Doris Monteiro: 50 anos de bossa e charme

Uma das mais importantes cantoras da transição do samba-canção para a bossa nova, ela desmente que tenha participado do Sinatra-Farney Fã-Clube e recorda que foi subestimada pelo maior crítico de sua época quando gravou seu primeiro 78 rpm

Rodrigo Faour
19/01/2001
Há exatos 50 anos, surgia uma cantora diferente numa MPB dominada por vozeirões e arranjos grandiloqüentes. Era a pequena Adelina Doris Monteiro, que em 1951 invadiu as rádios de todo o Brasil com o samba-canção Se Você Se Importasse (de Peterpan). Ela tinha 16 anos de idade e cumpria um agenda de gravações na Todamérica e de apresentações em rádios e boates ao lado de sua mãe, munida de um alvará do Juizado de Menores. Uma das pioneiras, ao lado de Nora Ney e Carmen Costa, de um estilo diseuse de cantar, Doris ainda por cima era muito bonita e acrescentava à voz um charme muito comum às intérpretes francesas, como Luciene de Lilis - que a inspirou quando, aos 14 anos, decidira tentar a sorte no programa da Rádio Nacional Papel Carbono, de Renato Murce. Depois que ganhou o primeiro lugar, nunca mais parou de cantar, apesar de ser filha de uma família humilde, de portugueses, cujo pai era porteiro de um prédio em Copacabana (RJ).

Sucesso com seu 78 rpm de estréia, Doris foi sendo solicitada para a TV, o cinema (foi premiada logo em seu primeiro papel, em Agulha no Palheiro, de Alex Viany) e por diversas gravadoras, onde registrou uma discografia respeitável. A partir de 1955, divulgou a obra do compositor Fernando César, que lhe deu diversos sucessos, como Dó-Ré-Mi, Graças a Deus, Joga a Rede no Mar e Vento Soprando. Em 56, Billy Blanco lhe deu Mocinho Bonito, que inaugurou sua fase de cantora de sambas sincopados, aquela com que brilharia nos anos vindouros. Não por acaso, quando a bossa nova apareceu, Doris se sentiu em casa - canções suaves e sensuais eram tudo que sua voz precisava para brilhar.

Nas décadas seguintes, a cantora primou pelo repertório bem escolhido, que lhe conferiu muito prestígio no meio da MPB. Além de tudo, Doris não foi apenas uma cantora avançada, da transição do samba-canção para a bossa nova. Foi também uma mulher à frente de seu tempo, sempre impondo seu temperamento seja como artista, filha ou esposa, num tempo em que as mulheres tinham papéis muito marcados na sociedade, sempre à mercê da vontade dos homens. Dispensou a maternidade e livrou-se de todos os namorados e maridos que a passaram para trás.

Em entrevista a CliqueMusic, Doris Monteiro narra passagens curiosas de seus 50 anos de carreira. Explica que sempre detestou canções muito dramáticas - comuns à época que iniciou sua carreira - como Ronda (Paulo Vanzolini), que chegou a gravar apenas por imposição de uma gravadora. Conta que recebeu uma crítica negativa por seu primeiro disco que quase acabou com sua carreira, não fosse a excelente receptividade do público. Explica, emocionada, como o pai conservador consentiu que ela fosse cantora. Confessa que mesmo sendo muito fã de Dick Farney e Lúcio Alves, jamais pertenceu ao Sinatra-Farney Fã-Clube, apesar de livros, como Chega de Saudade, de Ruy Castro, afirmarem o contrário.

