Coletâneas pescam raridades da MPB

Aracy de Almeida, Carlos Cachaça, Radamés Gnattali, Jards Macalé, Banda Black Rio, Dick Farney e Waldir Azevedo são alguns artistas resgatados pela série Enciclopédia Musical Brasileira

Rodrigo Faour
30/05/2000
De vez em quando, as gravadoras nacionais resolvem descarregar no mercado as maravilhas que ficam mofando em seus arquivos. Esses momentos de lucidez são raros, mas acontecem. Mesmo que não sejam reeditados discos com as capas originais, e sim em coletâneas, já é melhor do que nada num país que parece querer esquecer sua memória à força. Sim, porque há artistas do primeiro time da MPB que possuem pouquíssima coisa (ou nada) em catálogo. Para suprir parte desta lacuna inestimável, a Warner está lançando esta semana a série Enciclopédia Musical Brasileira, que reúne ases da MPB, sejam eles da velha guarda ou da atualidade, da música instrumental ou do pop, em fonogramas dos catálogos da Warner, da antiga Continental e até pinçados de outras majors como RGE e BMG.

A velha guarda está bem representada com Aracy de Almeida ou O Samba em Pessoa, como costumava ser chamada. Pérolas da MPB, como Quem Vem pra Beira do Mar, Quando Tu Passas por Mim, Bom Dia Tristeza se revezam com A Voz do Morto (que Caetano Veloso fez para ela) e, é claro, canções de Noel Rosa, como Feitiço da Vila, Fita Amarela e O X do Problema. Entre seus contemporâneos, há um disco conjunto com Os Reis da Voz, reunindo Orlando Silva (Lealdade), Francisco Alves (Onde o Céu É Mais Azul), Silvio Caldas (Velho Realejo), Carlos Galhardo (Rei Vagabundo) e o pioneiro Vicente Celestino, que começou na era da gravação manual, na qual só quem tinha muito dó de peito conseguia imprimir sua voz nos discos. Celestino está representado com Noite Cheia de Estrelas – aquela do "Noite alta, céu risooooonho/ A quietude é quase um soooonho". E relíquia das relíquias, um CD com Noel Rosa (por Noel Rosa) e Sinhô (por Mário Reis).

Na seara dos anos 40 e 50, temos os ícones precursores da MPB moderna, Dick Farney e Lúcio Alves reunidos num só CD, o que pode ser bom e ruim, porque nem sempre os fãs de um são fãs do outro. Naquele tempo, seus fãs só não se odiavam mais que os de Emilinha e Marlene. Mas, enfim... quem não tem cão, caça com gato. Por sinal, com dois gatos, porque na época ambos causavam frisson em suas admiradoras, especialmente Dick, que era a encarnação do galã. O CD abre com a gravação original da antológica Teresa da Praia (primeira composição de sucesso de Tom Jobim, de 1954, em parceria com Billy Blanco, que compuseram logo após a Sinfonia do Rio de Janeiro). Dick comparece com as versões originais de Marina, Copacabana, Outra Vez, Uma Loira, Alguém como Tu e A Saudade Mata a Gente. Lúcio, por sua vez, encara Valsa de uma Cidade, Sábado em Copacabana, Nova Ilusão, Idéias Erradas, Terminemos Agora e Amargura. Só sucessos. E ambos encerram o CD, novamente juntos com a rara Casinha Pequena.

Ainda da mesma época, temos discos de Lupicínio Rodrigues, interpretado pelo próprio e por seu alterego, ou melhor, sua altervoz, Jamelão. Porque se Lupicínio pudesse escolher possuir uma voz que transmitisse com perfeição as músicas de fossa que compunha, esta seria certamente a de Jamelão. Então, canções menos conhecidas do compositor gaúcho, com títulos sugestivos como Dona do Bar e Caixa de Ódio, cantadas pelo próprio, que revezam-se com os clássicos Nervos de Aço, Cadeira Vazia e Vingança na voz de seu melhor intérprete, Jamelão, também enfocado na coleção com um CD só para ele.

Da fossa profunda à fossa light dos anos 50, temos Luiz Bonfá que está em seu CD ora com seu violão (em Minha Saudade, esta com direito ao acordeom de João Donato, Chora Chorão, com o mesmo Donato e mais Jobim ao piano, entre outras) ora nas interpretações magníficas que celebrizaram sua obra por aqui naquela época – e que pertenciam ao cast da Continental naquela altura. É o caso de Nora Ney (De Cigarro em Cigarro), Agostinho dos Santos (Manhã de Carnaval), Dóris Monteiro (Engano), Dick Farney (Perdido de Amor, Canção do Vaqueiro e Sem Esse Céu), Lúcio Alves (Entre Nós) entre outros. Agora é só imaginar a Copacabana daquela época, sem poluição, sem assaltos e muitos amores destilados na mesas de bar. Bons tempos...

Do instrumental ao samba de raiz
Na ala exclusivamente instrumental, em fonogramas gravados na virada dos anos 50 para os 60, temos Radamés Gnattali e Severino Araújo – dois dos maestros mais atuantes da MPB. Radamés como arranjador de rádio e disco (o melhor de sua geração) e Severino, mais restrito à sua imortal Orquestra Tabajara. Ambos dividem um CD, repertório de clássicos. Samba de uma Nota Só, Agora É Cinza, Copacabana, No Rancho Fundo e Valsa Triste estão na seleção de Radamés. Severino e sua orquestra comparecem com o imortal samba de gafieira, Espinha de Bacalhau, mais Morena Boca de Ouro, Dora e até Chega de Saudade.

