Caetano e Mautner - um estranho <i>casal</i>, ou não

Parceiros tropicalistas e colaboradores bissextos, a dupla lança agora seu primeiro álbum em conjunto

Marco Antonio Barbosa
04/09/2002
Das inúmeras cartas na manga que Caetano Veloso parece dispor, poucas poderiam surpreender mais do que o anúncio, no começo deste ano, de que lançaria em breve um disco em parceria com Jorge Mautner. Nada mais distante do high profile do baiano do que a figura de Mautner: artista fonográfico bissexto, mais dedicado à literatura que à música, considerado maldito (no bom sentido) e cult (no mau). Pois a dessemelhança entre os rumos que um e outro tomaram nas últimas três décadas não esconde o fato de que estiveram juntos em momentos cruciais do Tropicalismo. Trinta e um anos depois do encontro que tiveram durante o exílio londrino do baiano, Caetano e Mautner lançam o álbum Eu Não Peço Desculpa - junção de dois artistas únicos e oportunidade também única de testemunhar a simbiose entre uma dupla de musicalidades (e personalidades) mais do que peculiares.

"Tive idéias que nunca passariam pela minha cabeça, se não estivesse junto a Mautner. Todo o clima é diferente, quando se está com ele. Fui induzido - por ele - a me aproximar diretamente dos conteúdos, do âmago das canções, dos versos, das melodias. Isso me impressiona: a abordagem direta, sem experimentar meios ou fórmulas, que ele aplica à música", discursa Caetano sobre o rico choque artístico entre as duas cabeças. Mautner prefere rasgar a seda. "A visão de Caetano é libertária, global, abre a cabeça da gente. Sua dedicação é integral e sua musicalidade extrema, sem preconceitos. Trabalhar com ele, além de ser a celebração de nossa enlaçante amizade, foi o segundo maior presente de minha vida. O primeiro foi o nascimento de minha filha, Amora", diz Jorge sobre o parceiro.

Eu Não Peço Desculpa é, como o título (frase tirada da canção Tudo Errado, faixa de trabalho do CD) pressupôe, um disco abusado. "Falamos de temas importantes com um tom jocoso", diz Caetano sobre o clima geral do álbum. A "importância" dos temas remete ao reencontro inicial da dupla, quando um Caetano ainda impactado pelos atentados terroristas a Nova York (ele estava nos EUA no 11 de setembro) se reuniu a Mautner. "Tive a idéia de gravar com ele ao mesmo tempo em que repensava muita coisa sobre o mundo, ao conversar (com Mautner) ainda no ano passado", relembra Caetano. Mautner considera, filosófico: "A angústia é necessária para o criador. Ela (a angústia) pode se abater sem motivo, mas cabe a nós transformá-la em ironia, bom-humor, criatividade."

Assim, logo após o Carnavaldeste ano, a dupla entrou em estúdio no Rio de Janeiro para produzir este trabalho "importante mas jocoso". O alcance dos temas vai da confusão sexual (Voa, Voa, Perereca) ao lirismo romântico, debochado (em Tudo Errado) ou não (Lágrimas Negras). A possível melancolia de momentos como Morre-se Assim é rebatida pelo tom irônico que permeia o álbum, presente por exemplo em Homem-Bomba e também na produção despojada (co-assinada pelo modernoso Kassin, parceiro do filho de Caetano no grupo Moreno + 2). Musicalmente, C&M atiram para vários lados. Dialogam com a tradição, ao trazer os tambores que Chico Science não incluiu ao gravar Maracatu Atômico, clássico de Mautner. Mas arriscam-se na eletrônica (com Manjar dos Reis). Entre os dois pólos, mandam irreverentes esquemas de pop-rock, música brega, baladas. Curiosamente, apenas três das músicas (Homem-bomba, Graça Divina e Tarado) são assinadas em conjunto pela dupla.

Caetano prefere analisar as faixas que considera mais marcantes. "De todas, O Feitiço sintetiza melhor o que foi nossa união, o que cada um influenciou no outro. Tem a alma tropicalista, mas não fica parada no tempo. Mas acho que Coisa Assassina é a melhor produção do disco, um contraponto sombrio ao clima geral", diz. Cada um regravou uma canção importante do passado do outro. Caetano refez Maracatu e Mautner, Cajuína. "Ao regravar minha música, Caetano misturou candomblé e maracatu - mas maracatu de baiano. Eu sempre me identifiquei com Cajuína, e acho que minha versão acabou virando uma Cajuína do Kaos, solene", fala Mautner. A paixão pelo brega que, une a dupla, também compõe o resultado final. "Tudo Errado é ultra-romântica, cafona até. Mas ser assim é o ponto forte da canção", diz Caetano. "Sou um velho batalhador a serviço do brega. Ouvia tudo isso - brega, música caipira, samba-canção - muito antes dos tropicalistas descobrirem", fala Mautner.

Apesar da inspiração incial sombria, Eu Não Peço Desculpa acabou se tornando, segundo Caetano, "um símbolo de nossa, minha e de Mautner, vontade de ter fé no Brasil." Mautner destaca a positividade que norteou, afinal, o trabalho. "Foi importante para nós que terminássemos com uma obra otimista em nossas mãos. Mudou o Brasil e mudamos nós, mas ainda nos permitimos acreditar no futuro. Daí a frase no encarte, 'ou o mundo se brasilifica ou vira nazista'. Não faltam grandes pensadores mundiais que acreditam que o futuro da humanidade passa pelo Brasil, por nossa gente."

Resta calcular os dividendos, artísticos e mercadológicos, que o disco em conjunto terá sobre a carreira individual de cada um. Na crista da onda, Caetano ainda segue (pela América do Norte) com a vitoriosa excursão de Noites do Norte e prepara o lançamento de Tropical Truth, versão em inglês para seu livro Verdade Tropical. Já Mautner toca seu dia-a-dia, fazendo palestras, shows ocasionais e divulgando o relançamento de sua obra escrita completa (pela editora Azougue). "Pretendo formar uma banda menor e continuar tocando as canções deste disco, mesmo depois que eu e Caetano fizermos os shows de lançamento", fala Mautner. Para Caetano, isso é o de menos. "O importante para mim é o presente desta nossa parceria. Depois, o que Jorge quiser ou puder fazer com nosso trabalho, é da conta dele", diz o baiano.