Foto: Rodrigo Faour
Doris Monteiro em sua casa
Atualmente, Doris sonha em voltar aos estúdios e leva sua carreira como pode. Continua se apresentando sempre que é convidada, como no último réveillon, em show promovido pela prefeitura, onde também atuaram Emilinha Borba, Ellen de Lima, Marlene, Roberto Paiva, Roberto Silva, Adelaide Chiozzo, Dona Ivone Lara e outros. Seus discos continuam sendo relançados, ainda que apenas fora do Brasil (aqui, só está em catálogo Doris Monteiroamostras de 30s, coletânea das primeiras gravações da cantora, na Todamérica, lançada ano passado pela InterCD). Informada por nossa reportagem, Doris surpreendeu-se com alguns de seus discos que foram reeditados no Japão, dos quais jamais viu um tostão em sua conta bancária. Franca, divertida e sempre charmosa, a cantora resume seus 50 anos de estrada com exclusividade para os leitores de CliqueMusic.

CliqueMusic - Que tipo de música Doris Monteiro ouve hoje em dia?
Doris Monteiro - Não tenho hábito de ouvir rádio. A programação está muito ruim, é raro ter a opção de boa música. Nada contra axé, bundas e padres... mas está difícil até de a gente gravar... Eu não gosto de pagode, de música sertaneja... Se eu compar algum disco atualmente é jazz e, entre os brasileiros, de Johnny Alf, Leny Andrade e Ivan Lins... Se bem que eu ganho os CDs deles. Sabem que eu gosto e eles me presenteiam. Acho muito errado os programadores resolverem só botar aquele tipo de música para tocar nas rádios. Quem gosta de outro tipo de música, vai rodando o dial até que desliga o rádio.

CliqueMusic - Soube que você é chegada num carteado...
Doris Monteiro - Adoro jogar tranca, acho que é uma terapia maravilhosa. É uma espécie de biriba. Jogo às terças-feiras, com três amigas, e nos fins-de-semana quando não tenho show. Mas jogo a 50 centavos (risos). É uma terapia barata. Na última terça, por exemplo, ganhei dois reais (risos). Também adoro futebol. Sou vascaína e acho uma injustiça o que andam dizendo do (presidente eleito do clube) Eurico Miranda pois há alguns anos houve um acidente no Maracanã que matou várias pessoas e nunca incriminaram ninguém...

CliqueMusic - Como é ser uma cantora veterana no Brasil? Você continua fazendo shows, mas está difícil de sobreviver?
Doris Monteiro - Cantei no réveillon. Foi uma pena que estivesse chovendo. Mas assim as pessoas vêem que você está atuante, inteira. Estou fazendo 50 anos de carreira, então muita gente pensa: "Cinqüenta anos? Ela deve estar caquética de velha, andando de cadeira de rodas" (risos). E quando me vêem desfazem a imagem, apesar de que muitos se lembram que eu comecei aos 16 anos, com aquela trança e a mãe do lado. O que me incomoda é que muita gente me pára na rua e diz: "Nossa, Doris, é você mesmo? Estou com saudades, você não canta mais, não está gravando? A gente procura discos seus e não acha..." É por isso que eu implico com o Brasil. Tem gente que diz: "Ah, Doris, você não é patriota..." Realmente, não sou. Não tenho motivos. Aqui nada funciona.

CliqueMusic - Você apurou a história dos seus CDs que os japoneses relançaram sem lhe pagar os direitos autorais?
Doris Monteiro - Sim. A Philips (hoje Universal Music) me paga e me manda a numeração do que foi vendido. Sei que tem discos meus vendidos na Austrália, Holanda, Portugal, Japão... Agora, sobre os relançamentos que os japoneses fizeram das matrizes da Odeon, eu nem sabia. Aliás, nem os advogados da EMI brasileira sabiam. Eles foram na loja Modern Sound, aqui em Copacabana, e comparam como prova de que o Japão não estava pagando os direitos - nem a mim, nem a eles.

