Cláudio Levitan conta com canções uma história do Holocausto

Compositor gaúcho busca nas raízes da própria família a inspiração para um trabalho que mistura referências de música iídiche, tradições gauchescas e linguagem erudita

Carlos Calado
28/03/2001
Conhecido no Rio Grande do Sul como autor das bem-humoradas Ana Cristina e Tango da Mãe, canções que fizeram sucesso nos repertórios dos grupos Saracura e Tangos e Tragédias, o compositor gaúcho Cláudio Levitan mudou radicalmente o registro emocional de sua obra. Minha Longa Milonga – Doze Canções Para Keidânia ouvir 30s, seu segundo CD (leia crítica), tem como tema um massacre de 2 mil judeus fuzilados por nazistas, numa cidadezinha da Lituânia, em 1941. "A tragédia do Holocausto também aconteceu na minha casa e eu nunca tinha me dado conta disso", conta o autor e intérprete, cujo avô imigrou para o Brasil com três filhos, em 1926, deixando irmãos e sobrinhos na pequena Keidânia.

Seis anos atrás, Levitan nem imaginava que viria a fazer um disco, quando começou a escrever um longo poema inspirado no episódio, depois de conhecer um primo-irmão do pai, na Inglaterra. "Mais do que contar a história do massacre, o que me interessava era a perda daquelas pessoas. Era um poema em cima da dor", explica o compositor, que só veio a conhecer a verdadeira história do massacre de Keidânia pesquisando na Internet. "Primeiro as pessoas foram presas numa igreja; depois fuziladas e enterradas numa cova comum. Só restaram dois sobreviventes. Meu pai e meus tios também não sabiam exatamente o que acontecera com nossos parentes. Achavam que eles tinham morrido na guerra", conta o autor.

Desvendado o mistério, Levitan começou a compor. "Foi uma coisa intuitiva, uma necessidade pessoal. Não pensei em fazer um disco, de início, apenas uma canção que narrasse aquela história", relembra o autor, que se inspirou na figura do payador (pronuncia-se "pajador"), uma espécie de contador de histórias da cultura tradicional gaúcha. "À medida que fui compondo, pensei que essa história deveria ser contada num palco. Estruturei a história como uma contação", explica. A canção inicial acabou virando uma espécie de suíte, uma extensa milonga (gênero de música platina, cantada com acompanhamento de violão), dividida em quatro partes, com três canções cada uma.

Para criar as canções, que no disco são entremeadas por alguns textos recitados, Levitan utilizou não só os dados de suas pesquisas e os relatos parciais de seu pai e tios, mas também fotos e cartões postais que os familiares enviaram de Keidânia, até pouco antes do massacre. "Comecei a conversar com as pessoas que apareciam nas fotos. Foi como se elas me pedissem que aquela história fosse contada", diz o compositor gaúcho. Depois de quase um ano, quando as canções finalmente ficaram prontas, Levitan convidou o músico e jornalista Arthur de Faria para escrever os arranjos.

Salada russa
"Ele tem uma grande capacidade de lidar com música popular e erudita, sem nenhuma dificuldade. Por outro lado, eu também sabia que ele tinha conhecimento da linguagem da música klezmer", diz Levitan, referindo-se ao gênero musical da cultura iídiche da Europa Oriental, que os imigrantes judeus levaram para os EUA, no final do século 19. "O papel do Arthur nesse trabalho foi fundamental, um verdadeiro parceiro", afirma Levitan, elogiando os arranjos, que combinam instrumentos típicos da música klezmer (violino, acordeon, baixo, bateria e sopros), da música regionalista gaúcha (violão, acordeon e bombo legüero) e da música erudita (fagote e percussão clássica).

"A própria salada mista russa", diverte-se Faria, num delicioso texto incluído no encarte do CD, explicando que sua intenção nos arranjos foi fundir duas tradições: a da música dos pampas (mais exatamente a Argentina e o Rio Grande do Sul), que acolheram os judeus fugidos — ou não — do genocídio, e a tradição da música klezmer, que era cultivada na Lituânia e países vizinhos. "Meu pai e meu tio sempre tocavam esse tipo de música em casa", conta Levitan, cuja família é repleta de instrumentistas e cantores. Por sinal, foi com sua tia Elsa que o compositor teve aulas de canto, antes das gravações do disco, para melhorar o desempenho como intérprete.

Autor de cerca de 150 composições, só agora, aos 50 anos de idade, Levitan decidiu abandonar o trabalho de arquiteto para se dedicar mais à música. Os paulistas poderão conhecê-lo no palco, em breve, já que seu trabalho foi um dos selecionados no precioso mapeamento da produção nacional, organizado pelo projeto Rumos Itaú Cultural Música. No entanto, Levitan tem consciência de que seu novo trabalho, que foi parcialmente financiado pelo Funproarte, terá poucas chances de ser ouvido nas rádios.

"É um disco que não tem absolutamente nada de comercial", avalia o compositor, dizendo que pretende distribuí-lo, em breve, por meio da ABMI, a associação que acaba de ser formada por 31 selos independentes (leia matéria). Por enquanto, Minha Longa Milonga está sendo vendido em bancas de revistas e algumas lojas de Porto Alegre, mas interessados de outros locais podem encomendá-lo por meio do site do compositor: www.claudiolevitan.hpg.com.br