Cartografando sons do Oiapoque ao Chuí

Fundação Itaú Cultural mapeia música de todas as regiões brasileiras em caixa com dez CDs

Mônica Loureiro
10/08/2001
A música brasileira passa por uma crise de criatividade. Esta é a idéia que as grandes gravadoras querem impor a seu público, tentando encobrir a produção cultural que explode em cada canto do país. Quem é um pouco mais atento e não gruda seus ouvidos nas rádios nem os olhos nos programas "populares" de TV, percebe que há muita música de qualidade, dentro de todas as vertentes, sendo feita por aí. Só que essas manifestações acabam ficando encobertas pelo regionalismo e não conseguem ultrapassar as barreiras da grande mídia para aparecer.

Há um ano, o instituto Itaú Cultural, dentro de seu programa Rumos Itaú Cultural Música, deu início ao projeto Cartografia Musical Brasileira, que resultou em dez CDs ouvir 30s e um banco de dados dentro do site da instituição ( www.itaucultural.org.br). Os CDs estão sendo comercializados juntos, em uma caixa, pelas gravadoras independentes parceiras do projeto (Pelourinho/BA, UnB/ Centro Oeste, Laborarte/Maranhão e Piauí, Lapa/Minas Gerais, Candeeiro/Nordeste, Violões da Amazônia/Norte, Cântaro/Paraná e Santa Catarina, Barulhinho/Rio Grande do Sul, Rob Digital/Rio de Janeiro e Espírito Santo, MCD World Music/São Paulo). Mas a partir da segunda quinzena de setembro, eles poderão ser adquiridos separadamente. O banco de dados foi criado para incentivar a produção e a difusão musical brasileira, com objetivos tecer uma rede de relacionamentos na área. Ele contém três mil endereços de instituições, estúdios, teatros, jornalistas, gravadoras e escolas de música do país.

Para traçar o panorama da música atual, dividiu-se o país em dez áreas, nas quais curadores e curadores assistentes (músicos, jornalistas e produtores) ficaram responsáveis por reunir e selecionar o material. "Foram 1712 inscrições, que passaram por uma pré-seleção para então chegar aos 78 artistas. Fizemos uma parceria com gravadoras independentes de cada região para o lançamento dos CDs", diz Edson Natale, coordenador do Núcleo de Música do Itaú Cultural e curador da área de São Paulo.

Sob a curadoria nacional de Hermano Vianna, o projeto está apenas no início. "O Hermano ficou surpreso, pois apareceram coisas que ele não tinha detectado mesmo tendo viajado todo o Brasil. Haverá uma continuidade, é um processo interminável. Em dezembro, por exemplo, será realizado o Seminário Internacional de Educação Musical, para discutir importantes questões da área. Posso dizer até que estamos começando a planejar a nova edição do Rumos. O conceito permanece, mas com algumas modificações", revela Natale. E conclui: "A música brasileira está mais viva do que nunca. Há pessoas muito expressivas regionalmente, que são ídolos, mas que o resto do Brasil desconhece. Mas é bom ressaltar que com o Cartografia, não estamos descobrindo nada e sim difundindo, atuando a médio e longo prazos".

Seleção difícil
Cliquemusic entrevistou, além de Natale, seis dos dez curadores que foram eleitos para a tarefa de arregimentar artistas que representassem - bem - suas regiões. E uma opinião foi unânime: foi muito difícil escolher poucos nomes diante da riqueza de talentos que encontraram entre os inscritos.

Arthur de Faria, músico, jornalista, professor e líder da banda Arthur de Faria & Seu Conjunto, ficou responsável pelos trabalhos dos gaúchos: "O Rio Grande do Sul teve cerca de 140 inscritos. Desses, pelo menos 80 eram passíveis de seleção, para ficar entre os 30 finais. A média é altíssima, creia. Temos toneladas de festivais por aqui e geralmente a gente sofre para tirar 120 músicas de mais de 600 inscritas, pois o nível é baixo. No Rumos, o pessoal realmente bacana, que não participa de festivais, entendeu que não era uma competição e se inscreveu. Foi uma suprema maravilha!". Arthur ainda diz que os critérios utilizados levaram em conta três perguntas básicas: se a música em questão poderia ser ou está sendo feita em outro lugar que não o Rio Grande do Sul; se era realmente bacana e ainda se era original dentro do cenário da região.

Uma área bem maior - Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins - ficou a cargo de Roberto Correa. "Recebemos mais de 200 trabalhos. Com qualidade, ficaram 70. Os critérios acabaram ficando subjetivos e foi muito difícil chegar aos 30, que foram os representativos. Os melhores eram os 70. Na seleção final, eram cinco artistas, acabamos colocando oito e ainda não foi o suficiente, Mato Grosso, por exemplo, ficou sem representante", conta o violeiro e compositor, especializado em recitais com viola caipira e de coxo.

