Encaixotando o Tremendão

Caixa com quatro CDs revê 40 anos de carreira de Erasmo Carlos

Marco Antonio Barbosa
20/06/2001
Erasmo Carlos entrou com o pé direito em seu 60º ano de vida (completado no último dia 5). Seu mais recente álbum Pra Falar de Amor, o primeiro disco de inéditas em nove anos, o reconciliou com sua carreira, praticamente congelada durante os anos 90. Seu real valor para a música brasileira está sendo afinal reavaliado, tirando-o da eterna sombra do Rei Roberto e dando a ele seu espaço como legítimo inovador na fronteira entre o pop e a MPB. E nomes insuspeitos como Marisa Monte e Marcelo Camelo (Los Hermanos) se assumem seus tietes. Quem quiser compreender de onde vem os motivos para tanta festa, agora tem à disposição Esquinas do Tempo 1960-2000 ouvir 30s - um box com dois CDs duplos lançado pela Som Livre Direct.

Como o título deixa entrever, trata-se de uma coletânea que mapeia toda a trajetória musical do Tremendão. Ou praticamente toda, indo da fase pré-Jovem Guarda até o álbum É Preciso Saber Viver, de 1996, sem incluir faixas do disco lançado por Erasmo este ano. É, portanto, o argumento que faltava para justificar o resgate da importância de Erasmo para nossa música - e um pacote de pérolas para saudosista algum botar defeito.

As 64 faixas de Esquinas do Tempo foram compiladas pelo incansável pesquisador Marcelo Fróes, em colaboração com Leonardo Esteves e Hélio Costa Manso. Nos CDs, pode-se acompanhar a evolução e as mutações na persona musical de Erasmo Esteves, vulgo Erasmo Carlos - começando bem do comecinho, com a hoje possivelmente esquecida Pra Sempre, um disco 78 RPM (!) lançado pelo grupo The Snakes em 1960. Ou seja, pré-Roberto & Erasmo. Esta música e Calypso Rock, também de 1960, aparecem pela primeira vez em formato digital nesta caixa. "São as primeiras músicas gravadas pelo Erasmo como vocalista principal, e nunca tinham reaparecido em disco algum até agora", relata Marcelo Fróes.

A seleção da caixa segue pela época em que Erasmo cantava com o grupo Renato & Seus Blue Caps, retrata o início da parceria com Roberto Carlos (via Broto Jacaré, de 1964, já lançada por Erasmo em carreira solo) e cai direto na fase jovem-guardista do cantor. Sucessos como Minha Fama de Mau, Festa de Arromba, Gatinha Manhosa, Vem Quente que Eu Estou Fervendo.... "Essas músicas todas foram gravadas na fase em que Erasmo era contratado da RGE, de 1964 a 1969. Na época, ele gravava com os Blue Caps, os Fevers, os Jet Black's e The Jordans, e tornou-se versionista (especializado em verter sucessos pop do inglês para o português) para diversos artistas, como Wanderléa e Sérgio Murillo. Ele foi o primeiro artista pop da RGE", explica Fróes.

Em seguida, ainda no volume 2 da caixa, ouve-se o início da transição de Erasmo, do iê-iê-iê importado para uma estética mais legitimamente brasileira. É em músicas como Brotinho Sem Juízo (de Carlos Imperial, 1967), Capoeirada (assinada apenas por Erasmo, sem Roberto, em 1967), Coqueiro Verde (de 1970, gravada pelo Trio Mocotó, grupo seminal do movimento samba-rock) e De Noite Na Cama que essa guinada fica mais clara. Mais adiante, em faixas retiradas dos LPs Erasmo Carlos (70), Sonhos e Memórias (72) e A Banda dos Contentes, notava-se que Erasmo conseguiu equacionar suas próprias raízes roqueiras com a incorporação da brasilidade, mantendo-se coerente. As incursões do letrista Erasmo pela ecologia (Panorama Ecológico, de 1978) e política (Quero Voltar, de 1979, aludindo à anistia) estão incluídas. Os vários sucessos dos anos 80 ( Mulher, Minha Superstar, Pega Na Mentira, Amar Pra Viver Ou Morrer De Amor, Mesmo Que Seja Eu - e até a infame e hilária Close). Fechando o CD 4, a nova geração reverencia Erasmo, com as participações de Renato Russo (A Carta), Paula Toller (Vem Quente que Eu Estou Perdendo) e Adriana Calcanhoto (Do Fundo do Meu Coração).

A caixinha encerra então a altamente digna trajetória de Erasmo, um camarada que com muita justiça transformou-se em um símbolo do rock brasileiro. As várias outras facetas da carreira do cantor (além da indissociável persona do Tremendão), devidamente representadas, dão um vulto ainda maior a um artista que já estava colado no inconsciente coletivo nacional (graças às parcerias com Roberto Carlos). O que não é pouco.

As canções de Erasmo, por Erasmo
Um dos petiscos mais saborosos da caixa Esquinas do Tempo é o encarte que acompanha os CDs, que além de incluir todas as letras traz comentários do próprio Erasmo sobre cada música. Confira:

Calypso Rock (1960): "Gravada com excelentes músicos, mas que não sabiam 'xongas' de rock'n'roll. Então era aquele rock jazzistico, sabe? (...) Mas nós conseguimos gravar."
Broto Jacaré (1964): "Veio aquela capa ridícula do compacto, com uma foto em que eu estou pegando onda no Leme(...) Ninguém sabia fazer nada naquela época."
Festa de Arromba (que relacionava vários artistas da Jovem Guarda em sua letra, em 1965): "Sei que omiti alguns nomes, como os de Jerry Adriani e Wanderley Cardoso, mas não foi por nada. Jerry até hoje me cobra quando me vê."
Gatinha Manhosa (1966): "Eu fiz ainda na Tijuca. Me lembro da época(...) mas não consigo me lembrar se fiz para alguma menina. Fiz simplesmente imaginando uma situação."
Sentado à Beira do Caminho (1969): "Roberto chegou e disse que tinha bolado um tema que tinha a minha cara. Demoramos mais de dois meses pra fazer essa música (...) Quando o Roberto acordou de um cochilo, ele esfregou os olhos e soltou a segunda parte da canção, com a qual ele havia sonhado. Lancei no finalzinho da Jovem Guarda(...) nunca tinha feito algo tão avassalador. Tocava em todas as rádios."
De Noite na Cama (1971): "Pedi uma música e Caetano Veloso a fez em Londres. Foi o sucesso do LP Carlos, Erasmo, mas tem muita gente que pensa que foi Marisa Monte quem a lançou primeiro."
Cachaça Mecânica (1973): "Influenciado pelo filme Laranja Mecânica e pelo carnaval da Bahia, saiu(...) Não me pergunte como. Acho o título da música um achado."
Panorama Ecológico (1978): "O papo lá em casa passou a ser Botânica e (...)na minha cabeça só conhecia rosa, cravo e margarida, coisas populares, mas existem flores pra caramba(...) Fiquei com esse tema na cabeça (...) mas achei que ia ficar muito longo falar só de flores. Lembrei-me de peixes e de aves e consegui fazer."
Mulher (Sexo Frágil) (1981): "Foi a plenitude de minha vida pessoal e da maturidade. Foi o ápice de tudo, tudo estava feliz."
A Carta (gravada com Renato Russo em 1992): "Eu gostava do Renato, mas não o conhecia. Ele mudou o fraseado da música, criando uma nova música(...) até mesmo pelo arranjo ter sido feito por ele. Ficou legal pra caramba."