Os amantes do choro podem se deliciar com a parte da série dedicada ao gênero. Um dos CDs reúne o papa do gênero, Jacob do Bandolim e o grupo Época de Ouro. Jacob comparece com gravações raras dos anos 40, como Cabuloso, Treme-treme, Remelexo, Flamengo, Flor Amorosa, Glória e Salões Imperiais. E o Época de Ouro, formado nos anos 70, traz Noites Cariocas, Diabinho Maluco e até uma Evocação a Jacob. Até mesmo Waldir Azevedo foi lembrado pela série Enciclopédia Musical Brasileira. Todos os seus clássicos poderão ser ouvidos, como Brasileirinho, Delicado e Pedacinhos do Céu. Há ainda outros intérpretes para suas músicas, como Paulinho da Viola, César Faria e Raphael Rabello em Choro Negro, a eterna rainha do choro, Ademilde Fonseca, em Camundongo e Osmar (do Trio Elétrico) e Isaías (e seus chorões) em Vassourinhas.

A turma do forró não foi esquecida. Com fonogramas dos anos 50 e 60, Jackson do Pandeiro e Gordurinha foram escalados para um mesmo CD, com faixas de deixar os grupelhos de forró de hoje enrubecidos, tamanho é o talento da dupla. Do petardo Chiclete com Banana, passando pelo Mambo da Cantareira, a recém resgatada Vendedor de Caranguejo (via Gil) e outras menos manjadas como Qual é o Pó?, Oito da Conceição e Baiano Burro nasce Morto, o esquecido Gordurinha mostra ao que veio aos mais jovens. E o rei da divisão rítmica, Jackson do Pandeiro, nos diverte com as sempre oportunas Sebastiana e Forró em Limoeiro, e mais Vou de Tutano, Coração Bateu (regravada por Elba Ramalho, em 87), O Rei Pelé, Tambor de Crioula e Água com Leite.

A propósito do forró, o onipresente Dominguinhos também foi agraciado com um CD cheio de clássicos e participações superecléticas, como não poderia deixar de ser. Indo de Zezé Di Camargo & Luciano (Tenho Sede) a Nando Reis (Nós Dois de Testa), passando pelo impagável Genival Lacerda (O Pavio e o Lampião) e o rei Luiz Gonzaga (O Juazeiro e a Sombra). O disco apresenta gravações de diversas épocas, dos anos 70 aos 80.

Na sessão samba de raiz, temos o recém-falecido Carlos Cachaça, um dos fundadores da Mangueira, que finalmente ganha um disco com alguns dos minguados fonogramas que conseguiu gravar na vida. É uma oportunidade conhecer músicas diferentes do sambista com nome de aguardente, além das duas únicas que todo mundo conhece, Alvorada e Não Quero Mais Amar a Ninguém. É o caso de Amor de Carnaval, Todo Amor, Clotilde, Harmonia em Mangueira, Cabrocha e outras. Já Candeia, que produziu a maior parte de sua obra nos anos 60 e 70, e morreu precocemente em 78, comparece com os poucos sambas que conseguiu registrar em sua curta carreira fonográfica. Destaca-se Sou Mais o Samba (com a rainha Dona Ivone Lara), Maria Madalena da Portela (com Aniceto do Império) e alguns pot-pourris de sambas clássicos.

Da bossa nova ao funk

Da geração bossa nova, Baden Powell destila seu virtuosismo em seus afro-sambas, e mais chorinho (Odeon) e a Valsa Nº 1. O volume dedicado a Carlos Lyra contém quase todos os seus sucessos sessentistas, incluindo o Samba da Legalidade (com Zé Kéti). A gostosa Aruanda não está no CD de Carlos Lyra, mas, em compensação, integra o do maldito Geraldo Vandré. Seu CD vale como uma oportunidade para se dar conta que sua obra não se restringe a Disparada e Pra Não Dizer que Não Falei das Flores (ainda que as duas não tenham sido banidas do disco). Mas é interessante descobrir Hora de Lutar, Ladainha, Despedida de Maria e Canto do mar.

Da turma que iniciou seus trabalhos nos anos 70, temos pela primeira vez uma coletânea enfocando Jards Macalé, ainda que num CD em dupla com Luiz Melodia. E nada de chamá-los de malditos. Melodia, pelo menos, detesta o rótulo que o perseguiu a vida inteira. Macalé canta a famosa Negra Melodia, e ataca de sambista em números como A Flor e o Espinho, Bolinha de Papel, Para ver as Meninas, Exemplo, Acertei no Milhar e Luz Negra. Melodia comparece com a bela Decisão, e mais Negro Gato, Ilha de Cuba e outras que nem sempre se acha facilmente nas lojas. Da mesma tribo, Tom Zé também foi agraciado com uma coletânea. Todos os Olhos, São São Paulo e outras que o fã-clube do cantor conhece e que agora estão disponíveis a todos.

Da turma mais recente, há uma coletânea bem dançante de Sandra de Sá com a Banda Black Rio, juntos no mesmo CD. Pois pérolas como Maria Fumaça (da trilha sonora da novela Locomotivas, de 77), Na Baixa do Sapateiro ou Mr. Funky Samba da banda se unem a delícias de Sandra como Olhos Coloridos e Azul da Cor do Mar. Como arremate, o CD Rock 80 resgata alhos e bugalhos do rock Brasil. Das safadas Silvia e Beth Morreu (Camisa de Vênus), passando pelas nervosas Envelheço na Cidade e Gritos na Multidão (Ira!), o punk Garotos do Subúrbio (Inocentes) e o popinho light tipo Dublê de Corpo (Heróis da Resistência) e Preciso Dizer que te Amo (Leo Jaime). Façam suas escolhas e corram antes que tudo isso fique fora de catálogo por mais 200 anos.