Cidade Negra volta à crueza inicial

Em seu sexto disco, a banda carioca de reggae se recorda do tempo em que se chamava Lumiar, reduz sua formação para seis músicos, aumenta o volume das guitarras e enfatiza a crítica social

Silvio Essinger
25/10/2000
Depois dos álbuns que reuniram os sucessos (Hits) e as versões dub desses sucessos (Dubs), ambos lançados no ano passado, era mais que previsível que o Cidade Negra acabasse parando para fazer uma revisãozinha que fosse. Em janeiro passado, a banda se internou numa casa em Arraial do Cabo (região dos Lagos do estado do Rio de Janeiro) e aproveitou o sol, o mar e a natureza para tentar resolver uma grande dúvida: aproveitar o material que tinha sido composto na estrada ou renovar totalmente o conceito da banda? "A gente estava transbordando de informações", conta o baterista Lazão. Os músicos acabaram promovendo uma reforma geral, que pode ser conferida no recém-lançado Enquanto o Mundo Gira, sexto álbum da banda em 10 anos de carreira. As mudanças são perceptíveis logo de cara, em qualquer uma das faixas, que foram produzidas ou por Liminha, ou por Chico Neves, ou pelo inglês Paul Ralphes.

"Abrimos mão dos metais e aproveitamos mais as guitarras, o pulso de baixo e bateria", entrega Lazão. O som do disco é mais o da banda tocando que o das programações eletrônicas que dominaram os álbuns anteriores. No palco, daqui para a frente, serão três os guitarristas do Cidade: Da Gama, o vocalista Toni Garrido e o recém-contratado Serjão. Com o baterista, o baixista Bino e o tecladista Alex Meirelles, fica fechada em seis músicos a nova formação da banda ao vivo – antes, costumavam ser de 10 a 12. "Este vai ser um show muito mais limpo. Bem dub, com muito delay e efeitos, além de grooves de baixo e bateria", adianta Lazão. Em breve, eles começam a ensaiar para aquele que vai ser a grande estréia nesse novo formato: o Rock In Rio 3, em janeiro próximo.

Segundo o baterista, Enquanto o Mundo Gira pode ser encarado como uma volta aos tempos do segundo disco do Cidade, o politizado Negro no Poder (que tinha muita bateria tocada e guitarras pesadas). Ou mesmo aos tempos do Lumiar, banda de reggae na qual ele, Da Gama e Bino começaram, ainda nos anos 80, em Belford Roxo (localidade da Baixada Fluminense). "Nossos primeiros acordes eram isso, uma espécie de punk reggae, com aquela pegada volumosa do Bino, meio John Paul Jones (baixista do Led Zeppelin)", lembra o baterista, revelando ainda histórias sobre as suas insuspeitas raízes punk. "Meu pai me deu um disco dos Sex Pistols – e perdeu o filho que tinha (risos)." Por sinal, a inconformada música Favela, gravada no novo disco, veio do diretamente baú do Lumiar.

Do Metallica à bossa
Enquanto o Mundo Gira não é, na opinião do baterista, uma reação aos que acusavam o Cidade Negra de ter se tornado pop em excesso. "Essa é uma tendência natural das pessoas. Disseram isso quando o Jimmy Cliff gravou uma balada. Mas não rolou essa preocupação entre a gente", garante. Até mesmo para que o disco "não deixasse todo mundo de cabelo em pé o tempo inteiro", a banda deu duas "freadas intencionais": a balada voz-e-violão Soldado da Paz (de Herbert Vianna) e a "bossa computadorizada" Cantando na Rua (parceria do Cidade com Nelson Motta). "Somos uma banda de reggae que se permite usufruir dos vários ritmos. A gente ouve de Metallica e Asian Dub Foundation à bossa nova de Tom e Toquinho", conta.

Assim como optou por trabalhar com três produtores ("Por nós, seriam até mais, mas não havia tempo", confessa Lazão), o Cidade distribuiu músicas a uma série de letristas. "Aos amigos que se aproximaram mais do trabalho", explica. Mobatalá, por exemplo, foi feita em parceria com Jorge Mautner. "Ele é o verdadeiro desbunde, remanescente de uma excelente safra de músicos dos anos 70", elogia o baterista, contando que o músico veio correndo com um poema na mão assim que ouviu a base feita por ele e Toni.

Outra pena ilustre no disco é a de MV Bill, na música A Voz do Excluído, uma das mais fortes do disco. Lazão conta que conheceu o rapper há oito anos, num festival de hip hop em Jacarepaguá – e desde então vinha a idéia de unir a metralhadora verbal ao do som do Cidade Negra. "O reggae é irmão do hip hop", acredita. Essa música ainda tem a participação, na viola de 12 cordas, de seu Otacílio, o pai de Bino. "Ele acompanhou a nossa criação e deu muitos conselhos que ele dava para a gente. O semblante dele parece o de Gandhi", emociona-se. As participações de Bill e de seu Otacílio sublinham a preocupação do Cidade, em Enquanto o Mundo Gira, de não se afastar da realidade social que deu origem à banda. "O Cidade Negra tem o privilégio de viver da música que ama, mas não vai cair no relaxamento de achar que chegou a algum lugar. A gente segue na batalha, meus pais ainda vivem Baixada. Não tem como andar de tapa-olho", finaliza Lazão.