrou para o seu repertório apenas em 1991, no disco João, mas fez todo o sentido agora: uma homenagem a Trenet, morto no final do ano passado, uma homenagem a Paris, numa das músicas mais identificadas com a cidade desde que foi usada por François Truffaut como canção-tema do mais parisiense de seus filmes, Beijos Roubados (título, aliás, retirado do verso "Baisers volés, rêves mouvants", "beijos roubados, sonhos inconstantes", da canção).

João a cantou duas vezes. Depois da primeira, a ovação: "Merci, merci, merci. Pardon, pardon, pardon" agradeceu e desculpou-se pelo sotaque, depois retomando a canção, saboreando cada frase musical e verso. Mais do que homenagear a cidade em que está cantando, é hábito de João Gilberto incorporá-la de alguma forma à sua música. Foi assim no ano passado, em temporada no Tom Brasil de São Paulo, em que cantou diversas vezes, comentando até mesmo a letra, o Saudosa Maloca, e Dobrado de Amor a São Paulo, rara parceria de Vinicius de Moraes e Antonio Maria.

"Já o vi fazer isso em Portugal, para delírio da platéia, em Casa Portuguesa. É um charme do João", dizia o jornalista e letrista Nelson Motta que, também a caminho de Montreux, soube do show em Paris e, bom joaogilbertiano que é, foi ao Olympia. O público era predominantemente jovem, atraído pela (mais uma) explosão da bossa nova na Europa, desta vez pelas mãos da eletrônica. É a primeira seqüência de shows que o cantor faz desde que completou 70 anos e a (nada aparente) idade não afetou seu desempenho - a precisão entre voz e violão permanece estranhamente metronômica, o repertório de invenções musicais continua aparentemente infinito.

Os 70 anos podem ser sentidos, isto sim, no aperfeiçoamento do rigor. Ele não acrescentou novidade ao repertório, da primeira (Samba de Uma Nota Só) à 22º canção (Chega de Saudade). Em 1h45m de show repassou aquele universo musical tão rigorosamente envelopado durante a sua carreira, num conjunto que vai dos anos 30 (Aos Pés da Cruz) ao final dos anos 60 (Retrato em Branco e Preto), com ênfase nos anos 40 (Pra que Discutir com Madame, O Pato, Doralice) e o Jobim dos anos 60 (dos standards à rara Caminhos Cruzados). Repetitivo, diriam? Quem estava no Olympia não achou isso.

Samba de Uma Nota Só ele cantou como nunca: alongando as notas da primeira parte, transformando a segunda parte num samba sincopado à Geraldo Pereira, fazendo nas repetições várias vozes de um hipotético arranjo para quarteto vocal. Preconceito, o velho samba anti-racista ("O coração não tem cor...") de Wilson Batista e Marino Pinto, foi recriado como nunca à maneira do ídolo de João, Orlando Silva: apesar do timbre diferente e do quase-dó-de-peito de Orlando em João virar uma quase-fala, a divisão rítmica inventiva do cantor das multidões (o alongamento de certas frases musicais, a síncope de outras) está cada vez mais presente em seu discípulo de voz voluntariamente contida (e com nuances de timbre cada vez mais sutis). Um Olympia em total silêncio ouviu João. E o cantor respondeu com contrição e concentração totais - ante às palmas para Que Reste-t-il de nos Amours, parecia realmente rezar -, com elogios à casa ("O som está bom", disse a certa altura) e versões nada óbvias para as velhas canções. O velho balanço do baiano bossa nova continua a correr mundo. Isso é muito natural.