Enfim, o baú do Marceleza

Os vinte anos de carreira do roqueiro Marcelo Nova estão na caixa tripla Tijolo na Vidraça

Marco Antonio Barbosa
29/06/2001
Se há alguém no rock brasileiro que - isso, para usar uma expressão da própria figura - "venceu pela insistência", este alguém é o baiano Marcelo Nova. Aos 49 anos, o homem que liderou o Camisa de Vênus e esteve até o fim ao lado de Raul Seixas ganha um legítimo reconhecimento de sua importância para o pop brazuca com a coletânea Tijolo na Vidraça, que a Som Livre está prestes a pôr nas lojas. É uma caixa com três CDs que se propõe a resumir os 20 anos de carreira de Marceleza, incluindo músicas do Camisa, da parceria com Raul e faixas de seus seis discos solo - além de 20 músicas inéditas. Mas Marcelo Nova é Marcelo Nova; e nem com uma reverência desta envergadura que se faz a sua obra, o homem deixa de disparar suas conhecidas (e muito bem-humoradas) ironias contra Deus e o mundo.

"O Hélio Costa Manso, diretor da Som Livre, foi quem resolveu montar esta caixa. Ele tinha acabado de voltar dos EUA - morou em Los Angeles por uns dez anos - e chegou para mim no ano passado com a seguinte conversa: 'Pô, Marcelo, quando eu saí daqui, você era "O" cara do rock brasileiro. Eu voltei dez anos depois e você continua sendo...'. Ele me disse que iria correr atrás das músicas que pudessem contar a minha história, a minha trajetória", explica o cantor sobre o projeto Tijolo na Vidraça.

A caixa vai sair creditada a Marcelo Nova & Camisa de Vênus, e no setor das ditas velharias vai incluir as mais famigeradas músicas do Camisa: Simca Chambord, Só o Fim, Eu Não Matei Joana D'Arcouvir 30s, Deus Me Dê Grana... Algumas faixas do infame Viva, de 1985, estarão no pacote também, como My Way, hit de Frank Sinatra vertido para o português numa letra cheia de palavrões. "Vai ter tanbém algumas músicas que nunca saíram em CD, como as coisas do primeiro disco (Camisa de Vênus, de 83), que tem Bete Morreu e O Adventista", fala Marcelo.

O álbum triplo também passa pelo disco que Marcelo gravou com seu ídolo maior, Raul Seixas (A Panela do Diabo, de 1989) e sua discografia solo. Além disso, Marcelo juntou uma série de registros inéditos, entre covers e músicas de sua produção mais recente. "Gravei alguns covers, de coisas que me influenciaram, tipo Love Me Two Times, do The Doors, When The Levee Breaks, do Led Zeppelin, e até Check-up, do próprio Raul. Também tem duas versões de músicas do Bob Dylan, It's Not Dark Yet - que eu passei para o português e ficou Ainda Não Está Escuro - e One More Cup of Coffee. E também fiz questão de gravar I Fought The Law, aquela dos anos 50 que ficou famosa na versão do The Clash", diz Marcelo.

A nova safra de composições do roqueiro (que não lança um álbum de estúdio desde Eu Vi o Futuro, Baby, Ele É Passado, de 1998) diz presente ao final da coletânea. "Tem a minha primeira parceria com o Johnny Boy, com quem eu toco já há muitos anos, chamada Um Lugar Para Deus. Outra se chama Bomba-relógio Ambulante, e também há uma chamada Não Sei o Que Fazer. Já estou com mais de dez composições prontinhas, esperando para serem gravadas - mas só devo entrar em estúdio de novo no ano que vem", fala Marcelo.

"Quer dizer", continua o baiano, "tem músicas de todos os discos que eu fiz; vai ser Marcelo Nova de tudo que é jeito!". É fato. Mas teria sido difícil para a Som Livre conseguir coletar os fonogramas para compôr a caixa? Afinal, desde 1983 Marcelo já passou pelas gravadoras RGE (cujo acervo hoje é da Som Livre), Warner, Eldorado e Polygram (hoje Universal Music). O roqueiro vai direto ao ponto: "Ah, foi fácil, foi fácil... as gravadoras sabem que não podem encrencar com a Som Livre, se não podia atrapalhar na hora delas botarem música em disco de novela da Rede Globo...". Ele acabou não participando diretamente da produção da caixa. "Se eu me metesse, ia acabar complicando, justamente por coisa das minhas confusões com as gravadoras."

