Caetano Veloso organiza o movimento

Em seu primeiro disco de inéditas em três anos, Noites do Norte, compositor volta a polemizar com a imprensa ao entregar sua entrevista pronta, via Internet

Silvio Essinger
11/12/2000
Sem dúvida, Caetano Veloso é um dos artistas de maior presença nos cadernos culturais da imprensa brasileira. E também um dos que mais polemizam com esses mesmos cadernos à medida que discorda do que é escrito, seja sobre o seu trabalho ou o de outros. Vide as declarações no começo do ano, quando foi procurado para comentar sobre o Grammy de melhor disco de world music que havia ganhado por Livro, de 1997 – muitas delas sobre o descaso com o filme Orfeu, de Cacá Diegues (para o qual ele fez a trilha), poucas sobre o CD em si. Ao lançar seu primeiro álbum de inéditas em três anos, Noites do Norte ouvir 30s, o compositor resolveu redefinir sua relação com a imprensa. Ao invés de dar entrevistas para jornalistas que ouviriam seu disco às pressas e correriam contra o relógio para entregar seus textos imperfeitos, ele optou por mandar entregar o CD e deixar que os escribas (e demais curiosos) tivessem acesso em seu site (www.caetanoveloso.com.br) a trechos de uma entrevista de três horas e meia feita pelo jornalista Geneton Moraes Neto.

Em texto e vídeo, Caetano vai adiante em suas opiniões sobre a imprensa, estendendo as reclamações ao tratamento dispensado a artistas populares como Sandy & Júnior. “Estou convencido de que a música comercial é de melhor qualidade que a imprensa comercial brasileira”, diz. “Sandy é uma cantora, do ponto de vista técnico, perfeita”, considera, acrescentando que os grandes vendedores de disco do Brasil têm sido muito mais responsáveis do que “jornalistas que se comportam como artistas ultracomerciais”.

Justiça seja feita, Caetano Veloso utiliza boa parte de sua entrevista para contar como o abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco (falecido em 1910) fez com que um disco, originalmente programado para ser só de experiências com sons, se tornasse este Noites do Norte. “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil” – esta frase, que abre um texto do escritor, musicado por Caetano na faixa-título, orienta no disco a sua análise da atual realidade brasileira. “O mais evidente [traço da herança da escravidão na vida brasileira] é a favelização das grandes cidades e a estatística vergonhosa e escandalosa da predominância de negros entre os que vivem na situação de favelado”, diz o compositor.

Vontade de ser americano
Além de Nabuco, Caetano homenageia três outras figuras ilustres em Noites do Norte. A “vontade de ser americano”, levantada certa vez pelo escritor, é personificada na música de Caetano por Raul Seixas – baiano como ele, mas de uma turma totalmente diferente – no Rock’n’Raul. “Pode parecer, a ouvidos mais tolos, que minha canção apresenta uma desaprovação, seja do Raul, seja da vontade de imitar os americanos”, esclarece. “Em primeiro lugar, não desaprovo Raul, um de meus artistas favoritos (...) Porém, nunca vivi, como ele e muita gente viveu e vive, a vontade imediata de ser americano.”

No meio da letra de Rock’n’Raul aparece o curioso verso “E hoje olha os mano”. “É uma menção aos rappers brasileiros – que também demonstram uma grande vontade de se identificarem com os americanos. Os nomes que eles escolhem para si são nomes em inglês, parecidos com os dos negros americanos. É imensamente saudável, porque apresenta uma vontade de discutir e problematizar o modo com que se dispõe o panorama racial no Brasil. Preferem se chamar Ice Blue, Mano Brown, Edy Rock...” Por coincidência – ou não – todos os citados são integrantes da banda paulistana Racionais MCs.

O segundo homenageado em Noites do Norte também não escapa da questão racial de Nabuco: é Jorge Ben (Jor), que mais uma vez Caetano volta a regravar. A forte Zumbi, originalmente do disco África Brasil, de 1976, ganha agora uma versão lírica. “Jorge Ben é um caso espetacular de saúde cultural, é rock com samba, é um preto do Salgueiro que terminou indo viver em São Paulo um período crucial da vida. Jorge Ben é mestre dos pagodeiros, rappers, tropicalistas e roqueiros”, diz.

Por fim, a terceira homenagem. Depois da música Giulieta Masina (do disco Caetano, de 1987, que o levou a gravar na Itália o álbum ao vivo Omaggio a Federico e Giulietta, lançado no ano passado), o compositor volta ao cinema italiano, não mais em tributo a uma atriz, mas a um cineasta: Michelangelo Antonioni: “Eu fiz a letra em italiano, que é uma língua que mal falo, mas organizei os versos para ficar direitinho. Mandei para o Antonioni, para que ele me dissesse se tinha aprovação. Fiquei muito feliz de ele ter dado uma resposta com entusiasmo e achado o italiano todo certo.”

Ajuda do filho
Noites do Norte acabou sendo um disco sem produtor. Em algumas faixas, Caetano contou com ajuda de seu velho escudeiro Jacques Morelenbaum. Em outras, com a do guitarrista Luís Brasil. Auxílio também foi prestado pelo guitarrista Pedro Sá e o baterista Domenico Lanceloti, da banda Mulheres Q Dizem Sim. Já o filho Moreno Veloso fez o arranjo, tocou guitarra e as percussões da faixa 13 de Maio. “Antes de eu começar a fazer o meu disco, o Moreno começou a fazer o dele (Máquina de Escrever Música ouvir 30s, com seu Moreno + 2, no qual toca Domenico). E eu achei tão bonito o resultado: tanto as canções quanto a engenharia sonora. Fiquei impressionado com o quanto ele sabe disso, eu não sabia que ele sabia tanto; aí eu pedi sua ajuda”, conta.

Outras participações especiais dão as caras em Noites do Norte: Dudu Nobre toca cavaquinho na faixa Meu Rio (baseada em lembranças da primeira visita de Caetano à cidade, aos 13 anos, em 1956) e Zélia Duncan e Lulu Santos fazem coro em Cobra Coral (música feita sobre poema de Waly Salomão). “A minha voz, a do Lulu e da Zélia soam como se fôssemos três homens”, comenta Caetano.