Durval Ferreira: a bossa nova do além-túnel

Depois de um tempo trabalhando como produtor, o violonista e compositor de Pilares, autor de sucessos como Estamos Aí, espera oportunidade para gravar suas novas músicas

Tárik de Souza
17/07/2000
Nem toda bossa nova saiu dos apartamentos da zona sul carioca. Nascido no subúrbio de Pilares, e criado na Vila Isabel de Noel Rosa e Johnny Alf, Durval (Inácio) Ferreira co-autor de clássicos da bossa como Estamos Aí, Batida Diferente, Tristeza de Nós Dois, Moça Flor, Chuva, começou a interessar-se por música ouvindo o bandolim tocado pela mãe e os conjuntos regionais das festinhas caseiras onde o irmão pontificava como seresteiro. Ele se lembra de trocar figurinhas na praça Duque de Caxias, na Vila, com outro inovador, João Donato que encaixava seu acordeon modernista na orquestra de Valdemar Spillman. "Ele ficava tocando com a gente nos bares e sempre se atrasava, vinha um táxi buscá-lo", diverte-se.

Também faziam parte da turma Adalberto Castilho, o Bebeto, mais tarde responsável por baixo e flauta (além de solos vocais muito elogiados) do Tamba Trio ao lado de Luiz Eça e Helcio Milito. Carlinhos, irmão de Bebeto, era o titular do violão da patota, um dia substituído por Durval. "Comecei ouvindo a MPB de raiz na rádio Nacional, Orlando Silva, Chico Alves e fui caminhando para Geraldo Pereira, Trio Surdina, Garoto, Valzinho. Fui subindo na escala harmônica", compara. Contrapondo-se ao célebre ninho de Nara Leão na Avenida Atlântica onde se reunia a nata da bossa, Durval diz que o movimento também se concentrava na casa do empresário e baterista Everardo Magalhães, no Andaraí. "Ele emprestava o instrumento para a gente e nas reuniões aparecia até o João Gilberto numa época em que o Lúcio Alves ainda morava na 28 de setembro, na Vila", situa.

Mas foi quando mudou-se para a praça São Salvador, no Flamengo, em 1958, que Durval conheceu o parceiro decisivo, o gaitista Maurício Einhorn. "Ele me aplicou de Stan Kenton e George Shearing. Não posso negar minha influencia do jazz. Ouviamos Charlie Parker sem parar", confessa. Logo nasceu o manifesto deste crossover, Sambop, óbvio casamento de samba e a corrente bebop do jazz, em oposição à influência da ala cool que seguia o trompete/vocal sem vibrato de Chet Baker. "Essas primeiras músicas que fizemos, como Estamos Aí, Batida Diferente, Tristeza de Nós Dois não tinham letra, eram como temas de jazz, instrumentais. Só mais tarde escrevi os versos ou chamei parceiros", historia.

Gravado inicialmente por Claudette Soares e Leny Andrade, Durval acabou cruzando o túnel. Foi tocar com o Samba Rio ("depois é que virou Bossa Rio") de Sérgio Mendes, no Beco das Garrafas, e acabou participando da abertura do histórico concerto da bossa nova no Carnegie Hall, em 1962, além de gravar com o monstro sagrado do sax Cannonball Adderley (1928-1975). Considerado o George Green da bossa, Durval orgulhou-se de seu calibrado violão de centro ter sido destaque no disco de Mendes/Adderley, onde teve quatro de suas composições escaladas, incluindo a obscura Joyce's Samba.

O mesmo violão foi ainda o quarto elemento dos primeiros discos do Tamba Trio, atuou no grupo dançante do organista Ed Lincoln e lastreou seu próprio conjunto Os Gatos, titulado a partir do apelido "olhos de gato" da infância. Era um selecionado instrumental (com uma certa "Betty" Carvalho nos backing vocals) integrado por Eumir Deodato (piano, arranjos), Wilson das Neves (bateria), Paulo Moura (sax-alto), Norato e Maciel (trombones) que desenvolvia um macete sonoro, o uníssono da guitarra (de Neco) com as flautas de Meirelles e Copinha. "Era baseado num grupo americano, o Liquid Sound, que usava este tipo de instrumentação", entrega Durval.

A influência externa assumida acabou devolvida no grande número de jazzistas que (re)gravaram suas composições. Do vibrafonista do Modern Jazz Quartet Milt Jackson ao guitarrista Wes Montgomery, o flautista Herbie Mann, a cantora Sarah Vaughan e o duo Mitchell & Ruff, entre outros. De compositor e intérprete refinado, Durval também passou a pragmático produtor e diretor artístico de gravadoras. Ficou nove anos na pequena CID, onde procurou orientar o catálogo para "discos de mercado". Gravou de Nana Caymmi ("foi lá que ela lançou o Beijo Partido do Toninho Horta") e Emílio Santiago a Baiano e os Novos Caetanos com os personagens popularizados por Chico Anísio e Arnaud Rodrigues, a série Explosão do Samba e até o humorista Tião Macalé, o Nojeeeento. "Era um disco junino, o Arraiá do Nojento, ele cantava cercado de um coral de crianças, incluindo a minha filha Amanda. Vendeu tanto que ele comprou um apartamento. E nem precisava pintar a falha caipira nos dentes da frente que ele não tinha mesmo", brinca o produtor.

Durval passou ainda pela antiga Philips (atual Universal), onde produziu o Jovem Guarda/brega Marcio Greyck e a refinada Dulce Nunes, pela RGE (Sandra de Sá, Grupo Fundo de Quintal) e RCA (atual BMG), de cuja sala de direção mandou de Joanna a Sarah Vaughan, Tom Jobim & Miúcha e a Banda Black Rio. Recentemente, depois de um pornosamba de Dicró (O Gozador) e um projeto infantil (História Divertida do Descobrimento do Brasil) para o selo Impacto Music, ele prepara a volta de Don Mita, autor de Cabeça Feita, gravada pelo ídolo Tim Maia. Preservando seu lado bossa nova no grupo Estamos Aí (ao lado de dois outros ícones do movimento, Bebeto e Chico Feitosa) onde costuma apresentar-se ao violão, Durval tem uma penca de composições novas, mas aguarda oportunidade para gravar bem. "Não adianta soltar de qualquer maneira. A música não acontece e deixa de ser inédita", ensina este especialista nos dois lados do balcão.