Tijolo na Vidraça compõe um caprichado painel da musicalidade de Marcelo Nova, que desde os tempos do Camisa soube dosar contundência punk e irreverência (sonora e discursiva) ao mais puro espírito dos pioneiros do rock'n'roll. Na verdade, mesmo com seus altos e baixos, a carreira de Nova sempre foi um monumento à coerência em um mercado musical impulsionado por modismos e falta de neurônios. "Nunca batuquei em terreiro, nunca fiz samba, nem fui new wave, pop, techno ou sei lá o que. Sempre fui o que sou. O rock é minha benção e maldição. Acabei vencendo pela insistência. Sou o Zagallo do rock: agora vocês vão ter que me engolir!", diz Marcelo, exaltado e bem-humorado.

E o que os antigos companheiros de Camisa de Vênus acham do relançamento? Marcelo não tem medo de ser xingado de "usurpador de legado" por receber sozinho os louros pelas 49 canções da caixa? "Ah, eu acho que é assim que ter de ser mesmo. Não estou preocupado com isso. Eu formei o Camisa, a banda era minha. Além do mais, meu trabalho não acabou ali. Eu não vivo só de passado", diz o cantor. Quanto aos colegas de banda, Marcelo diz não ter contato. "O único que é realmente meu amigo é o Robério (baixista), e mesmo assim ele mora em Nova Orleans, nos EUA", conta. "Gustavo (guitarra) e Aldo (bateria), esses eu não vejo há muito tempo. Com o Karl (guitarra), eu falei há cerca de um ano atrás pela última vez."

O lançamento da Som Livre pode trazer Marcelo Nova de novo à grande mídia, que ele já não freqüenta há tempos. "As pessoas me veêm e comentam: 'Pô, você está sumido!' Eu respondo: sumido de onde? Da sua rua, talvez... Eu não paro de fazer shows. Já toquei em todas as cidades do Brasil. Posso não ser o rei do Ratinho, do Gugu, posso não ter visibilidade na TV, mas também nem quero ter. Nunca parei de tocar, sustento minha família com o que ganho com os shows", fala Marcelo.

O afastamento do cantor da grande mídia se deve, sem dúvida, ao fato de ele estar sem contrato com gravadora alguma desde 1998. Seus discos mais recentes, os volumes I ouvir 30s e II ouvir 30s da série Grampeado Em Público, foram feitos e vendidos em um esquema independente, para não dizer semi-artesanal. "Um dia chegou um cara, um fã paranaense louco, que tem mais de 500 horas de gravações piratas minhas, me oferecendo essas fitas que ele tinha feito de um show meu no Paraná. Prensamos os CDs e vendemos. Foi um disco que não chegou às lojas, só vendia através do fã-clube e da minha página na Internet (www.uol.com/marcelonova). Mesmo assim, vendemos mais de quatro mil cópias - o que pode parecer pouco, mas eu lucrei tanto quanto se tivesse vendido 60 ou 70 mil cópias por uma multinacional", conta Marcelo. "E cheguei a tocar em rádio, com Cocaína - a música, não a droga (risos). Sem jabá, sem grana para as rádios, o que contradiz alguns rebeldinhos que dizem que FM só funciona na base do jabá", espeta o baiano.

No mais, Marcelo planeja gastar o resto de 2001 divulgando Tijolo na Vidraça, para apenas em 2002 lançar seu sétimo álbum solo. De concreto na cabeça do roqueiro, só o relançamento do disco A Sessão Sem Fim, original de 1994 e que, segundo o cantor, não teve a divulgação que merecia. O disco também só vai sair em 2002. Até lá, Marcelo segue na dele. "Estou indo muito bem. Ainda há lugar para os lobos da estepe. O lobo da estepe ainda caminha pela planície", filosofa marotamente.