Caetano ao vivo: confrontação e funk

Cantor lança Noites do Norte ao Vivo, CD duplo com reinterpretações ousadas de novos e velhos sucessos

Marco Antonio Barbosa
13/11/2001
Até a unanimidade cansa. E cansa até a Caetano Veloso. O incensado baiano entra de sola no século XXI ambicionando a reinvenção de si mesmo e lutando contra o que chama de "hieraquização" da música brasileira. A seu modo, claro. A arma de Caê nesta batalha que pode ser um tanto inglória é seu novo álbum, Noites do Norte Ao Vivo - registro integral do mais recente show do cantor e compositor, um espetáculo que mereceu loas incondicionais da imprensa e da classe artística por sua ousadia e beleza. Mas e não é justo contra esta incondicionalidade que Caetano se bate agora?

"O que eu combato é a docilidade excessiva daqueles que me elogiam. Não quero a unanimidade fácil, todo mundo falando bem e repetindo as coisas que estão no release da gravadora. Isso me irrita. A recepção meio misturada que o Noites do Norte ouvir 30s teve quando foi lançado - alguns jornais deram capa, a maioria não, deixou a matéria escondida lá dentro - me interessa muito mais do que ter todo mundo repetindo os mesmos elogios", falou Caetano, na concorrida - e repleta de digressões - entrevista coletiva que concedeu para apresentar o álbum à imprensa. Se o compositor amealhou vários elogios com o show que originou o disco ao vivo, o CD (duplo) que resultou da turnê pode encontrar uma recepção mais, digamos, misturada.

Porque trata-se de um disco não exatamente fácil. Para começar, traz a totalidade do show (32 músicas, em cerca de duas horas de duração). Depois, o show/disco é regido por uma estrita ordem teórica/estética, inspirada pelos libelos abolicionistas de Joaquim Nabuco - responsável por um dos momentos de maior emoção, quando Caetano lê um texto do político da época do Império sobre a amargura da escravidão. Para completar, pouco ou nada sobrou das versões originais das canções, quase todas reconstruídas radicalmente pelo cantor e sua banda (Jaques Morelembaum, cello; Davi Moraes, guitarra; Pedro Sá, guitarra e baixo; Cesinha, Marcio Victor, André Jr., Eduardo Josino e Josino Eduardo, percussão). Mesmo para os fãs de Caetano, acostumados a registros alive, há uma dose de desafio no álbum.

"Já gravei vários discos ao vivo, mas este de uma certa forma é uma novidade para mim. Nunca tinha posto num álbum a íntegra de um show; em geral não é assim que se faz um disco ao vivo, sempre há uma rearrumação das faixas. Noites do Norte Ao Vivo é um 'documentário' do que é o show", afirma Caetano. E em seguida completa: "Na verdade é um documentário do que foi o show, porque só registra a primeira fase da turnê. Da época em que gravamos (julho, em São Paulo, e agosto, em Salvador), muita coisa mudou no espetáculo. Mesmo porque, diferente dos meus últimos discos ao vivo Fina Estampa Ao Vivo ouvir 30s e Livro Vivo ouvir 30s, eu não tinha a certeza de que este novo CD iria acontecer. Primeiro achei que estava tudo certo, depois desisti, e afinal voltei atrás. Acabou virando o meu disco ao vivo mais completo."

Caetano & trupe releêm de forma inusitada boa parte do material. Arranjos esparsos, que privilegiam a percussão, dominam o álbum, pontuados pelo cello de Morelembaum e a guitarra travessa de Davi. Isso quando não há apenas o violão e a voz do cantor. As faixas extraídas de Noites do Norte não soam lá muito diferentes (Zera a Reza, 13 de Maio, Meu Rio), as várias novidades surpreendem. Como o austero arranjo para Haiti, a recriação de O Último Romântico (Lulu Santos) só com violão e cello, as guitarras pesadas e a percussão atiradas em Tigresa ou a bossa nova conjugada com tambores afro em Caminhos Cruzados (Tom Jobim).

O cantor ressalta: "A importância deste disco, mais do que a de documentar este show, é demonstrar o valor que tem esta banda. Particularmente, não acho que eu tenha superado minhas interpretações vocais originais em nenhuma das músicas do disco, mas o trabalho dos músicos é impecável." Mesmo admitindo que sua voz nem sempre correspondeu ao alto padrão que vem mantendo ao longo dos anos, Caetano repudia a idéia de retocar em estúdio o trabalho gravado ao vivo. "Não vejo graça nisso. A gravação ao vivo envolve riscos, mas também pode gerar coisas maravilhosas. Não quero proibir essa possibilidade retocando as músicas em estúdio."

A seleção de músicas seguiu a orientação de Noites do Norte, o álbum, só que devidamente expandida. "Tinha de seguir o repertório original do disco, mas precisava incluir algumas canções que tinham a ver com o universo que eu estava abordando", narra Caetano. Por esta lógica, entraram músicas como Haiti e Língua. "Para a inteligência interna do disco, essas não poderia faltar. Mas poderiam entrar outras, como por exemplo Eu Sou Neguinha?, que seria totalmente pertinente. Aliás, todos os meus shows estão cheios de músicas quase cantadas." Por isso mesmo, acabaram entrando momentos quase esquecidos da obra do compositor (Two Naira 50 Kobo, Araçá Blue) e versões inusitadas (Mimar Você, da Timbalada, ou Magrelinha de Luiz Melodia).

Noites do Norte Ao Vivo reproduz um dos momentos mais comentados da última turnê de Caetano: a citação do funk Tapinha, enxertada ao final de Dom de Iludir. Não raro, os gaiatos versos do sucesso dos bailes cariocas são recebidos com vaias. "É uma canção feminina, que eu acho sacana, alegre. Vejo muita graça na música, enxergo mais nela do que o lugar-comum da violência sexual contra a mulher", rebate Caetano. Indagado sobre o retorno da vocação para a polêmica, o cantor minimiza. "Imagine se isso é polêmica! Já aturei vaias monumentais, audiências muito mais hostis. Não queria causar escândalo algum, especialmente porque a música já tinha sido cantada antes - por Rita Lee, Adriana Calcanhotto, Fernanda Abreu."

A questão abre espaço para Caetano especular sobre as tais "hierarquias" que enxerga na música brasileira. "Temos de ficar alertas para não desaprovar de antemão uma tal música só porque o grande público a aprovou primeiro. A polêmica com o Tapinha se deu por causa do preconceito. O público dito 'culto', que está lá me ouvindo cantar Dom de Iludir, se acha desrespeitado quando eu emendo com o Tapinha. Mas eu valorizo este tapa na cara do 'bom gosto médio', mesmo." Indagado se o disco pode conter outro sucesso inesperado como Sozinho - a canção que impulsionou Prenda Minha a vender um milhão de copias - o cantor desconversa. "Mas se eu nem esperava fazer sucesso da primeira vez...", fala, rindo.

Agressividade estética, nunca física. Caetano estava nos EUA no dia dos atentados terroristas a Nova York - ele se apresentaria na festa do Grammy Latino, marcada para o dia 12 de setembro (um dia depois dos atentados) em Los Angeles, que acabou cancelada. "Estive em Nova York até um dia antes do atentado, depois viajei para Los Angeles. Ensaiamos, eu e a banda toda, a música 13 de Maio e tinha ficado tão bonito... Eu estava muito animado. Então aconteceu aquilo tudo", relembra o cantor. Por essas e outras, Caetano anda pensando muito em uma canção que escreveu em 1992. "A letra de Fora da Ordem tem tudo a ver com este momento que vivemos", acredita o cantor.