Ed Motta solta a voz sobre <i>Dwitza</i>

Cantor fala sobre seu ousado trabalho, quase todo instrumental, e pensa sobre os rumos futuros de sua carreira

Marco Antonio Barbosa
25/01/2002
Mais surpreendente que o nome do mais novo disco de Ed Motta - Dwitza ouvir 30s - é a história que há por trás do álbum. Vindo de uma das mais bem-sucedidas fases de sua carreira, após os discos Manual Prático para Festas e Afins, Vol.1 ouvir 30s (1997) e As Segundas Intenções do Manual (2000) ouvir 30s, Ed dá um break total em sua faceta pop. Dwitza é praticamente todo instrumental; só duas músicas têm letra. Ao invés do som dançante dos discos recentes, o álbum investe em climas inspirados pelo jazz, soul não-ortodoxo, música orquestral, e o samba-jazz sessentista. Ed produziu o disco, arregimentando um time caprichado de músicos, tocando guitarra e teclados e entrando com seus famigerados vocalises - as melodias cantadas sem letra, seu peculiar edmottês. Mais inesperada ainda foi a manobra que Ed aplicou para poder fazer o disco. Contratado da Universal Music (a quem ainda deve mais um disco), Ed exigiu por escrito o direito de gravar este álbum que intencionalmente se desvia do padrão sonoro que ele estabeleceu. Mais: o disco teria de receber da gravadora o mesmo tratamento (e orçamento) de um trabalho normal de carreira. Para sondar como Ed chegou ao surpreendente som de Dwitza e como o disco vai influenciar sua trajetória daqui em diante, Cliquemusic conversou com o músico.

Cliquemusic: Dwitza surgiu através de uma brecha contratual inusitada para o mercado brasileiro: você queria lançar um disco que explicitamente rompesse com o padrão sonoro de sua carreira, e que a gravadora não se intrometesse no resultado final. Como você conseguiu esta proeza?
Ed Motta:
Essa idéia surgiu quando eu pensei no que poderia lucrar na negociação do contrato. Outros artistas pensam em dinheiro, coisas materiais - "ah, vou comprar um apartamento", por aí vai. Eu não; eu queria gravar um disco especial, que - eu espero - seja apenas o primeiro de uma série. Queria ter o mesmo tratamento que dão aos meus discos pop, mas que fosse instrumental. Quanto à interferência da gravadora, isso é um ponto pacífico para mim. Ninguém mete o bedelho no meu trabalho, seja no trabalho pop, seja nesse projeto instrumental.

Como classificar Dwitza, afinal? É um disco de jazz?
Gosto de dizer que é um disco instrumental. Tem jazz no meio, bastante, mas também referências de música para cinema, canções de musicais da Broadway, e música brasileira também. Sempre tive interesse em fazer música instrumental, e venho me preparando para isso; estudei harmonia, composição, sei onde estou pisando. Ao mesmo tempo queria fazer um disco que tivesse várias caras, que mostrasse um pouco de cada interesse musical que eu tenho. Daí é que entra uma música que mistura um boogaloo com blues e rock, outra inspirada na valsa francesa, uma terceira com influências de música erudita...

Tem uma forte presença do samba-jazz no disco, coisas inspiradas por J.T.Meirelles...
Faço samba-jazz no sintetizador, uma coisa com sabor anos 60. Mas não é um samba ortodoxo. Parece mais o Amon Düul (grupo progressivo-psicodélico alemão dos anos 70) tocando samba, uma coisa toda esquisita (risos)!

Foi intencional toda esta multiplicidade de referências? Você já sabia que o disco iria virar um showcase de suas influências?
Sou um cara que se preocupa muito com a música. Quando me interesso por um artista, pesquiso a carreira dele com um rigor jornalístico. O engraçado é que eu me sinto um alienígena, comparando com outros artistas... os cantores e compositores não ouvem música. Às vezes a última coisa que faz parte da vida de um cantor é a própria música. Mas eu coleciono livros, discos, reportagens. Daí é que vem essa vontade de misturar tudo, tocar e criar em vários estilos. Queria que Dwitza tivesse um pouquinho de cada coisa que eu ouço, e mesmo assim nem consegui colocar tudo no disco. Por exemplo, eu tenho vontade de gravar um disco de hard rock, com guitarra pesada, vocal gritado, totalmente Thin Lizzy (grupo inglês de rock pesado dos anos 70).

Voltando à questão de se sentir um alienígena, deve ter muita gente estranhando essa guinada, depois de se acostumar com Colombina ou Daqui pro Méier...
Não tenho nem como imaginar como este disco será recebido pelo grande público. Só o que eu quero é a liberdade de fazê-lo, e de fazer outros parecidos. O sentido de liberdade é o que vale. Gosto de me comparar com o Frank Zappa neste ponto; ele num disco fazia música erudita, em outro free jazz, depois parodiava o rock dos anos 50... A linha é não seguir linha alguma.

