Diretamente dos terreiros para todo o Brasil, via Tóquio

Finalmente saem em CD no Brasil três discos das velhas guardas da Portela e Mangueira produzidos para o mercado japonês – dois deles na década de 80

Nana Vaz de Castro
11/01/2001
Muito antes da recente febre das velhas guardas do samba, o visionário produtor japonês Katsunori Tanaka, apaixonado pelo gênero tipicamente brasileiro, se deu conta da importância de um registro fonográfico de alguns dos mais belos sambas de morro já compostos, e tratou de colocar em estúdio os dois grupos de sambistas que se reuniam na época com alguma organização: as velhas guardas da Portela (em 1986) e da Mangueira (1989), duas das mais antigas e tradicionais escolas de samba cariocas. Até então, tudo o que havia era a iniciativa de Paulinho da Viola, que em 1970 reuniu os mestres portelenses e produziu o histórico LP Portela Passado de Glória ouvir 30s (relançado em CD) com os mais antigos integrantes de sua escola de coração.

O resultado da empreitada de Tanaka foram dois discos imprescindíveis a qualquer discoteca de samba que se preze: o portelense Doce Recordação ouvir 30s (que chegou a ser fabricado aqui pela Kuarup, em LP, por algum tempo) e o verde-e-rosa Mangueira Chegou ouvir 30s . No pacote lançado agora pela gravadora Nikita (que tem em seu catálogo Velha Guarda da Mangueira e Convidados, de 1999) vem ainda mais um disco produzido para o mercado japonês: Velhas Companheiras ouvir 30s , gravado no ano passado com o trio de bambas Nelson Sargento, Guilherme de Brito e Monarco, e participações de Cristina Buarque, Wilson Moreira, Esther e a Velha Guarda da Portela. "Velhas Companheiras" é como as antigas escolas de samba se tratam mutuamente. Hoje, além de Portela e Mangueira, em plena atividade, as velhas guardas do Salgueiro e Império Serrano se organizaram e estão fazendo shows e gravando discos.

"Ainda não morremos"
A história toda remonta a meados dos anos 80, e a "culpa" na verdade é dos irmãos e músicos Beto e Henrique Cazes, que pediram a Cristina Buarque para levar o amigo japonês até Oswaldo Cruz para conhecer os sambistas da antiga. "Eles ficaram meio ressabiados, porque uma porção de gente já tinha ido lá e prometido gravar disco, mas não acontecia nada. Entre o dia em que levei o Tanaka na Portela e a gravação do disco passou bastante tempo", lembra Cristina. Segundo Tanaka, uma das motivações para gravar o disco — fora o fato de já estarem 16 anos sem gravar — foi a letra do Hino da Velha Guarda, de Francisco Santana, que diz "Estamos velhos/ mas ainda não morremos". "Achei que eles mereciam e que já passava da hora", diz o produtor no texto do encarte de Doce Recordação.

Segundo Cristina, a linha que a Velha Guarda vem mantendo desde então é a mesma. "A diferença daquele disco para o Tudo Azul (2000) é, basicamente, que já morreu muita gente", diz Cristina, referindo-se a mestres como Manacéa, Chico Santana e Alberto Lonato. "É muito importante estarem saindo agora coisas com essas pessoas que já morreram", diz ela, que canta Vaidade de um Sambista (Chico Santana) e Quando o Samba Acabou (Noel Rosa) em Velhas Companheiras.

Monarco, tido como guardião da história da Portela, faz coro: "Nesse disco que está sendo relançado agora e em todos os outros sempre seguimos a mesma linha, que é a de nossos mestres, desde Caetano, Rufino e Paulo da Portela, que são os três baluartes da Portela". Monarco lembra ainda que quando viram que as intenções de Tanaka eram sérias, a Velha Guarda, Manacéa à frente, foi consultar o padrinho do grupo, Paulinho da Viola, que deu a bênção para o projeto.

Tanto Cristina quanto Monarco são unânimes em afirmar que ainda há um grande volume de sambas inéditos na Portela. "O baú é enorme e é de ouro", garante Monarco. "Para selecionarmos o repertório do Tudo Azul passamos por mais de 200 músicas ao lado da Marisa [Monte, que produziu o disco]". Cristina corrobora: "Quando eles fazem shows cantam sempre as mesmas músicas porque já estão ensaiadas, mas se futucar tem muita coisa boa escondida".

Aprendendo português com Cartola
A relação de Tanaka com a Mangueira também é visceral, a ponto de ele dizer ter decidido aprender português por causa do primeiro disco da Cartola, de 74. Queria vir ao Brasil entrevistá-lo, mas a morte do compositor pegou o japonês já de malas prontas. Ele veio mesmo assim, e seis anos depois da morte de Cartola conheceu a Mangueira pelas mãos do portelense Monarco, ficou amigo de Carlos Cachaça e assistiu à formação da Velha Guarda da escola, pelos idos de 1987, sob a batuta de Aluísio Dias, que morreria pouco tempo depois das gravações. Em 89 conseguiu levar a turma para gravar pela primeira vez sambas de Cartola, Sargento, Cachaça e outras figuras históricas como Aluísio Dias, Babaú (que solaram músicas de sua autoria) e Padeirinho. O instrumental ficou a cargo dos músicos "da casa" (a Mangueira), com algumas poucas participações especiais.

Mais de dez anos depois, Velhas Companheiras traz de volta — via Japão — a raiz do samba carioca, mesmo sem apresentar um repertório desconhecido. Com arranjos mais camerísticos, com direito a clarinete, flauta, tuba e clarone, os sambas ganham vida nova na voz dos cada vez mais jovens Nelson Sargento (76 anos), Guilherme de Brito (79) e Monarco (67).

Vale ressaltar que, além de Tanaka, outra figura presente nos três discos é o violonista e arranjador Paulão 7 Cordas, responsável também pela direção musical de Tudo Azul. Autoridade incontestável no assunto, Paulão (que atualmente é o diretor musical de Zeca Pagodinho) dá unidade e rumo aos discos, mesclando sensibilidade, respeito e alto nível técnico, além da notória experiência em dirigir músicos em estúdio.

A gravadora Nikita, que parece estar querendo conquistar esse nicho de mercado, marca muitos pontos trazendo esses discos para o Brasil, país das distorções, em que é preciso ir ao outro lado de mundo para buscar o que há de mais visceral.