CliqueMusic - Como é que você conseguiu ser cantora, numa época de tanto preconceito com mulheres artistas? Como foi a repercussão entre a sua família?
Doris Monteiro - Eu morava na Rua Carvalho de Mendonça, onde meu pai era porteiro de um prédio. A minha mãe era faxineira e eu a ajudava. Uma vez estávamos limpando um apartamento no 12º andar, e eu, então com 13 anos, cantei Caminhemos, do Herivelto Martins, que era sucesso na voz da Dalva de Oliveira. Mas cantei do meu jeito, com essa voz pequena e colocada que tenho. Foi quando a vizinha, Dona Jurema, disse para minha mãe: "Dona Ana, a gente devia levar a Adelina para cantar no Papel Carbono." Ela quase teve um filho japonês quando escutou aquilo porque ser artista há 50 anos era um crime. Meu pai disse que me mataria se eu fizesse isso, ele estava dando duro para que eu estudasse. Então, dei a idéia para minha mãe de irmos escondidas, já que ele dificilmente ouviria o Papel Carbono. Como na época só existiam cantoras como Linda e Dircinha Baptista e Dalva de Oliveira, com vozeirão, e a norma do programa era copiar um artista de sucesso, fiz a cópia da francesa Luciene De Lilis e tirei primeiro lugar. Ela fazia sucesso na época com Bolero.

CliqueMusic - Depois do Papel Carbono, como conseguiu tão rapidamente ingressar na Rádio Tupi?
Doris Monteiro
- A partir do meu sucesso no Papel Carbono, fui convidada pelo Renato Murce a cantar em outros de seus programas, como Campeão dos Campeões e Pescando Estrelas (da Rádio Mundial), onde cantou Dolores Duran. Lá conheci o cantor Orlando Correia, que disse para minha mãe: "Ela tem uma voz muito agradável". Apesar do estilo avesso ao meu, ele gostou de mim. Perguntou à minha mãe se eu nao podia fazer um estágio na Rádio Mundial. Então cantei na lá durante um mês com a orquestra do Napoleão Tavares.

O (cantor) Alcides Gerardi morava no mesmo prédio em que meu pai era porteiro. E como ele era da Rádio Tupi, que era melhor que a Mundial, infernizei a vida dele para que me arrumasse uma chance para fazer um teste lá. Um dia meu pai ficou sabendo e foi logo dizendo: "Não adianta pedir a ele porque não vou deixar você cantar em rádio". Enfim, o Alcides cedeu e fui fazer um teste com Almirante e Aldo Vianna - pai do (locutor) Galvão Bueno - e fui contratada pela Tupi. Eles adoraram minha voz porque eu era diferente de todo mundo. Depois, ela ficou mais suave ainda. Mudei, criei mais técnica e fiquei com voz ainda mais sensual.

CliqueMusic - Como foi que seu pai acabou cedendo, deixando você levar adiante sua carreira de cantora?
Doris Monteiro - Meu pai aceitou porque minha mãe ia junto comigo em todos os meus compromissos. Eu disse para ele: "O senhor imagina que eu vá ser advogada, médica e professora... nessas profissões, vou andar sempre sozinha pelo mundo, porque minha mãe não vai poder me acompanhar. E na carreira de cantora, pelo menos, minha mãe vai poder ir sempre junto. Deu certo! Depois, quando comecei a fazer muito sucesso, ele ficou apaixonado, fazia questão de dizer que era o pai da Doris Monteiro.

CliqueMusic - Afinal, você fez parte do Sinatra-Farney Fã-Clube?
Doris Monteiro - Não. Nunca freqüentei. Não sei da onde tiraram essa história. Naquela época, nem sabia que existia. Era fã, mas nunca pertenci a ele. Já vi esse comentário a meu respeito em algumas matéiras mas nunca me dei ao trabalho de desmentir porque não é uma coisa que deponha contra mim. O curioso é que desde os 10 anos de idade eu era fissurada no Dick e no Lúcio. Todo dia descia do prédio em que eu morava e pedia para o gerente de uma loja de discos que havia ali para tocar os discos dos dois.

