Elomar: um sertanejo radical e suas artes

O cultuado cantador baiano fala sobre música, política, mídia e anuncia vários projetos para o futuro

Mônica Loureiro
08/04/2003
Elomar Figueira Mello não faz shows, faz concertos e cantorias. Odeia a língua inglesa por questões culturais, faz citações em latim e compõe em dialeto sertanês. Se recusa a ser filmado e acha que a imprensa brasileira é uma cópia vergonhosa da americana - assim como os filmes.

Poderia-se enumerar aqui uma série de opiniões que, aos olhos dos mais desavisados, podem parecer extravagantes. Mas diante de um mínimo de conhecimento de sua obra - que está atualmente sendo estudada por alunos da Uerj, coordenados pela professora Darcília M. P. Simões - e sua vida, Elomar revela-se um ser humano rico, um artista de tal talento que, por isso mesmo, acaba sendo mal-compreendido e pouco conhecido do grande público.

O cantador, compositor, escritor e vaqueiro nunca se importou com a mídia. Aos 65 anos, desiludido com a maldade do mundo e dizendo-se incapaz de continuar a conviver com seus semelhantes, avisa que vai morar numa caverna. Cliquemusic entrevistou Elomar no camarim do Centro Cultural Banco do Brasil, entre uma apresentação e outra da série "Transgressores". Mesmo sem almoço e cansado, ele conversou atenciosa e longamente com a repórter.

Cliquemusic: Você comentou, durante o show, que estaria se despedindo. Que história é essa?
ELOMAR:
Não faço shows, faço concertos e cantorias. Gosto de citações em francês, espanhol, latim e grego. Mas a língua inglesa é abominável por uma questão cultural. Sua proposta imperialista é asquerosa. A Inglaterra se acha porreta, se considerava a rainha dos mares. De uma hora para outra, seu filho bastardo tomou o poder. Veja essa invasão do Iraque, que gesto de grande covardia! Os valentões americanos só batem em pequeno. E os governos do Terceiro mundo são afeminados, tudo que o Primeiro Mundo dita, eles acolhem, é vergonhoso. O povo brasileiro é um dos mais inteligentes, depois do judeu e do árabe, mas acaba aceitando isso tudo e até inibe a inteligência - as pessoas ficam com vergonha de criar, acham que estão errados. Falei tudo isso para justificar por que não gosto da palavra show... Voltando à pergunta, ah, eu tô sempre me despedindo. É porque estou repovoando a Casa dos Carneiros (sua fazenda na Bahia). Aconteceu um grande baque, tinha muita cabra, carneiro e as onças destruíram tudo.

O que você acha de ser considerado um "transgressor"?
Quando soube do título da série, não achei bom, o verbo transgredir passa por cima do que está pré-estabelecido, da lei, e eu sou um cristão de linhagem pura. Seria melhor marginalizados, rebeldes, malditos no sentido poético da expressão.

Você tem aversão à mídia, não é?
A imprensa é uma vergonha, tudo cópia americana. Eu só ligo a TV para ver noticiário e a previsão do tempo. O banco (CCBB) queria me filmar, eu não! De maneira nenhuma, minha imagem é sagrada. Eu já fiz muitas gravações para a TV Educativa, a Record, mas de uns 15 anos para trás. A televisão é uma bela invenção, mas está nas mãos dos maus, dos poderosos.

Conte um pouco sobre o início de seu envolvimento com a música.
Comecei a compor aos 11 anos, aos 16 tive notícias dos menestréis, conheci os cantadores do sertão, de feira em feira, de fazenda em fazenda. Na época eu nem sabia que existia disco, teatro. Cantava como um trovador, um rapseto. Aí fui para cidade, descobri o disco, o auto-falante, o rádio. Mesmo depois de me formar, já com muitas composições, ainda assim não pretendia gravar, sempre achei que música tinha que ser apreciada ao vivo. Me induziram a gravar um disco, gravei, depois o público cobrando mais música... Hoje, tenho 17 horas de partituras que dariam 18 CDs de uma hora, mas tudo depende de dinheiro.

E você sempre compôs em dialeto? Tem idéia do volume de sua obra?
Sempre, só com dialeto denso, sertanês. Não tenho material organizado, só uns arquivos implacáveis... O que tem de verso meu sendo comido por rato e cupim lá em casa... Outro dia abri uma sala lá na Casa dos Carneiros e vi um rato saindo com um pedaço de um poema na boca. Dei um chute nele e disse: rato não come poema meu! Ganho muita literatura emergente por onde passo, aí eu consulto e quando vejo que é ruim demais, guardo na frente para os ratos comerem e deixarem os meus intactos!

Atualmente, você está se dedicando mais às óperas e antífonas...
Sempre fiz as óperas e antífonas junto com as canções. Mas o ciclo do cancioneiro acabou. Acho que a canção é um espaço muito limitado... Os compositores de todos os tempos, Villa-Lobos, Mozart, Brahms, escreveram canções no início, depois foram saindo para coisa maior. Quem tem talento é assim; quem tem limitado, fica só na canção. Daqui a pouco, não vou compor mais nada, vou me dedicar aos roteiros de cinema e aos contos.

Como são esses roteiros?
Faço um anti-cinema. Tenho asco às propostas atuais, acho os cineastas brasileiros tudo um bando de copistas dos americanos - pelo menos o que já chegou até a mim. Há muito tempo venho escrevendo minhas historinhas e como nosso país tem histórias belas... O que tem de entradas e bandeiras, revoluções, Guerra dos alfaiates, levantes do Maranhão, investidas dos ingleses e holandeses, cada história dessa dá um roteiro belíssimo. Tenho um que está todo em minha mente: O Cerco de São Sebastião do Rio de Janeiro, sobre Villegaignon. Já escrito tenho o Sertanílias, onde tem um personagem chamado Sertano. A câmera nunca pega seu rosto, ele está sempre de perfil, é um anti-herói, uma figura ética que viaja pelos sertões. Ele anda a cavalo, calça botas, tem uma pistola e porta um facão, mas a grande arma dele é a palavra, seu discurso passa por todo o conhecimento histórico do homem. Trabalho entre a ficção e a realidade: na abertura tem cinco jornalistas que me entrevistam sobre minha obra e vida. Após cada pergunta/resposta, escorrega para Sertano, viajando por meus personagens; indo e vindo. É 20% de realidade e 80% de imaginário. Já estou esboçando "Sertano visita a cidade grande". Mas nem sonho em levá-lo ao cinema, é muito caro! Já fizeram o orçamento, custaria R$ 8,10 milhões. Tem também Os Vaqueiros, Os Escravos e A Casa dos Sete Candeeiros, que escrevi há 20 anos. Começa em Portugal, nos jardins de um castelo num duelo entre dois homens por causa de uma mulher, vem para a Chapada Diamantina, no ciclo do ouro e mostra todo o Brasil colonial. Meus roteiros são todos utópicos...

Por que você não faz com os roteiros algo semelhante ao que vem fazendo com as óperas - apresentações com formação reduzida por nem sempre poder dispor de uma orquestra completa?
Pois sabe o que estou fazendo? Até julho, o Sertanílias vai sair em formato de livro. Já estou dando 40 cenas principais para Orlando Celino, um artista plástico de Conquista, desenhar a bico de pena. Porque todas as cenas do meu filme eu desenho a lápis, com todos os posicionamentos de câmera. Para quem vier filmar não ficar inventando! Assim, quem dirigiu fui eu, mesmo pós-mortem. Se der certo em formato de livro, vou publicar os outros também.