Dorival Caymmi: uma obra gigante em miniatura

Mestre da MPB é homenageado com caixa de CDs que reúne os 48 anos de gravações na Odeon. Com muita vitalidade e lucidez, aos 86, ele frisa que nunca fez música com objetivo comercial e que sua inspiração é natural

Rodrigo Faour
08/12/2000
“Me espanto e me encanto com a tecnologia. Quem poderia imaginar, 50 anos atrás, uma quantidade de canções, de momentos de beleza, reunidas numa caixa desse tamanho, que podemos pegar com uma das mãos?”. Quem fala é o eterno muso baiano da MPB, Dorival Caymmi, com seus 86 anos de idade, mas que há um bom tempo parece não envelhecer. A caixa à qual ele se refere é Caymmi Amor e Mar (o título foi escolhido pelo próprio cantor e compositor), que a EMI acaba de lançar no mercado.

Nela, há sete CDs que resgatam todos os fonogramas originais de Caymmi registrados na Odeon, entre 1939 e 1987. Seis CDs no formato dois Lps em um CD trazem os álbuns originais do baiano na companhia, incluindo, como bônus, as faixas dos raríssimos 78 rotações que ele gravou desde que começou sua carreira, nos anos 30, com Carmen Miranda cantando O que É que a Baiana Tem?. Completa o pacote um CD com diversos ases da MPB interpretando suas canções – várias das quais ele jamais gravou. E o encarte ainda traz diversas pinturas e ilustrações assinadas pelo próprio Caymmi.

Produzida por Carlos Alberto Sion, a caixa de CDs conquistou o coração do velho baiano. “Ela é de muito bom gosto, de categoria. É um trabalho tão bonito, tão claro, que não tem que se acrescentar mais nada, pois seria absurdo. Foi muito bem pensado e organizado e realizado”, elogia. Apesar de não ter tido tempo de ouvi-la, pois a ganhara na véspera, Caymmi afirma que se lembra de todas as músicas que estão nela. Mas não revela preferência por nenhum dos discos em especial.

O que Caymmi faz questão de deixar claro é que, durante toda sua carreira, nunca fez músicas com objetivos comerciais. “Não faço nada para representar o que sinto. Apenas sinto. Lá dentro, estou eu, comigo mesmo. Fico sentado, cômodo, e ali aparece a vida rolando pela minha frente. Tudo o que fiz foi sem indústria nem comércio de música, foi natural. Era um jovem que fazia músicas pelo prazer. Sem perspectiva de uma vida de rico, caso no futuro eu fizesse sucesso”, explica. Ao comparar a atual música baiana com a que criou, ele mostra como seu processo de criação era radicalmente diferente do que se vê hoje. “Não sou o criador de canções praieiras. Aconteceu naturalmente. Aconteceu por causa daquela preguiça gostosa de ver o mar, o horizonte, os azuis se encontrando. Aquela grandeza romântica, o nascer do sol... Não foi à procura de um gênero, da indústria, de um sucesso”.

Bonina
Caymmi não gosta de criticar a nova geração de intérpretes baianos. Frisa apenas que a Bahia de sua memória não tem esses gêneros específicos, como axé music ou samba-reggae. “É claro que o jovem precisa desse recurso, da renovação. Mas eu conheci uma Bahia natural, de samba-de-roda. Havia o rebolado da baiana, a mão nas cadeiras. E se cantava e dançava aquilo sem estar se cobrando nada e nem pedindo a ninguém para fazer aquilo. É a minha terra, com sua própria voz. Atualmente, se faz uma música com algo de Caribe e do americano. Aquela Bahia que eu conheci não tem nada a ver com esta. Continuo apaixonado pelo jeito do povo da minha terra e guardando aquelas boas lembranças”. Até mesmo fora do âmbito musical, ele anda estranhando muito a Bahia. “Até o nome da flor Bonina sumiu. Procurei na Bahia, há pouco tempo, essa flor linda, sem cheiro. Dizem que já teve e não existe mais”, lamenta, com seu jeitão zen.

Parafraseando seu samba Saudade da Bahia, Caymmi explica como funciona hoje seu processo criativo. “A gente faz o que o coração dita. Não componho mais com aquela freqüência. Peguei o violão esses dias, toquei um pouco e me vieram algumas idéias. Tudo acontece quando aparece alguma coisa poética na cabeça. Hoje, a vida tem outro sabor, às vezes não tem os momentos prazerosos, mais tranqüilos de outras épocas. Seja como for, estou pensando sempre na minha vontade e não no que os outros querem que eu faça. Não tenho objetivo de fazer lançamentos novos. Essa fase passou. Naturalmente, as músicas podem aparecer. Sou a própria espontaneidade”.

Caymmi diz que sua rotina atual está bastante alterada por conta dos problemas de saúde de sua esposa, e até mesmo os seus – teve de extrair um rim, no ano passado, e também sofre de catarata. Ele também diz que o barulho que ronda o Rio de Janeiro atualmente também interfere em seu bem-estar. Em contrapartida, explica que não deixa de ouvir música, ainda que a seu modo. “Não tenho mais hábito de pegar o aparelho e colocar um CD. Me dá uma preguiça louca de mexer nele! Mas continuo gostando muito de música erudita. Digo isso sem nenhum pedantismo. Achei uma pena a rádio Opus90 – dedicada ao gênero – ter se extinguido. Mas hoje, quando tenho a oportunidade, vou a meu quarto e coloco na Rádio MEC. Essa coisa de grandeza orquestral e musical é uma coisa que gosto demais - sou apaixonado pela música erudita. Gosto de todos os compositores modernos, aceito-os mais que os modernos populares, mas também não abro mão de Beethoven, Bach...”, enumera.

O compositor também adora ler sempre que a vista permite – e dá suas sugestões. “Aconselho a vocês que procurem ler o Rio de Janeiro do tempo do João do Rio. Ele escrevia crônicas de reportagens do início do século 20. Ele apaixona.”

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