CliqueMusic - Quem gostava de Dick e Lúcio era um pessoal da classe média alta, mais sofisticado. Como é que você, sendo de origem humilde, desenvolveu esse gosto?
Doris Monteiro - É uma coisa intuitiva. Sempre gostei de jazz, de cantoras como Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald. Nunca fui fã de nenhuma cantora brasileira. Só mais tarde, de Elis Regina, mas isso muito mais tarde. Da cantora, não da pessoa, que era terrível.

CliqueMusic - Você teve muita sorte no começo de sua carreira, para emplacar logo de cara e receber um monte de convites...
Doris Monteiro
- Mas não era só o fator sorte. As coisas naquela época fluiam normalmente. Você não tinha que implorar às pessoas para tocarem suas músicas. O Se Você se Importasse estourou sozinho. Fiz entrevistas, mas nao precisei ficar caitituando. A coisa acontecia normalmente. Fui uma pessoa de sorte. Estava na Tupi quando o Almirante me chamou e disse que o Arnaldo Schneider da Todamérica queria gravar um disco comigo. Tinha duas músicas para eu escolher: Se Você se Importasse ou Não Tenho Você - que acabou estourando com a Ângela Maria. Ou seja, se eu tivesse gravado a outra música, teria feito sucesso do mesmo jeito. A sorte estava do meu lado.

CliqueMusic - Você foi parar bem cedo no cinema, não só com os videoclipes da época - como a maiora dos cantores - mas atuando realmente como atriz...
Doris Monteiro
- Fiz oito filmes. Tudo começou quando recebi uma ligação do Alex Viany. Ele tinha visto uma reportagem minha e achou que o meu tipo físico era o que ele precisava para viver uma menina do filme Agulha no Palheiro. Em 1953, eu tinha de 18 para 19 anos, mas aparentava menos idade. Fui com minha mãe até seu encontro, na Rua das Laranjeiras, conversamos e ele me fez uma série de perguntas. A conversa foi ótima, daí eu perguntei: "Olha, quando venho fazer o teste para atuar?". Ele deu uma gargalhada e respondeu: "Você não precisa fazer teste. Você é exatamente o que eu quero para o filme. É uma menina extrovertida, inteligente..." Só sei que fiz o filme e ganhei um prêmio de melhor atriz do ano. Eu não cantava nesse filme, quem cantava era a Ângela Maria. Fazia o papel de uma garota travessa. Depois, em Rua sem Sol, a Ângela também cantava e eu fazia uma cega, filha da Glauce Rocha. Acabava o filme indo com o Carlos Alberto Soares num navio, onde iria fazer supostamente uma operação em Nova York, para ficar boa e voltar a enxergar. No filme De Vento em Popa fazia a mocinha, contracenando com Cyl Farney. Era sobrinha da Zezé Macedo, que tinha muito dinheiro. Participavam também Sonia Mamede, Oscarito e Grande Otelo. Nesse filme, eu cantava também... Dó-ré-mi e Mocinho Bonito. Fiz ainda O Espetáculo Continua, com John Herbert, no qual cantei Chove Lá Fora e Eu Não Existo sem Você, Carnaval em Caxias e Copacabana Palace.

CliqueMusic - Você sofreu algum tipo de preconceito no começo da carreira por ter uma voz pequena?
Doris Monteiro - Houve uma coisa na minha vida que foi marcante: a crítica ao meu primeiro disco, Se Você Se Importasse, feita pelo Silvio Túlio Cardoso, que tinha uma página em O Globo e era super conceituado. Ele escreveu que não daria zero porque, afinal de contas, eu tinha tido o trabalho de gravar e a minha intenção ele via que era boa. Mas que eu continuasse estudando no Pedro II, porque eu jamais seria cantora. Que não iria acontecer nada com meu disco. Fiquei arrasada, chorei. Mas graças a Deus a música estourou, porque isso poderia ter sido um trauma. Em 1955, quatro anos depois, ele teve uma maneira elegante de se retratar. Me deu uma medalha de ouro, que recebi no Teatro Municipal, pela música Eu e o Meu Coração, que já era considerada uma música moderníssima na época.

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