De volta às trilhas do rock rural

Enquanto Flávio Venturini se reúne com o grupo O Terço, Sá, Rodrix & Guarabyra ensaiam o retorno definitivo

Julio Moura
21/09/2001
Quando a delirante bandeira woodstockiana refugiava sonhos e sonoridades da contracultura brasileira, parte da turma trocou o asfalto quente da repressão pelas estradas de terra da utopia comunitária. Da alvenaria lisérgica dos anos 70, sob os alicerces do folk e o transe progressivo, ergueu-se a casa encantada do rock rural. Trinta anos depois, alguns de seus mais emblemáticos arquitetos, o trio Sá, Rodrix & Guarabyra e a banda O Terço decidem, quase simultaneamente, voltar à ativa.

Separados desde 73, quando Zé Rodrix partiu para a carreira solo, levando o rock e deixando o rural para os companheiros, Sá, Rodrix e Guarabyra preparam para outubro o lançamento do álbum e DVD Outra Vez na Estrada, pela Som Livre. Gravado ao vivo, no Teatro Mars, em São Paulo, o trio soma uma nova fornada de canções aos clássicos dos ancestrais LPs Passado, Presente e Futuro ouvir 30s (72) e Terra (73).

O Terço, criado em 69, reativa sua formação clássica - Sergio Hinds (guitarra), Flavio Venturini (teclado), Sergio Magrão (baixo), Luiz Moreno (bateria). Os quatro ensaiam a gravação de um novo disco, previsto para novembro. As negociações estão adiantadas com uma gravadora paulista, identificada com a herança musical de Elis e Simonal, cujo nome a banda prefere despistar.

A idéia de reviver a formação de Criaturas da Noite (75) e Casa Encantada (76) começou a ganhar forma durante a turnê passada de Venturini. Os velhos amigos se reencontraram no palco do DirecTV, a convite do tecladista. "Olhamos um pra cara do outro e perguntamos: por que a gente se separou? Era a hora de voltar. O novo disco será gravado em estúdio e ao vivo, possivelmente no Credicard Hall. Mas Flavio continua com sua carreira solo e Magrão também não vai deixar o 14 Bis", explica Sergio Hinds, presente em todas as formações da banda, desde a fundação.

Somado ao lado acústico, das canções com viola e piano, vamos reviver os longos temas instrumentais. Em cena, o visual será pinkfloydiano, "com muitas luzes e efeitos", antecipa o baixista Sergio Magrão. Alem das já escaladas Criaturas da Noite, Flor de La Noche, Queimada, Quando Eu Vi Aquela Lua Passar, 1974 e Jogo das Pedras, Flavio prepara uma canção e um instrumental, Suite, especialmente para o reencontro.

"Tenho uma melodia nova, que vai receber letra de Ronaldo Bastos. Já o tema possui varias partes, com o mesmo sabor progressivo de 1974. Foi feito logo depois do Criaturas. Outro dia, comentei com o Sergio: não sei onde estava com a cabeça para lembrar desta musica. Ele disse: nos anos 70, bicho", diverte-se o autor de Nascente. Em 76, o LP Casa Encantada trazia no encarte uma carta de Luiz Carlos Sá, que traduzia bem a atmosfera. "Não vejo a hora de dar uma pilotada na Alfa nova do Sergio, caçar taturana com Magrão, tomar conhaque na padaria com Moreno. Depois iremos todos a São Mané da Serra, ver o urubu-rei cantar de madrugada", telegrafou. "Era uma fase natureba. Vivíamos em um sitio, no interior de São Paulo, que o pessoal chamava de Casa Encantada. Fiquei surpreso ao ver que ainda rola uma química interessante", constata Venturini, principal responsável pelas composições do grupo.

Alem de socializar perambulações interioranas, os integrantes do Terço desenvolveram uma bem sucedida cumplicidade autoral com Sá e Gutemberg Guarabyra. Flavio é parceiro de Sá, em Criaturas da Noite, e de Guarabyra, em Pássaro e Espanhola. Sergio Magrão e Sá fizeram juntos o hit Caçador de Mim. Já Hinds e Sá compuseram Terras do Sul, gravado no primeiro disco da dupla, sem Rodrix.

Enquanto o projeto do Terço orbita em universo paralelo ao solo das carreiras, Rodrix garante que a volta do trio e definitiva. Eles se reuniram no inicio do ano, para uma apresentação no Rock in Rio. Dai em diante, os três abdicaram de seus projetos pessoais para viabilizar a reunião. Rodrix chegou a renunciar aos jingles, ha décadas sua atividade mais constante. "Deixei de escrever por encomenda para compor por inspiração. Ao nos reunirmos, as musicas voltaram a sair com a prolixidade e proficiência de há 30 anos" comemora Rodrix, que depois de deixar o trio fundou o anárquico Joelho de Porco.

A proficiência aludida pelo autor de Casa no Campo inclui canções como Mestre Jonas, Canção da Estrada, Hoje É Dia de Rock, Pindurado no Vapor, Blue Riviera e Anos 60, entre dezenas de saborosos e bem humorados manifestos da contracultura brasileira. A julgar pelos títulos das novas (Outra Vez na Estrada, Aqui se Faz Aqui se Paga, No Tempo dos Nossos Sonhos e Jesus Numa Moto), os óculos da esperança mantém-se intactos. Sob lentes bifocais.

"Vi um cara passar de moto na Avenida Paulista, paramentado como um Hell's Angel. Quando parou no sinal e tirou o capacete, era um senhor com pinta de gerente de banco. O contraste inspirou Jesus Numa Moto. No Tempo dos Nossos Sonhos é um reflexo de quem viveu os anos 60", relaciona Rodrix.

Compartilhando do entusiasmo do parceiro, Sa assume a analogia com o som de Crosby, Stills and Nash. "Só faltou descobrirmos o (Neil) Young. o Zé sempre foi o lado mais urbano do grupo. Eu e Guarabyra nos aproximamos mais do folk e da MPB. Como trio, nossas possibilidades são ilimitadas", vislumbra Luiz Carlos Sá. O cantor, entretanto, não se entusiasma com o termo rock rural. "A idéia de rock rural se diluiu, houve preconceito. Quando Zé deixou o grupo, eu e Guarabyra fizemos discos solo que ficaram arquivados na gravadora (EMI). As gravações de Homem de Neanderthal e O Povo do Ar, minha com Rodrix, permanecem inéditas", indica Sá. O show de lançamento de Outra Vez na Estrada acontece nos dias 19 e 20 de outubro, em São Paulo, no Teatro do Tuca (mesmo palco do ultimo show, em 1973, lembra Sa). Depois é a vez do Canecão, no Rio, de 8 a 11 de novembro, antes de partirem para a turnê nacional. "Estou de volta à vida que deixei há trinta anos. Ainda tenho fôlego", desafia Rodrix.