Elza Soares recontada na caixa <i>Negra</i>

Discos fundamentais da cantora são relançados em box com 22 CDs, que cobrem de 1960 a 1988

Marco Antonio Barbosa
13/10/2003
A renascença que a carreira de Elza Soares vem experimentando há cerca de dois anos - e que teve como ponto alto a aclamação geral do álbum Do Cóccix até o Pescoço ouvir 30s, de 2002 - acaba de ficar mais completa. Chega às lojas Negra (EMI), caixa de 12 CDs que reúne nada menos que 22 dos álbuns que Elza gravou entre 1960 e 1988 (mais um disco-bônus de raridades). A chance de (re)encontrar a trajetória muito peculiar da cantora é única; pode-se entender, afinal, o papel nem sempre reconhecido de Elza na construção de pontes entre gêneros e etnias de nossa música popular. O que, na prática, também representa um resumo da evolução e das mudanças da música negra brasileira ao longo do mesmo período.

A compilação e coordenação do projeto coube, uma vez mais, ao pesquisador carioca Marcelo Fróes, que escarafunchou os catálogos da antiga gravadora Odeon (a primeira a contratar a cantora - aos 23 anos - em 1960) em busca da discografia de Elza. Os 22 discos originais incluidos na caixa, em esquema "2 LPs = 1 CD", representam praticamente toda a discografia solo de Elza no período entre 60 e 88; apenas os discos Negra Elza, Elza Negra, de 1981, que saiu pela CBS, e Somos Todos Iguais, lançado em 1986 pela Som Livre, ficaram de fora. À esta altura, todos os discos, nunca antes lançados em CD (à exceção de Elza, Miltinho & Samba, de 1967), estavam há anos fora de catálogo. O tratamento gráfico e a qualidade sonora, como de costume em lançamentos desse gabarito, são de alto nível, restaurando a arte original dos LPs e incluindo textos com detalhes das gravações e contextos históricos. Resta saber se a EMI pretende pôr os títulos também individualmente nas lojas; não é todo o fã da cantora que dispõe dos R$ 170 (preço sugerido, média de R$ 14 por disco) para entregar pelo box.

Basta olhar para a arte da contracapa de Negra para se entender as mudanças na carreira de Elza, nos 60 e 70. Os dois primeiros volumes, que trazem respectivamente os discos Se Acaso Você Chegasse/A Bossa Negra (ambos de 1960) e O Samba É Elza Soares (1961)/Sambossa (1963), sugerem uma intérprete mais comportada visualmente, mas um tanto contraditória em termos de influências. O canto era influenciado pelas intérpretes da era clássica do rádio, como Aracy de Almeida (fato reconhecido pela própria Elza), mas os arranjos já incorporavam as novidades da bossa nova e do samba-jazz. Enquanto seguia deixando a bossa para trás e ajudava a consolidar o sambalanço (derivação do samba-jazz com muito mais ênfase no suingue), Elza começava a afirmar sua própria linguagem. Gravava tanto Orlandivo quanto Ataulfo Alves, congregando diferentes gerações de sambistas; ao mesmo tempo, libertava-se da herança do samba-canção e começava a rasgar mais a voz rouca. São deste período os volumes 3 (Na Roda De Samba/Um Show de Elza) e 4 (Com a Bola Branca/O Máximo em Samba), lançados entre 1964 e 1967.

Nos anos seguintes, a cantora desenvolveu fértil parceria com Miltinho, gravando três discos com o sambista (os três volumes da série Elza, Miltinho & Samba, respectivamente lançados em 67, 68 e 69. O duo aprofundou a batucada, submetendo ao suingue desde Noel Rosa a Gilberto Gil. No mesmo período, a cantora ainda teve fôlego para lançar o hoje clássico Elza Soares - Baterista: Wilson das Neves (1968), verdadeiro show de sambalanço (e bota balanço nisso); e o aparentemente "exótico" (a começar pela capa, que trazia a cantora travestida de baiana de escola de samba) Elza, Carnaval & Samba (1969), só com sambas-enredo do Carnaval carioca. Há então uma ruptura no curso natural de Elza, com a mal-explicada expulsão da cantora do País por obra do governo militar (passa de 1970 a 1972 na Itália), que ainda assim consegue lançar mais um trabalho marcante: Sambas e Mais Sambas, com a famosa regravação de Tributo a Martin Luther King, de Wilson Simonal (1970).

Na volta ao Brasil, Elza torna-se ainda mais independente, lançando no mesmo ano Elza Pede Passagem e Sangue, Suor e Raça (com Roberto Ribeiro). Aí a cantora já caía no black power radical, infestando de soul e funk os sambas que entoava. Não por acaso, é quando desliga-se da Odeon temporariamente e vai parar na indie Tapecar, por onde solta Elza Soares (1974) e Nos Braços do Samba (1975). A ousadia conceitual e a briga com a Odeon (ela voltaria em 1977, com Pilão + Raça = Elza) foram prejudiciais à trajetória profissional da cantora. As eternas complicações pessoais e as oscilações do mercado foram espantando Elza das rádios e casas noturnas de prestígio. Depois do último trabalho pela Odeon, em 77, ela só gravaria mais dois álbuns (justamente os dois não incluídos na caixa) até retornar onze anos depois, com o sintomaticamente intitulado Voltei (1988). Até aí, já haviam morrido o grande amor, Garrincha, e o filho, Garrinchinha, e o ostracismo batia forte à porta, em plena década de ascenção do pop-rock (e, ironicamente, a partir de 1986, do pagode). Após Voltei, Elza só gravaria novamente em 1997. Seria o recomeço de uma história muito bem contada em Negra.