Você quer fazer mais discos com a mesma proposta de Dwitza. Como fica o Ed Motta pop, que faz sucesso em rádios FM?
A porção pop do meu trabalho parte de um instinto de sobrevivência que eu tenho. Ninguém fica me dizendo para fazer músicas mais comerciais, eu apenas faço porque sei que o disco tem que ter algum apelo popular. Daí é que nascem os hits. Mesmo no Dwitza tem duas músicas claramente radiofônicas, que eu fiz para puxar o disco - as duas com vocal, Doce Ilusão e Coisas Naturais. É claro que bato bola com a gravadora, ouço o que eles têm a dizer, as propostas para guiar a direção do disco. Mas não abro as pernas. Talvez por isso eu não more num prédio condizente com o meu talento, com o status de um ídolo pop... meu padrão de vida está mais para o de um jazzman de médio escalão do que para o de um astro. Mas isso é porque eu venho me organizando para outras coisas, que não vender discos. Não acho que vender um milhão de discos seja o máximo. No Primeiro Mundo dá para o sujeito sobreviver sem depender do mercado, você não fica 20 anos sem gravar porque não arruma contrato - como acontece com um monte de gente boa aqui no Brasil. É por isso que os meus parâmetros de carreira são gente como Egberto Gismonti e Hermeto Paschoal. Os caras conseguem sobreviver com dignidade, fazendo o som deles, sem interferências, gravam e lançam os próprios discos e têm um público cativo - que não é enorme mas possibilita que eles sobrevivam. Eu, como eles, estou me preparando para fazer arte, e não apenas entretenimento. Prefiro ser o Egberto Gismonti do que ganhar um disco de platina com um Acústico só com músicas requentadas. Quanto a manter duas carreiras paralelas, uma pop e outra mais experimental, só com o tempo eu vou saber se vai dar certo.

Você já enfrentou certos problemas com a incompreensão do povão no passado... como no fatídico show acústico no ATL Hall, em 2001 (no show, Ed recusou-se a cantar alguns de seus sucessos e bateu boca com a platéia). Como vai ser sua relação com o público, daqui em diante?
Olha, nunca tive a pretensão de ganhar um cachê igual ao do cara que lota um Maracanã. Não, mentira. Quero sim o cachê do Maracanã, mas para tocar em um nightclub (risos). O legal é fazer show para 200, 300 pessoas no máximo... É o mais adequado para o tipo de música que estou fazendo agora. É música popular, claro, mas é uma coisa séria para caramba. E eu acho que devia receber do público um tratamento com a seriedade que essa música demanda. Agora, coisas como o que aconteceu no ATL Hall são... pura má sorte (risos). Estou fazendo um show de voz e piano e o camarada quer ouvir Manoel. Não dá, né? Encontrar esse tipo de pessoa na platéia é o que eu chamo de má sorte.

Por falar nisso, como serão os shows baseados em Dwitza?
Vou cair na estrada, mas com uma banda pequena. Os arranjos serão reduzidos em relação ao que se ouve no disco. Estou pensando em outros arranjos também, para músicas mais antigas - o show não vai ter só coisa nova.

O álbum será lançado no exterior. Quais são seus planos sobre a carreira internacional de Dwitza?
O disco será lançado na Inglaterra e de lá distribuído para o resto da Europa, licenciado pela gravadora Whatmusic. Vai sair no Japão também. O CD terá uma faixa a mais em relação ao nacional, mas o legal é que vamos prensar em vinil também. E vai ser feito em uma fábrica na República Tcheca que é especializada em discos de jazz, naquele vinil especial, pesado, com uma ótima qualidade. Na primeira semana de fevereiro eu devo estar indo para a Inglaterra fazer uma divulgação pesada do disco, fazendo rádio, TV e imprensa. Espero que, lá fora, o disco entre na categoria de Brazilian jazz. Não quero ser visto também no exterior como um artista pop. Já basta ser escravo do pop aqui no Brasil (risos).

Em termos retrospectivos, como é que você analisa sua trajetória - do jovem que cantava "Eu não nasci pra trabalho" para a sofisticação de Dwitza?
O jazz foi o que complicou a minha vida (risos). A vida poderia ser só aqueles hits da Motown, musicas simples de dois minutos e 50 segundos... A ignorância é uma bênção! (risos). Queria ter entendido isso e ter ficado nas coisas menos complexas. Mas só faço aquilo no que acredito. Quero seguir melhorando tecnicamente, mantendo a coerência e a lucidez. E seguir fazendo o que faço agora, quer dizer, espero que me deixem fazer isso. Felizardo mesmo era Ravel, que era bancado pela aristocracia e não fazia nada a não ser compor e tomar vinho. Ainda assim, me considero feliz de estar fazendo meu trabalho pessoal, compondo só o que eu quero. Só não sei como estarei daqui há uns cinco anos. Posso estar liderando uma banda só de garotas adolescentes, fazendo covers dos Ramones (risos). Não garanto nada.