Entre a roça e o pé-de-serra

Miltinho Edilberto faz ponte entre a música caipira e a nordestina, com a benção de Maria Bethânia

Marco Antonio Barbosa
05/07/2001
Ele é cria assumida e legítima da turma do forró universitário. Mais que isso, clama para si parte da "paternidade" da animada cena dos novos grupos forrozeiros. Seu disco mais recente foi lançado dentro de um pacote que só incluia álbuns de forró. No entanto, Miltinho Edilberto pode ser tudo, menos um forrozeiro como outro qualquer. O cantor, compositor e violeiro, que está lançando seu terceiro álbum (Feito Brasileiro ouvir 30s, DeckDisc/Abril Music), desenvolveu sua própria assinatura musical - que já foi aplaudida por nomes insuspeitos como Maria Bethânia (que participa do novo disco), Lenine, Alceu Valença e Chico César.

"Sou, antes de tudo, um folclorista e pesquisador musical. Não acho que minhas canções caibam em um único rótulo, e nem sequer me preocupo com isso; não faço só forró, ou só xote, ou só moda de viola. Meus interesses vão além disso tudo. Meu primeiro disco, por exemplo, acabou tendo música étnica, coisas do folclore e até o Bolero de Ravel tocado na viola", diz Miltinho, buscando uma definição para sua musicalidade. Nascido em Andradina, cidade do interior de São Paulo, o artista cresceu imerso na mais legítima música caipira. Assumindo a viola de dez cordas como base de seu som, tornou-se refinado estilista do instrumento, consagrado até com um Prêmio Sharp (como revelação regional de 1998, pelo álbum Viola que Fala ouvir 30s). E como compositor, Miltinho constrói uma ponte que liga o interior paulista ao litoral nordestino. Em canções como Antes de Beijar, Rua do Amor e Inconseqüente, ele junta a inflexão e o estilo caipiras ao balanço do xote. O resultado é uma lufada de ar fresco dentro do forró contemporâneo.

"Cresci em meio à música caipira de raiz, num lugar que é muito peculiar geograficamente - porque faz divisa com Goiás e Minas Gerais", explica Miltinho. "Então já do berço eu convivia com compositores sertanejos vindos de Minas, ao mesmo tempo em que conhecia também repentistas do interior do Mato Grosso. Tive grandes mestres, cheguei a tocar com Tião Carreiro (da dupla Tião Carreiro e Pardinho), e Renato Andrade, um gênio da viola caipira, participa do meu primeiro disco. O lado nordestino veio de minhas viagens por lá, de meus trabalhos como pesquisador. Passei por todo o Nordeste, conhecendo todos os ritmos", continua.

Essa formação se reflete em Feito Brasileiro, que além de todas as referências pessoais de Miltinho ainda teve a colaboração de outro eclético de marca maior: Leandro Lehart, ex-líder e atual produtor do grupo de pagode Art Popular. O álbum foi gravado no sofisticado estúdio caseiro de Lehart, e o pagodeiro toca (e assina os arranjos) em cinco das 12 faixas do álbum. "Não conhecia pessoalmente o Leandro, mas acho que dentro do pagode ele tem um método bem depurado de composição", afirma Miltinho. "Não tenho muita paciência para esses grupos de samba mais vulgares, mas gosto do pouco que ouvi do Art Popular. O Leandro faz um trabalho de qualidade". Além de Lehart, pontificam na ficha técnica do álbum os respeitados arranjadores Mário Manga e Jota Moraes. "Como o Leandro, o Mário e o Jota foram sugeridos a mim pelo João Augusto (chefão da Abril Music). Acabou dando muito certo", conta o compositor.

E, em meio a todos esses rapazes, uma moça: Maria Bethânia. A irmã de Caetano Veloso canta com Miltinho em Água e Azeite. "Foi uma honra. Mais uma vez, foi o João Augusto quem sugeriu que nós a convidássemos, e ele intermediou nosso encontro: levou a música até ela, a Bethânia adorou e se dispôs a gravar na mesma hora. A canção é de Sérgio Misan e João Ayres, dois amigos meus de Belo Horizonte", lembra Miltinho. Na verdade, não é a primeira vez que os caminhos da baiana se cruzam com o dele. Em seu último álbum, A Força que Nunca Seca (99), Bethânia gravou Não Tenha Medo, de Miltinho. Isso ajudou a mostrar ao mundo a cara do compositor, que até então trafegava apenas no cenário do forró universitário. Junto aos grupos Falamansa e Rastapé, o violeiro sedimentou a base de casas noturnas de classe média abertas ao forró em São Paulo nos últimos três anos.

Qual é o segredo para encantar tanto a diva baiana de gostos refinados, além de tantos outros artistas de renome? "Sei lá... acho que meu método de compor é até meio psicográfico", diz Miltinho, rindo. "Por causa da influência que tive dos repentistas, sou capaz de fazer música e rimas em qualquer lugar, sob qualquer circunstância. Posso estar viajando de ônibus, com o olhar parado lá longe, e de repente salta uma música prontinha. A viola também é importante nisso tudo. É um instrumento muito rico." Quanto aos outros figurões da MPB que já teceram loas a ele, Miltinho credita seu alto conceito, modestamente, à amizade. "Sou amigo há um tempão de toda essa gente que me elogia. Lenine é meu companheiro há anos, Chico César eu conheci cantando ainda em festivais regionais, pelo interior. Também fiz muito show com Alceu Valença", conta ele, que já participou de mais de 50 festivais Brasil afora.

Já tendo sido gravado também por Sérgio Reis, Tânia Alves, Márcia Freire e Adryana & A Rapaziada, Miltinho Edilberto agora prepara uma nova carga. "Estou juntando uma coleção de novas músicas, inéditas. Daí vou me reunir com o João Augusto e decidir para quem eu vou oferecer essas novas canções. Quero mandar as novas e uma cópia do CD também", revela Miltinho. E para quem, hein? Ele não abre o jogo. "Ah, vamos decidir ainda. Devagarzinho, estou pondo a minha carinha para fora. Antes eu aparecia mais como músico, neste disco quero me firmar como compositor."

Mesmo deixando bem claro que não se limita ao forró, Miltinho está com a galera "universitária" e não abre. O Falamansa e o Trio Virgulino também participam do novo álbum, reafirmando a fé do compositor na renovação do gênero. "O forró universitário ainda nem cresceu tudo o que pode crescer. Ainda está em ascenção. É um movimento forte porque foi criado naturalmente, entre o público e os artistas. Não é como esse sertanejo brega, a lambada, ou o pagode, que são coisas inventadas pelas gravadoras. O pior forrozeiro é melhor que muitos 'bons' grupos de rock", opina Miltinho, com ironia.

Este eclético e sofisticado forrozeiro confia no apelo de sua música junto às massas. "Sempre fui popular, mesmo com toda essa minha preocupação de pesquisador. Esses dois lados meus estão ligados. Minha música tem humor, atinge o público. Nos shows, o pessoal dança mesmo, como se fosse um pé-de-serra. Ainda que estranhem às vezes um forrozeiro de viola na mão", finaliza, bem-humorado.