Bezerra da Silva põe a malandragem no seu lugar

Prestes a lançar o vigésimo-sexto disco de sua carreira, o partideiro da pesada não perde tempo com papo furado em entrevista a CliqueMusic: "Não existe malandro no bom sentido. Malandro é malandro e mané é mané"

Silvio Essinger
12/08/2000
Ele não é de caô-caô. Bezerra da Silva diz que pode ser chamado de catimbeiro, de polêmico e até de cantor de bandido... "Mas não sou safado. Minha ficha de antecedentes criminais é nada consta." Com a mesma disposição de sempre, o partideiro da pesada lança na semana que vem o 26º disco em 26 anos de carreira, Malandro É Malandro, Mané É Mané, o primeiro pela Atração Fonográfica.

Bezerra não esconde a bronca com sua gravadora anterior, a CID, que ainda não lhe deu o disco de ouro por Bezerra da Silva Ao Vivo, CD que, segundo ele, vendeu pelo menos três vezes mais que as 100 mil cópias necessárias para que lhe fosse conferido o troféu – aliás, o que não falta nas paredes de seu apartamento são discos de ouro e de platina (250 mil cópias), conquistados graças a sucessos como Malandragem Dá um Tempo e Defunto Cagüete. "Eu vendo disco tocando no rádio e sem tocar também. Eles dizem que é poder de macumba. Mas é porque eu sou crioulo e crioulo não tem direito a inteligência", fuzila.

Em Malandro É Malandro..., Bezerra continua a jogar luz sobre a sua equipe de compositores do morro. Gente humilde e trabalhadora, que mora na Baixada Fluminense e nas favelas. "Ou que mora andando, porque não tem barraco", diz. Numa caixa de sapatos, ele guarda as fitas que recebe com os sambas desses anônimos. Uma por uma, ele as ouve "nas horas mortas", no gravador na cabeceira da cama. Algumas fitas parecem achadas no lixo – quando vêm muito bonitinhas, geralmente o samba não presta. "Vivemos na era do poder econômico contra o talento", lamenta.

Bezerra garante: "Eles são compositores de verdade – não é comprositor e nem ladrãositor. Minha matéria-prima é composição, eu mesmo escolho meu repertório – e tenho um estoque que não acaba nunca." Daí que saem sambas como os que estão no novo disco. Tem o do urubu que não desce porque tem Medo de Virar Galeto (de Luiz Grande, Barbeirinho do Jacarezinho) e outros mais, como Tem Coca Aí na Geladeira (da primeira dama do samba, sua mulher, empresária e grande incentivadora Regina do Bezerra) e Muro da Verdade (G. Martins, Regina e Batatinha).

Se tem um papo que este sambista – pernambucano de nascimento mas criado no morro carioca do Cantagalo – não topa, é o de que "o samba está voltando". "Mas ele foi pra onde, pra Madureira?", provoca. Para Bezerra, o que há são vacilações de sambistas. "Muitos colegas que saem do ar é porque entregam tudo na mão de produtor", diz. Ele mesmo está com a alma em paz – seu trabalho tem receptividade tanto entre o público tradicional do samba, quanto entre a juventude do rock e do rap, que não cansa de regravar seus sucessos (Barão Vermelho, Planet Hemp, O Rappa, Virgulóides) e convidá-lo para participações especiais em seus discos. "A mensagem é igual, só muda a divisão", diz. Abaixo, mais trechos da entrevista que Bezerra deu a CliqueMusic.

CliqueMusic – "Malandro É Malandro, Mané É Mané" é uma frase que você sempre disse, mas que até hoje não tinha virado título de disco...
Bezerra da Silva – Mas isso é uma música, do Neguinho da Beija-Flor, que eu estava querendo gravar há muito tempo – eu até toquei nela. Mas apesar de não ter gravado, eu usava a frase, e ela virou uma marca. Gravei ela agora e virou o nome do disco também.