Outro que deu um jeitinho para incluir mais artistas do que o previsto foi Siba, instrumentista, cantor e compositor da banda Mestre Ambrósio: "Recebemos mais de 200 trabalhos. Dos 30 finais, tiramos cinco mas tudo era tão bom que acabaram ficando oito. Muita gente boa ficou de fora, cobrimos uma área muito grande (Alagoas/Ceará/Paraíba/Pernambuco/Rio Grande do Norte/Sergipe)e os critérios de escolha ficaram difíceis", justifica.

Carlos Ernest Dias, compositor, arranjador e professor da UFMG, ficou à frente da seleção em Minas Gerais: "Fizemos divulgação de todas as formas e chegamos a 178 inscritos, a maior parte de Belo Horizonte. Foi muito difícil a escolha, então utilizamos o critério da variedade para chegar aos 33 de maior qualidade. O CD acabou abrangendo de tudo - violão e voz, folclore, experimental, moderno...". O trabalho de divulgação e garimpagem também foi árduo no Maranhão e Piauí. Celson Mendes Filho, violonista e consultor da Fundação Municipal de Cultura de São Luís, diz que de um total de 130 músicas, foram selecionadas 30. "Tivemos como critérios a visão do projeto, que é a produção regional fora da grande mídia nacional, com características ou apropriações da cultura popular, que tivesse perspectivas de gosto popular e 'qualidade'. Nosso conceito de qualidade foi pautado em nosso próprio conhecimento no que se refere a letra, música, harmonia, representatividade cultural, modernidade e tradições", explica.

Os músicos Pedro Luís (o da Parede) e Mário Seve foram convidados por Lui Coimbra para ajudar no trabalho no Rio e Espírito Santo. "Tivemos uma parceria também com a Rádio MEC. Foram 350 inscritos, a maioria do Rio e na área de clássico e instrumental, pouco pop e rap. Infelizmente o Espírito Santo foi pouco atingido. Aliás, faço um mea culpa em relação à ausência de músicos do ES. Escolhemos 30 trabalhos, dos quais a curadoria nacional tirou sete, por um acaso todos cariocas. Muitas bandas boas acabaram ficando de fora, mas o resultado final alcançou um apanhado interessante", diz o instrumentista, cantor e compositor.

Depois das pré-seleções, todos os curadores regionais, mais os nacionais, se encontraram durante uma semana em São Paulo para ouvir os selecionados de cada região. "Foram mais de 600 músicas ouvidas, na íntegra, pelo menos duas vezes", contabiliza Arthur.

Muitas surpresas
Por mais especializados que fossem dentro de suas áreas, os curadores não escaparam de serem surpreendidos diante de um ou outro artista que desconheciam. "Tivemos duas surpresas que foram o Narguilé Hidromecânico, do Piauí, e o Boca de Lobo, do Maranhão, por serem grupos recentes. Os outros têm um sólido trabalho musical e bastante estrada", revela Celson. Ele dá mais detalhes sobre o tom final do CD: "Embora tenhamos bons instrumentistas e intérpretes na região, nosso forte é a canção (letra e música). Noventa e cinco por cento das inscrições foram de compositores. Por isto, praticamente todos os selecionados eram compositores e intérpretes de si próprios". Lui confessa que ouviu coisas de outras regiões que não supunha que existissem e cita Zé Luis Rinaldi como uma boa surpresa.

O músico também é lembrado por Arthur, que elogia mais especificamente, de seu estado, o jovem acordeonista Luciano Maia. "Ele toca música regional, jazz, rock, tudo! No Brasil há muitas surpresas. A mais impressionante, pra mim, foi o DJ Dolores, que eu conhecia só de ouvir falar. Ou então o Zé Luiz Rinaldi, do Rio, que também é muito bom". O DJ pernambucano é citado também por Carlos, que destaca ainda o grupo cearense Cidadão Instigado. "O Bado, de Roraima, que já atua há tempos e ninguém conhece, e o Pexbaa - que apesar de cantar em uma língua inventada faz um trabalho sério - também foram boas surpresas. Já Roberto, que fez várias viagens, encontrou em Tocantins sua surpresa com o trabalho de Belarmino e o Patrício, do Catireiros de Natividade. Mais para o moderno, Renato Matos também foi surpreendente. Na verdade, me surpreendi com tudo...", garante.

Siba lembra que uma unanimidade em elogios entre os curadores foi o Lacertae, de Sergipe: "Eu conhecia os integrantes, mas nunca havia escutado o som deles. O Areia Projeto também me surpreendeu, principalmente porque em Recife não há uma cena formada de música instrumental".