CliqueMusic – Ela tem a ver com a situação do país hoje?
Bezerra da Silva – Dá a entender que sim. Eu nem pensava nisso, mas tem as interpretações, o sentido figurado do malandro. Aquela confusão com o marginalizado, dando a entender que o malandro é um cidadão malcomportado, um cidadão que pratica uma série de erros na vida, quando não tem nada a ver. Quando, dentro da realidade, o malandro é sinônimo de inteligência. Tem pessoas que confundem muito, porque essas músicas são os autores que fazem. Como eu sou o intérprete, o público acha que sou eu.

CliqueMusic – Muita gente não sabe que você não é o compositor da maioria das músicas.
Bezerra da Silva – A mídia não diz. Se o rádio cumprisse a lei – acabamos de ouvir na voz do Silvio música de Pedro e Antônio –, então todo mundo saberia que você é simplesmente o intérprete.

CliqueMusic – E como é essa malandragem no bom sentido, o da inteligência?
Bezerra da Silva – Uma coisa que eu não entendo é o "malandro no bom sentido". Eu pergunto: o que quer dizer isso? Por que bom sentido? Não existe malandro no bom sentido. Malandro é malandro...

CliqueMusic – ...e mané é mané
Bezerra da Silva – Então não tem. Não sei quem foi que quis botar na cabeça do público que o malandro é um marginal. Não existem duas qualidades de malandro. Acredito que foram as elites que fizeram isso. Todos nós sabemos que o brasileiro não tem índole má. Existe esse retrato aí, mas aquilo é revolta, é fome, é miséria. O brasileiro, no duro mesmo, consegue sorrir com fome. Ele é revoltado, é a fome que faz o cara ir e depois se arrepender. O povo brasileiro não tem nada a ver com isso. Quando o cara quer chamar você de "malandro no bom sentido" é para não lhe ofender.

CliqueMusic – Uma coisa curiosa: seus últimos quatro discos foram em quatro gravadoras diferentes.
Bezerra da Silva – Justamente. Tem aquele período que vai de quando você é criança recém-nascida até quando você começa a falar – todo mundo faz de você o que quer. Esse disco é o 26º da minha carreira. Até 1993, quando eu saí da BMG, eu me considerava uma pessoa engatinhando. Eu fazia contrato, não lia... Eles deitaram e rolaram. Fiquei lá 14 anos e não ganhei nada. Só fiquei com o nome, que eles não conseguiram apagar. Mas depois disso eu aprendi a falar.

CliqueMusic – Apesar das trocas de gravadora, nos quatro discos a turma que participa é a mesma.
Bezerra da Silva – Só os compositores que às vezes não são os mesmos, cada dia vai aparecendo uma rapaziada nova. Nesse disco que eu fiz agora, gravei dois autores que eu não conhecia – só conhecia a música. O Vantuil do Salgueiro, que fez Campo Minado, e um pessoal da Vila Rangel, que fez Vossa Santidade. Gravei também duas músicas de São Paulo...

CliqueMusic – Hoje em dia São Paulo é o grande mercado do samba, não?
Bezerra da Silva – O problema é o seguinte: o samba é brasileiro, não tem lugar para nascer. Zona Leste Somos Nós é uma regravação, é uma música da escola de samba Nenê de Vila Matilde. Eles desfilaram aqui em 1988, é um samba muito bonito. E tem As DPs de São Paulo, do Capri e Silvio Modesto, que são cariocas, mas moram em São Paulo. O que me despertou a idéia de procurar saber de quem era Zona Leste Somos Nós é o fato de a Zona Leste ser discriminada. O fato mais emocionante foi quando anunciei que estava procurando a música e isso chegou aos ouvidos do compositor, o Marco Antônio, um rapaz humilde, um cara legal. Ele ligou agradecendo.

CliqueMusic – Tem uma frase dos Racionais MCs, grupo de rap de São Paulo, que parece resumir essa história: "Periferia é periferia em qualquer lugar"
Bezerra da Silva – Tá certo. Morro, periferia, muda só o nome. Você chegou num morro, não precisa ir mais a lugar nenhum, é tudo igual. O que você vê num, vê noutro – miséria, discriminação, covardia... O morro existe para segurar descarga. Tudo é culpa do morro!