Oportunidades
Por não ser um concurso nem um festival de música, o Cartografia não ofereceu prêmios, apenas abriu inscrições para os interessados em divulgar seu trabalho. "O objetivo nunca foi o de uma competição, e sim escolher os melhores para fazer um mapeamento da música brasileira. Foi uma experiência rica, que revelou a produção musical de forma independente, mostrando que cultura não depende dos grandes meios de comunicação e que a MPB não está passando por crise criativa. Curioso é que este projeto foi logo depois do festival da Globo (o Festival da Música Brasileira, ocorrido no ano passado) e que, mesmo sem oferecer dinheiro, alcançou um resultado qualitativo indiscutível...", lembra Siba.

Celson acha que o Rumos Musicais está dando uma grande oportunidade ao segmento independente da música. "Ele está mostrando sua cara para o Brasil. Está mostrando que nós somos bem mais do bundmusic, que ainda tem gente pensando e tratando a arte com respeito. Que o público não é somente galera, nem merece ser tratado como idiota para ficar batendo palmas para pseudoartistas. Vejo neste projeto a oportunidade para alguns que naturalmente irão ter mais sucesso que outros, seja por competência, seja por sorte de ser visto ou ouvido na hora certa pelas pessoas certas. Mas acima de tudo vejo a oportunidade do autoconhecimento, da união dos grandes mantenedores da cultura brasileira e de refletir sobre os rumos da música brasileira", empolga-se.

Roberto Correa lembra que, por causa da visão míope das grandes gravadoras, que só enxergam o lucro, as pessoas acabam recorrendo a outros tipos de divulgação de seus trabalhos. "Há o mercado cultural, de onde fazemos parte, e a indústria fonográfica. E os grandes continuam insistindo em dizer que a música brasileira está pobre, enquanto este projeto mostra outra realidade", compara. Arthur lembra também do banco de dados organizado pelo Itaú Cultural: "Os discos estão aí, o site está aí. Para quem quiser aprender, se espantar e pensar em construir uma efetiva rede de música independente num momento de crise profunda do atual esquema de grandes gravadoras." Siba completa: "O projeto alcançou bons resultados, mas não podemos nos iludir, achando que vamos conseguir mudar a realidade do país. Mas daremos uma boa contribuição. O desdobramento do projeto é muito importante, que é o esboço de uma rede de comunicação entre todas as regiões. As grandes gravadores dizem que vão afundar com a pirataria. Esse projeto mostra que há alternativas".

E Lui dá até dicas para uma segunda edição: "O Cartografia está apontando para uma produção independente da grande mídia. Não tem que haver novo Chico, novo Caetano... hoje não há uma pessoa única como referência. Há espaço para todos! Para o próximo, seria legal fazer sem abrir inscrições, para eliminar de vez qualquer expectativas de concurso". Celson completa: "Torço para que o Itaú Cultural continue seu trabalho, seja com esta formatação ou outra, mas que os objetivos sejam os mesmos".

A relação de grupos, CD por CD

AC/AP/AM/PA/RO/RR - Pia Lobato, Grupo de Tradições Marajoara Cruzeirinho, Nego Nelson, Bado, Iva Rothe, Pipira do Trombone, Minni Paulo.
AL/CE/PB/SE/PE/RN/SE - Lia de Itamaracá, Areia Projeto, Cidadão Instigado, DJ Dolores, Lacertae, Fethxa, Pedro Osmar, Chão & Chinelo.
BA - Eduardo Torres, Jurandir Santana, Barra Manteiga, Márcio Valverde, Janela Brasileira, Fred Menendez, Mariella Santiago.
DF/GO/MT/MS/TO - Jerry Espíndola, Belarmino & Patrício, Carrapa do Cavaquinho, Renato Martos, Brasília Brasil Trio, Badiá Medeiros, Juraildes da Cruz.
RJ/ES - A Camarilha, Eduardo Neves, Pandemonium, Sérgio Chiavazolli, Silvério Pontes & Zé da Velha, Suely Mesquita, Zé Luiz Rinaldi, Mestre Darcy do Jongo.
MA/PI - Neano, Dona Tetê, Narguilé Hidromecânico, Cesar Nascimento, Cesar Teixeira, Rosa Reis, Boca do Lobo.
MG - Esdra Ferreira & Mauro Rodrigues, Kim Ribeiro, Pexbaa, Sérgio Santos, Vander Lee, Weber Lopes, Wolf Borges, Berimbrown e Candombe da Serra do Cipó.
PR/SC - Carrigo, Maxixe Machine, Quinteto de Cordas de Curitiba, Rogério Gulin, Tocata Vieira, Mundaréu, Badulaque.
RS - Cláudio Levitan, Fábio Mentz, Hique Gomes, Frank Solari, Luciano Zanatta, Luciano Maia, Luciano Mello, Ivo Ladislau, Nelson Coelho de Castro.
SP - Galvão Frade, A Barca, Barbatuques, Bonsai, Iara Rennó, Madeira de Vento, Miriam Maria, Renato Anesi.